CULTURA
TERÇA-FEIRA,
16 DEZEMBRO 2003
Ninguém escapa ao
poder de “o meu precioso”
“O Regresso do
Rei”, terceira e última parte da trilogia “O Senhor dos Anéis”, estreia-se hoje
numa maratona de 12 horas, em conjunto com os dois capítulos anteriores. Frodo
e Sam salvam o mundo das garras de Sauron e Aragorn é coroado rei dos homens.
Antes de ser destruído, o anel brilha num festival de efeitos especiais. “My
precious!”
Começa hoje o fim
da jornada de Frodo e Sam para salvar a Terra Média. O “Anel Um” é destruído, o
rei dos homens sobe ao trono, o amor triunfa sobre o mal e os efeitos especiais
do filme arrasam tudo o resto, transformando a batalha final, em Gondor, contra
as forças de Sauron, num festim para os sentidos. “O Regresso do Rei”, terceira
e última parte da trilogia de Peter Jackson inspirada na obra-prima “O Senhor dos
Anéis”, de J.R.R. Tolkien, estreia-se hoje, à meia-noite, em duas salas do
complexo de cinemas Alvaláxia, a culminar uma maratona de 12 horas que terá
início às 14h, com a projeção da primeira parte, “A Irmandade do Anel”, na
versão alargada, à qual se seguirá a continuação da saga, “As Duas Torres”,
também na versão extensa. Entre cada filme haverá um intervalo de 45 minutos.
Porém e para grande infelicidade dos
fãs que não conseguiram comprar bilhete (12 euros, para a maratona completa),
esta sessão especial está já esgotada nas duas salas, depois de, nos últimos
dez dias, as “extended versions” de “A Irmandade do Anel” e “As Duas Torres”
terem sido exibidas no Alvaláxia.
Alda Ribeiro, 20 anos, estudantes, teve
que se resignar. Comprou bilhete para uma das sessões normais de amanhã. Viu os
dois primeiros filmes no dia de estreia, “tal a ansiedade”, e confessa ter ficado
“bastante surpreendida porque a tendência normal é o filme ficar sempre
bastante aquém do livro”. Gostou de “ver o modo como as personagens” que
idealizara “foram concretizadas no filme”. A sua preferida é Logolas, o elfo: “É
lindo, ainda mais bonito do que eu imaginava.”
O rosto dos heróis
“O Regresso do Rei”
não fica atrás de “A Irmandade do Anel” e “As Duas Torres” em
espectacularidade. Para quem não leu o livro, é um deslumbramento. A investida dos
gigantescos olifantes na batalha de Minas Tirith, capital do reino de Gondor, a
luta corpo-a-corpo de Sam contra a aranha Shelob ou o desabamento da cidadela
de Sauron são cenas de cortar a respiração. Mas alguns admiradores incondicionais
do romance de Tolkien condenam algumas “traições” à verdade do texto original.
É o caso de Pedro Silva, 18 anos, estudante, que leu os livros e viu os filmes,
preferindo, “de longe”, os primeiros: “O livro é muito melhor. Nos filmes, por
causa do ‘marketing’, tenderam a romantizar muito a coisa.”
Opinião idêntica tem Tiago Granja,
25 anos, neste momento a “fazer investigação na Faculdade de Farmácia”, também
ele conformado por não assistir à maratona, até por não ter visto as versões “director’s
cut”, as longas, dos dois primeiros capítulos. Mas tenciona ir ver “O Regresso do
Rei”, “o mais rapidamente possível”. Urgência explicada pelo gosto em “comentar
com outras pessoas que vão ver mais tarde”. Tiago leu o livro, daí considerar
“As Duas Torres” “um bocado deslocado”: “Tem partes que no livro não acontecem.
Está romanceado. Há personagens que não se conhecem nos livros que aqui se
conhecem logo desde o início do filme.” Elege Gandalf como personagem favorita.
