Y 19|DEZEMBRO|2003
música|talking heads
Modern Talking
É a colectânea definitiva.
Não apenas mais canções sobre edifícios e comida; é um objeto que não cabe na
estante da pop de consumo. Quer dar uma prenda inteligente e obscena?
Por uma vez na
vida, saiu a antologia perfeita. “Once in a Lifetime”, dos Talking Heads, traça o roteiro e tira o retrato a uma das bandas americanas que, nos
anos 70, tirou o rock do lodo do punk e inventou a “new wave” cerebral.
Os Pere Ubu
tinham (e têm…) a esquizofrenia, a imagem certa do seu líder gordo e a essência
do rock de garagem injectada nas veias. Os Devo eram os palhaços cibernéticos
que lançaram a pop electrónica para um micro-ondas. Os Suicide rasparam o fundo
e recolheram as crostas. Os Television passeavam a elegância e a dose certa de
electricidade. Os Tuxedomoon apaixonaramse pela Europa e pelas suas valsas
enquanto os Residentes se “limitaram” a inventar um universo próprio, original
e apocalíptico que até hoje continua a esburacar a alma da música popular.
Foram estes os
pilares que, nos EUA, suportaram a passagem entre duas décadas – dos 70 coloridos
para o cinzentismo dos 80 – e ajudaram quem mal sabia afi nar a guitarra a
tornar-se músico a sério. Houve, é certo, outros, mas cuja infl uência para o
desenrolar do futuro não se fez tanto sentir: The Feelies, Ramones, Wall of Voodoo…
Os Talking
Heads tinham tudo isso – a loucura, o circo, a dor, a elegância e o dilúvio –
mais uma cabeça descomunal e o olhar acutilante que usaram para escalpelizar o
“american way of life”, através de música e de
imagens que recuperaram para o rock o conceito “arty” sem lhe tirar um pingo de
adrenalina nem tirar o tapete debaixo dos pés.
paraíso.
“Once in a Lifetime” é diferente das habituais colectâneas, a começar pelo
formato da embalagem: uma barra/livro de cartão com capa reforçada que, aberto,
medirá à vontade um metro de comprimento o que lhe retira, desde logo, qualquer
possibilidade de ser arrumada numa prateleira vulgar de CDs.
As imagens
exteriores parecem, à primeira vista, as de um calendário que copiou o estilo
de Gauguin. Na frente, um bebé rodeado de borboletas sorri para um casal de fi
lhotes de lobo. Poderia ser a imagem idílica do paraíso perdido. Abre-se o
“livro”, porém, e a inocência desaba. Uma mulher, em nu frontal com os detalhes
à vista, salta no ar em pose de ginasta. Um negro em bermudas pratica boxe
contra uma árvore. Um adolescente, também nu, sorri-se com expressão idiota,
indiferente a que lhe tenha sido arrancado o sexo, com o sangue (o artista não
poupou no vermelho) a escorrer por entre as pernas.
Há mais sangue
na árvore, outro lobo (este de ar feroz) e, completamente desfasado de tudo o
resto, um BMW negro. Tudo em cenário outonal, ouro, azul e mar. Adiante, num
segundo tríptico (com falsas divisões em “trompe l’oeil”): homens e mulheres
vestidos como vieram ao mundo, cujos pormenores anatómicos não poderiam ser
mais realistas, convivem com uma leoa, ao fundo a mesma paisagem, mas agora em tons
de Verão. A um canto, uma árvore tem gravado um enigmático “Valência 2001”. A fechar,
na contracapa, cinco mulheres (nuas), divertem-se num banho de folhagem, uma
delas alimentando um urso bebé sob o olhar de uma corça e uma leoa. Cada um
interpretará como quiser. Assinam a dupla Vladimir Dubossarsky e Alexander
Vinogradov.
