CULTURA
TERÇA-FEIRA, 9 DEZ 2003
Crítica
Música
The Doors ainda abrem as portas
do medo
THE DOORS OF THE 21st CENTURY
LISBOA
Pavilhão Atlântico
Domingo.
Meia sala.
Depois dos Rolling Stones
foi a vez de outra banda de veteranos (ou sobreviventes), The Doors, vir a
Portugal dar uma lição de rock. Confirmada, como muitos temiam, a ausência, por
doença grave (bastante grave, mesmo) do cantor Jim Morrison, a mítica banda
californiana conseguiu o improvável: recordar a energia apocalíptica da
formação original dos anos 60 e, ao mesmo tempo, provar que a música do grupo
sobreviveu em palco à passagem dos anos e ao passamento (faria ontem,
precisamente, 60 anos) do seu carismático vocalista, mantendo uma personalidade
própria.
Personalidade que no domingo, no segundo dos concertos no
Pavilhão Atlântico, em Lisboa, se viu ter nome: Ray Manzarek, teclista e força
viva dos Doors do séc. XXI, como agora se chamam. Para um público composto por
cotas contemporâneos do grupo na década de 60, mas também por uma camada mais
jovem que veio para se lambuzar com as canções mais conhecidas, previsivelmente
escutados na aparelhagem dos pais, como "Light my fire" ou
"Riders on the storm", Manzarek cometeu a proeza de conseguir, em
várias fases do concerto, perturbar e assustar uns e outros. Sobretudo quando a
faceta mais psicadélica e obsessiva dos Doors veio ao de cima, com o típico som
de órgão saturado de vibrato a funcionar como substância dopante e a guitarra
de Robby Krieger enlouquecida em solos de rachar a cabeça, ao mesmo tempo que
eram lançadas à cara da plateia palavras que o ácido e a revolta marcaram, na
origem, com cambiantes ameaçadores. De resto, o "são uns drogados!"
proferido por alguém na assistência foi o melhor elogio que se lhes podia
fazer.
As pessoas foram ao Atlântico para curtir, esquecendo-se que
os Doors, fazendo jus à reputação de banda maldita, sempre tocaram não para as
pessoas se divertirem, mas para as fazer pensar, sentir medo, voltarem para
casa diferentes. O espantoso é que, volvidos mais de trinta anos sobre o
cataclismo original, ainda o consigam. Sem Morrison, mas com um novo vocalista
que continuamente saltou da quase clonagem (o corte de cabelo, a roupa, os
gestos, mesmo alguns grunhidos e interjeições vocais) do original, para a
necessidade de se afirmar como músico autónomo na actual economia do grupo.
E se, nas canções instrumentalmente mais densas ou em tempos
rápidos, como "Roadhouse blues", "Break on through" ou
"Love her madly", a voz destilou fúria e uma genuína convicção rock,
já nos tempos arrastados de "The crystal ship" ou "People are
strange" fez-se sentir, de forma gritante, a ausência de Morrison e que,
apesar das aparências, há um abismo a separar o antigo do novo vocalista dos
Doors.
Houve nostalgia, claro, como não podia deixar de ser. Mesmo
as projeções que ao longo de todo o concerto ajudaram a criar uma ambiência
envolvente, mimaram os efeitos caleidoscópicos dos "sixties". E algum
folclore, dispensável. Como introduzir "Love her madly" com um
"We love you madly" dirigido ao público ou Astbury a erguer o copo
explicando que estava a beber um whisky ou a arrotar para o microfone, a
lembrar que sim, como Morrison, também ele é um rebelde. Só que, ao contrário
do outro, com uma causa... Dispensável foi também a forma como, no solo de
guitarra de flamenco de Krieger que antecedeu "Spanish caravan", se
procurou ultrapassar o problema de uma corda partida - pondo toda a gente a entoar
cânticos futebolísticos.
Fora isto (e Manzarek não resistir a tocar órgão com um dos
pés) não houve concessões. Manzarek susteve o edifício, marchou pelo palco em
pose marcial, agitou as mãos a medir as vibrações do ar e fez as segundas
vozes, subtis ou carregadas de pânico, provando que, depois de Morrison, é ele
o xamã e o portador das chaves que abrem as portas da percepção. Dois encores,
que incluíram um trovejante "Riders on the storm", "L.A.
Woman" e, a finalizar, uma versão alargada e massacrante de "Light my
fire", puseram os pontos nos "is". "Daqui ninguém sai
vivo" poderia ser, de novo, o mote. Imagine-se o que teria acontecido se
estes Doors do séc. XXI tivessem tocado, como faziam os do séc.XX, "The
end...". Mas talvez fosse demasiado cruel lembrarem-nos de que nunca, como
hoje, estivemos tão perto do fim.
EM RESUMO
Ray Manzarek
transportou o espírito e o som dos Doors dos anos 60 para a nova versão do
séc. XXI. Astbury não fez esquecer Morrison. Mas ainda conseguem assustar.
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