Críticas ou adesão sem reservas são
afinal consequência do enorme fascínio que o filme exerce sobre todos. Tenham
ou não lido o livro. Os primeiros entram na aventura, passam para outro mundo,
deixam-se encantar pela desmesura dos cenários, pelo desenrolar da história ou,
simplesmente, pelo aparato visual. Os segundos comparam, apontando a ausência
de pormenores ou mesmo de segmentos inteiros da narrativa, até nas versões alargadas,
como a de Tom Bombadil (no primeiro filme), considerado imprescindível pelos
tolkenianos da linha dura. Mas mesmo esses reconhecem que o desenho dos ambientes,
dos lugares e das personagens faz jus às criações do escritor. Depois de vermos
o filme nunca mais voltaremos a ler o livro (sim os verdadeiros fanáticos não
se contentam em lê-lo apenas uma vez...) com os mesmos olhos.
Gandalf, Frodo, Sam, Merry e Pippin,
Gimli, Legolas, Aragorn, Saruman e Gollum, protagonistas de um vasto painel de
personagens que fazem de “O Senhor dos Anéis” um universo, física e
psicologicamente completo e complexo, passaram a ter um rosto. Homens, elfos e
anões, representantes de uma humanidade impregnada de ideais, em luta contra o
seu contrapeso bestial, duendes, gnomos e “trolls”, caricaturas grotescas
arrancadas às profundezas da Terra, entes telúricos desvirtuados e sujeitos a
terríficas manipulações pelos senhores do mal, adquiriram igualmente forma cinematográfica
convincente. E Gollum, assombrosa personificação da tragédia condição humana,
exemplo da linha ténue que separa o homem da besta, cuja metamorfose é determinada
pela dependência do anel, o seu “precious”, como é mostrado na cena inicial de “O
Regresso do Rei”.
Outras criaturas, boas, más ou fora
de qualquer moral, como o Balrog, o monstro do lago, os “ents”, Shelob, os
dragões montados pelos Nazgul, antigos reis, também eles subjugados pelo poder do
“Anel Um” e tornados nos mais temíveis servidores de Sauron, os descomunais
olifantes, mesmo os minúsculos insectos-fada, mensageiros de Gandalf, adquirem
uma consistência física que parece estar desde o início latente na trama
construída por Tolkien. Só Sauron continua representado pelo olho de fogo que
tudo vê, símbolo do poder e da vontade da mente luciferina.
Gigantes
Excluindo todos os
defeitos que se lhe possam apontar, a trilogia de Peter Jackson compreendeu um
dos aspectos essenciais da obra de Tolkien: que o que separa o nosso mundo,
pretensamente real, do mundo por ele idealizado, pretensamente imaginário, é
uma diferença de escalas. Em “O Senhor dos Anéis” o mundo e os seres que o
habitam são maiores (descontando, obviamente, os hobbits, e mesmo esses, no final
do livro, regressam ao Shire fisicamente alterados, mais altos do que do início
da aventura, e não apenas em virtude da beberagem mágica oferecida pelos
“ents”…). As águias, os olifantes (aberração gigantesca dos elefantes), as
árvores que sustentam a cidade élfica de Lothlorien, os palácios, fortificações
e estátuas de homens e anões, têm dimensões gigantescas. A dimensão dos mitos. Mas
mais importante do que essa arquitetura erguida à escala dos gigantes
(presente, de resto, nos nossos mitos históricos) é a grandeza dos sentimentos.
O heroísmo. Frodo, Sam, Gandalf, Aragorn, Gimli, Arwen, Legolas, Elrond,
Theoden ou Faramir personificam o sacrifício por uma causa, a amizade, a
generosidade, a coragem, a sabedoria. Ao nível do ideal mais puro: o amor.
É isso que em “O Senhor dos Anéis”,
o livro, toca mais fundo em quem o lê e em que, Jackson, no filme, toca apenas ao
de leve. Mesmo assim com intensidade suficiente para nos fazer ter vontade (e
força, e coragem, e pureza e…) de viajar do Shire do nosso conformismo até ao
Monte da Condenação, para aí renunciarmos ao poder e ao orgulho que foram
causas da Queda. E voltar a casa, na curva acima do destino. A narrativa de “O
Senhor dos Anéis” (o livro continua por mais umas eras…) termina com um suspiro
de Sam, infinito e pueril como um “Aleph” – onde a eternidade e o instante são
o mesmo e um só. Foi pena – no meio de tantos e grandes feitos – que Peter
Jackson não tenha reparado.
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