Dissimulados
sob as pinturas, escondem-se os quatro CDs, três áudio – magnaninamente
remasterizados (incompreensivelmente não existe remasterização de nenhum álbum
individual dos Talking Heads!) – e um DVD. O livro, de 80 páginas, oferece tudo
o que o há para saber da história do grupo, da cronologia e pormenores de gravação
de cada disco a diversos ensaios sobre a banda (inclusive pelos próprios
elementos), passando por 127 fotos, com data e localização.
A música passa
em revista toda a discografia, da estreia “Talking Heads’77” a “Naked” (1988). Convém
começar mesmo pelo início, de maneira a soltar um “ahhhh!” de admiração perante
os três temas anteriores ao primeiro álbum, o swing de mel de “Sugar on my
tongue”, o single “Love – Building on fire”, com um extraordinário arranjo de
metais a preparar o terreno para a orgia funky de “Remain in Light”, e “I wish
you wouldn’t say that”.
No DVD
alinham-se 13 clips (três inéditos), intercalados por pequenos monólogos de
americanos anónimos, em alusões mais ou menos oblíquas ao conceito “Ao menos uma
vez na vida”. Oportunidade para se ouvir uma idosa contar como descobriu
tardiamente a sexualidade ou um adolescente congratulando-se por pequenos actos
de vandalismo cometidos em festas particulares (ao mesmo tempo que dá conselhos
de como se deve fazer). Os vídeos propriamente ditos incluem os clássicos “Wild
wild life”, “Burning down the house”, “And she was”, “This must be the place
(naive melody)”, “The lady don’t mind” e “Road to nowhere”, mostrando o que já
se sabia, que os Talking Heads eram imbatíveis na arte de projectar uma imagem
de modernismo desconstrutivista. Com um desconjuntado David Byrne a dançar como
uma marioneta e referências constantes a edifícios e objectos domésticos do
quotidiano, cruzamento de “ready-mades” e “cartoons” desenhados por um
assassino psicopata. A tranfi guração (vários rostos para o mesmo corpo)
funciona de forma invulgar em “Wild wild life”, contando com a participação, entre
outros, do actor John Goodman, ou com a sobreposição de rostos e labaredas de “Burning down the house”.
“More Songs about Buildings and Food”, título do segundo album, explica muita coisa. Vêem-se os corpos dos
próprios Talking Heads fragmentados num painel de centenas de polaroids, ao estilo
David Hockney, e uma fotografi a aérea do território dos EUA. O segredo, como
em Laurie Anderson, está nessa viagem-relâmpago entre a microscopia e a visão
aérea. A primeira, como na orelha ampliada até ao absurdo de David Lynch, em
“Blue Velvet”, desmonta as texturas, os tecidos, as células e os átomos de uma
realidade feita de logros e aparências. “You may ask yourself why”, canta Byrne em “Once
in a lifetime”, interrogando-se e
interrogando-nos sobre a vacuidade da sociedade de consumo, como voltaria a
fazer mais tarde no fi lme “True Stories”. A segunda, ver de cima, permite
captar o quadro completo, cada uma e o conjunto de todas as acções levadas a cabo
em simultâneo – a visão do poder.
No “clip” final, “Road to nowhere”, David Byrne repete a mesma dança desarticulada do início, “Once in a
lifetime”, correndo como um cavalo sem freio por uma estrada deserta ao encontro
do vazio. Pura ilusão. Está parado e é o caleidoscópio de luzes e sombras, dos
prédios e dos automóveis, das lojas e dos sacos de compras, das “diet cokes” e
dos “hamburgers”, dos “peep shows” e das estações de serviço, dos anúncios e das
ideologias, dos assassínios sem motivo e da crueldade sistemática, tudo e nada,
que gira em volta de cabeças demasiado despertas. Talking Heads. Elas falam.
Agora, graças ao quadro geral de “Once in a Lifetime”, deixa de haver desculpa para
não as ouvirmos.
Este Natal quer
oferecer uma prenda brilhante, inteligente e obscena? Faça o seu ar mais
inocente e
arrisque “Once in a Lifetime”. Ao menos uma
vez na vida.
TALKING HEADS
Once in a Lifetime
3xCD+DVD;
EMI. distri. EMI-VC
10|10
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