09/08/2014

"Krautrock" around the clock



Pop Rock

7 Maio 1997

“Krautrock” around the clock

O “krautrock” está vivo e recomenda-se. A estagnação a que chegou grande parte da música popular neste final de século levou a uma procura exaustiva de fontes que pudessem revitalizá-la. Havia um manancial à espera e por explorar. Local: Alemanha. Época: anos 70. Chamaram-lhe na altura “krautrock”, na falta de um termo melhor que pudesse designar a explosão de criatividade que entre 1966 e a eclosão do “punk”, em 1976, abalou o império pop anglo-saxónico.
Decorridos quase 20 anos, músicos e público partem de novo em busca da pepita dourada, numa corrida pelo tempo que confunde e estimula ao mesmo tempo. Julian Cope, com o seu manifesto em defesa do “krautrock”, acendeu o rastilho. Que estranhos nomes e não menos estranhos discos eram estes que o homem dos Teardrop Explodes defendia com unhas e dentes, com o entusiasmo de um fanático? Como uma rajada, entrava pelo final do século o relato de experiências insanas levadas a cabo por cientistas e magos loucos oriundos de uma nação, ainda e se calhar para sempre, marcada pelos fantasmas do pós-guerra. Faust, Amon Düül II, Can, Neu!, Cluster, entre uma multidão de outros nomes, chamam a atenção e os ouvidos para um admirável mundo novo que volta a despontar.
A pequena revolução que estes grupos operaram no seu tempo faz-se sentir hoje talvez ainda com mais intensidade do que há 20 anos. As bandas do pós-rock prestam-lhe vassalagem. Nos Estados Unidos, em Inglaterra, na Alemanha, grupos como os Tortoise, Ui, Trans AM, Kreidler, To Rococo Rot, Tarwater, Rome, Gastr Del Sol (de Jim O’Rourke, produtor de “Rien”, dos Faust), Stars of the Lid, Fuxa, Him, Jessamine, Earth, Sabalon Blitz, Magnog e Fridge assumem e expandem o lado mais experimental e tecnológico do “krautrock”, ao proclamar a importância de grupos como os Cluster, Neu! e La Düsseldorf.
Antes, já a “new age”, através dos novos planantes da Califórnia (Steve Roach, Robert Rich, Michael Stearns), buscara alento e alimento nos anos 70, na chamada “Escola de Berlim”, representada por Klaus Schulze, Tangerine Dream e Ash Ra Tempel. O mesmo se podendo dizer dos Kraftwerk, que influenciaram toda a cultura “tecno” dos anos 80. Anos 80 cujos corredores clandestinos foram percorridos, na Alemanha, por gente como Palais Schaumburg (de Holger Hiller), Pyrolator, Die Krupps, Der Plan, Einstuerzende Neubauten, Asmus Tietchens, Conrad Schnitzler, Peter Frohmader, Propeller Island, D.A.F., Klaus Krüuger, H.N.A.S., Cranioclast, P16.D4, Peter Schaefer ou Strafe Für Rebellion.
Mas a fatia maior e mais apetecível do bolo estava guardada para os pioneiros que nos anos 70 fizeram a síntese da memória e da melodia pop dos anos 60 (Beatles e Beach Boys) com o romantismo wagneriano, o espaço sideral, o LSD e a tecnologia eletrónica (então analógica) mais sofisticada.
Em 1997 assiste-se, finalmente, a um fenómeno que se julgaria impossível há poucos anos: a ressurreição dos grupos clássicos. Os Faust voltam a reunir-se e a gravar (“Rien” e “You Know FaUSt”). Os Amon Düül II regressam igualmente com um novo álbum, “Nada Moonshine”. Os Neu!, de Michael Rother e Klaus Dinger, idem com “Neu!4”. Mais recentemente, os La Neu Düsseldorf (designação um pouco redundante, reconheça-se...) gravaram também um novo disco. O mundo volta a ser dominado (mas alguma vez deixou de o ser?...) pela Alemanha.
O POP ROCK entrou na guerra entrevistando Stefan Schneider, o homem que manda nos Kreidler e To Rococo Rot, e Jaki Liebezeit, baterista de uma das bandas mais importantes do "krautrock" original, os Can, que os anos 90 agora homenageiam no duplo álbum de remisturas “Sacrilege”, por Brian Eno, The Orb, Sonic Boom e Bruce Gilbert, entre outros. Fornecemos ainda uma discografia e notas sobre os principais intervenientes, bem como alguma bibliografia geral disponível sobre o tema.


GRUPOS E DISCOGRAFIA FUNDAMENTAIS DO ROCK ALEMÃO DOS ANOS 70

Agitation Free

Influenciados pela música árabe no primeiro álbum, “Malesch”, cósmicos no segundo. Com Lutz Albrich, dos Ash Ra Tempel, Michael Honig (futuro Tangerine Dream) e Peter Michael Hamel, “2nd Edition” (1973).

