Y 26|DEZEMBRO|2003
2003|música
Robert Wyatt
e o regresso dos reis
Robert Wyatt, Rickie Lee
Jones, John Cale, Lou Reed, June Tabor, Nick Cave, Richard Thompson. Os clássicos. Todos eles lançaram excelentes álbuns ao longo do
ano. Têm em comum, além de pertencerem a uma geração (ou gerações, Rickie e
Nick são um pouco mais novos, ela tem 49, ele 46) que percorreu três décadas
(alguns, quatro…) de música popular, algo que se pode definir como “classe”.
“Classe” que se caracteriza pela intransigência no que respeita à cedência aos
imperativos comerciais da indústria discográfica. De todos eles se pode falar
com propriedade de uma “obra” coerente, fiel a princípios regidos
exclusivamente pelos respetivos percursos existenciais. Nos anos 70 dos
múltiplos absurdos e exageros, nos 80 espartanos e infernais, nos 90 das
tecnologias-que-tudo-fazem mantiveram intacta a integridade artística sem
deixarem de incorporar nos seus trabalhos, ajustando-os às necessidades
próprias, essa panóplia de adereços e muletas que a modernidade (que é sempre
hoje…) colocou à sua disposição.
É isso que os
distingue dos novatos, por mais espampanantes que os discos destes últimos
aparentem ser. Uma visão pessoal e intransmissível, por vezes incómoda para os
espíritos e ouvidos condicionados pelos sons massificantes que o mercado
ciclicamente atira para a trituradora, que os anos vão depurando, pulindo ou
aguçando, consoante as curvas e os precalços da vida.
Wyatt, o
baterista de “free jazz” que transitou para o psicadelismo de Canterbury dos
Soft Machine, e desceu aos infernos para se descobrir e redimir numa solidão de
criança com a lucidez de um velho mago. Cale, o minimalista emperdenido,
discípulo do guru La Monte Young, violista raivoso dos Velvet, o classicista
perverso que condensou a raiva de forma tão violenta como ataca as notas do seu
piano. Lou Reed, seu companheiro de armas nos Velvets, o monstro absoluto que
reduziu a música ao ruído e eletricidade puros em “Metal Machine Music”, colheu
as flores do mal e cheirou os aramas da morte, para finalmente escalpelizar o
sofrimento e o “mal de vivre” sob o manto de ópio, álcool e traças de Edgar
Allan Poe. Cave, o pregador dos evangelhos da decadência, do vício e do
naufrágio, disseminados nos Birthday Party e transformados em espiritualiadde
negra nos Bad Seeds. Thompson, o pessimista dos amores e do desespero sem cura
que aprimorou numa guitarra que jamais cortou as ligações que a prendem à terra
desde os tempos dos Fairport Convention. Tabor, a voz mais profunda da folk
britânica que, álbum após álbum, vem redefinindo a palavra “tradição”. Rickie Lee Jones, uma das vozes e escritas mais consistentes do “songwriting”
americano, sempre em busca desse equilíbrio, por natureza percário, entre pop,
jazz, experimentação e o registo de vivências interiores (curiosamente, busca
paralela à de Wyatt, com a diferença de que este tombou desamparado no fundo e
teve que se reconstruir a partir da dor absoluta, sentado numa cadeira de rodas
banhada por Deus e pela loucura, em “Rock Bottom”).
Qualquer deles
percorre um longo caminho, deixando-nos as etapas, os triunfos, as perdas, até mesmo
passos em falso. Tiveram e têm o tempo como aliado. Único a permitir que nele
se construa a intemporalidade. Lançaram preces e maldições. Construíram
cidades, jardins e templos. Auto-estradas onde a emoção toma o freio nos dentes
e becos onde o silêncio parece ser a única resposta. Mundos que devem ser lidos
e ouvidos de fio e pavio para a história ser comprendida como um todo. Servem
ou deveriam servir de exemplo aos mais novos. Os “melhores do ano” são, afinal
de contas, os “melhores de sempre”.
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