27/12/2019

Primeira avaliação técnica de coleção de fados histórica


CULTURA
QUINTA-FEIRA, 8 JANEIRO 2004

Primeira avaliação técnica de coleção de fados histórica

GRAVAÇÕES RARÍSSIMAS

Uma delegação vai a Londres avaliar o tesouro fonográfico de Bruce Mastin. O colecionador inglês não baixou o preço e pede mais de um milhão de euros. O espólio inclui raríssimas gravações de fado do início do século XX
BÁRBARA REIS E FERNANDO MAGALHÃES

Um grupo de especialistas e representantes oficiais vai partir nos próximos dias para Londres para fazer a primeira avaliação técnica da coleção de registos fonográficos de música portuguesa do início do século XX, propriedade do colecionador inglês Bruce Mastin.
            Para Londres seguirá um administrador da Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC), braço da Câmara Municipal de Lisboa que gere vários equipamentos da cidade, entre os quais a Casa do Fado, em Lisboa; dois técnicos da EGEAC para analisar o material discográfico; José Moças, da Tradisom, editora que, diz, fará a organização, digitalização e edição desta coleção de “peças únicas” com apoio do Ministério da Cultura, e o seu advogado, José Sardinha.
            José Moças, que parte no domingo, diz que o colecionador inglês não vai baixar o preço – um milhão e duzentos e quarenta e nove mil euros. Mas segundo lhe foi comunicado pela CML e o Ministério da Cultura, “a decisão política está tomada”.
            “A Câmara Municipal de Lisboa, que tem interesse em comprar o espólio, incumbiu-nos de o analisar e dar um parecer global sobre o processo”, disse ontem Maria Louro, um dos três administradores da EGEAC.
            Em aberto está também a hipótese de a Câmara Municipal de Coimbra participar numa “joint venture”, com consequente participação financeira, dado o acervo incluir exemplares de fado de Coimbra, diz Moças. Dada a diversidade do espólio, outras entidades poderão também estar interessadas. “Não é só a questão da aquisição. A concretizar-se a compra, tem que haver um objetivo e um investimento para o manter”, acrescenta Maria Louro. “A proclamação da República, por exemplo, não interessará à Casa do Fado...” (ver caixa).

Especialistas prontos para estudar espólio
            Os especialistas vão à residência e ao escritório do colecionador inglês – locais onde está o espólio, situados perto um do outro, a cerca de 70km de Londres.
            “Na maioria são discos das duas primeiras décadas, aqueles que não se encontram em lado nenhum”, diz José Moças, que já enviou à Câmara de Lisboa uma “lista pormenorizada”. “Todos os sítios que tenho contactado, arquivos nos EUA, em Inglaterra, seja onde for, ninguém tem nada. Escusamos de andar à procura porque não há”, garante o representante da Tradisom com mal disfarçado entusiasmo. “O que há em Portugal são discos em muito más condições e dispersos por vários colecionadores que ainda por cima nunca quiseram abrir mão de nada”.
            Se o negócio se concretizar, mal o espólio de Bruce Mastin aterre em Portugal, a Tradisom iniciará um trabalho de investigação, com duração prevista de cinco anos (para a sua totalidade, três para os espécimes de fado), por uma equipa “já constituída” de especialistas.
            Já houve várias reuniões sobre o assunto, nomeadamente com João Morais, chefe de gabinete do ministro da Cultura, Pedro Roseta, e com Paulo Cunha e Silva, diretor do Instituto das Artes (IA). “O papel do IA será dar apoio e um parecer técnico [através do gabinete de música]. Estão a decorrer negociações entre o colecionador inglês e a Câmara de Lisboa e o IA está atento às negociações”, disse ontem o gabinete de imprensa.
            Para o Ministério da Cultura, as negociações entre a câmara e o proprietário do espólio são “um dado adquirido”: “Neste momento não há qualquer verba reservada no ministério para a coleção porque é certo que será a autarquia a comprá-la. O ministério está a acompanhar o processo através do IA”, garantiu fonte do gabinete de Roseta.
            A compra permitirá que a génese do fado gravado seja ouvida pela primeira vez em Portugal. A história desta música juntará assim algumas pontas soltas. Mas não todas. José Moças identificou entretanto outras arcas do tesouro: novas gravações inéditas, na posse de colecionadores brasileiros e americanos, de fado também do início do século XX, de atuações de fadistas portugueses no Brasil e EUA.


Uma coleção única

A coleção de Bruce Mastin inclui cerca de 5000 registos áudio, em discos de 78 rotações, mais de metade já identificados como gravações das primeiras décadas de fado, em estado ótimo de conservação, que o britânico terá comprado há mais de 50 anos num armazém português (ver PÚBLICO de 2-05-2003). Outros exemplares do espólio incluem gravações, também do início do século XX, de teatro de revista, música popular, discursos e dois discos contendo uma reprodução da Proclamação da República Portuguesa, em 1910, gravada no ano seguinte. Entre os três milhares de exemplares de discos de 78 rotações gravados na primeira década do século passado, as primeiras de sempre do fado, contam-se as vozes de Reinaldo Varela, José Bastos, Isabel Costa, Almeida Cruz, Eduardo de Souza, Rodrigues Vieira, Delfina Victor e Maria Victoria. Igualmente importantes do ponto de vista musical e etnográfico são registos, mais tardios, de Maria Alice, Manassas de Lacerda, Avelino Baptista, Estêvão Amarante, Madalena de Melo, Maria Emília Ferreira, Júlia Florista e Maria do Carmo Torres, bem como dos mais conhecidos Ercília Costa, Berta Cardoso, António Menano, Edmundo de Bettencourt, Armandinho e Alfredo Duarte, o popular Alfredo Marceneiro.

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