Amon Düül II

Do grupo comunal designado por Amon Düül I derivou este núcleo dos que sabiam tocar. Rock inclassificável, gerado dos piores pesadelos do LSD. Reza a lenda que, nos concertos, cada músico estava sob o efeito de uma droga diferente. Os álbuns refletem esta mistura de universos paralelos, alternando longas improvisações anarco-cósmicas com canções surreais. “Yeti” (1970), “Tanz der Lemminge” (1971), “Wolf City” (1972).

Annexus Quam

Oriundos de Düsseldorf. Dos deslumbramentos psicadélicos do primeiro álbum, passaram ao “free jazz”, não menos empanturrado de alucinações, do segundo. “Osmose” (1970), “Bezeihungen” (1972).

Ash Ra Tempel / Ashra / Manuel Göttsching

A guitarra elétrica que veio do espaço por um dos nomes mais importantes da “Kosmische muzik”. Os Ash Ra Tempel eram os meninos bonitos do guru Rolf-Ulrich Kaiser, com as suas “acid jams” apontadas ao infinito. Já só, como Ashra, Göttsching aproximou-se da galáxia de Klaus Schulze, com passagem pela pop, o cinema de Phillipe Garrel e aterragem no minimalismo. “Schwingungen” (1972), “Inventions for Electric Guitar” (1974), “New Age of Earth” (1976).

Can

Mestres do ritual e dos ritmos do corpo. Filhos de Stockhausen, do “free jazz” e dos Velvet Underground, inventaram a música do espaço interior. No seu caso não faz sentido falar de músáca “cósmica”, mas sim de “música microcósmica”. O “beat”, enquanto átomo da hipnose. “Monster Movie” (1969), “Tago Mago” (1971), “Ege Bamyasi” (1972), “Future Days” (1973), “Unlimited Edition” (1976).

Cluster

Representam o lado mais experimentalista do “krautrock”. Primeiro chamaram-se Kluster, industriais “avant la lettre”. Joachim Roedelius, o romântico, e Dieter Moebius, o conceptualista, formaram uma das duplas recorrentes da música eletrónica alemã das últimas três décadas. Eno e Bowie assumem a sua influência, bem como a geração atual de bandas dos pós-rock. Fizeram trio com Brian Eno. “Cluster” (1972), “Zuckerzeit” (1974), “Cluster & Eno” (1977).

Harmonia

Associação dos Cluster com Michael Rother, dos Neu!, banda da qual exploraram o lado mais eletrónico e minimalista. Juntamente com os Neu!, constituem uma referência fundamental do movimento “punk”, pela redução do ritmo a uma batida primordial. “Musik von Harmonia” (1974), “DeLuxe” (1975).

Holger Czukay

Teórico dos Can, congeminou mil estilos e inovações. Com os Technical Space Composers Crew, na colagem de sons concretos e ambientais com fitas de “world music” na reciclagem do “dub”. Com a voz do papa. Com um sintonizador de rádio e um “dictaphone”. O último dos alquimistas. “Cannaxis” (1969), “Movies” (1979).

Faust

Com Frank Zappa e os Henry Cow, um dos nomes que declararam guerra à música pop do século XX. Popularizaram o termo “krautrock” num tema com este nome do álbum “Faust IV”. Na sua música, o paradoxo faz sentido e alógica exige a criação de novas linguagens. Recentemente voltaram a gravar, radicais como sempre, agora que o tempo finalmente os apanhou. “Faust” (1971), “So Far” (1972), “The Faust Tapes” (1973), “Faust IV” (1973).

Edgar Froese

O guitarrista e líder dos Tangerine Dream experimentou a solo o lado mais acusmático da música do grupo. “Aqua” (1974).

La Düsseldorf

Emblema da cidade, na visão mecanicista do percussionista Klaus Dinger, ex-Kraftwerk e ex-Neu!. “La Düsseldorf” (1976), “Viva” (1978).

Liliental

Supergrupo que juntou Dieter Moebius, dos Cluster, Conny Plank, produtor determinante no desenvolvimento do “krautrock”, Johannes Pappert, saxofonista dos Kraan, e o industrialista Asmus Tietchens. “Liliental” (1978).

Neu!

A máquina de ritmos binários de Klaus Dinger, sempre na sombra do que melhor eclodiu em Düsseldorf, aliada ao melodismo viciante e “easy listening” de Michael Rother. “Neu!” (1972), “Neu! 2” (1973), “Neu! 75” (1975).

Popol Vuh

Florian Fricke foi dos primeiros a levarem o grande “Moog” para dentro de uma catedral, mas depois a descoberta do cristianismo levou o seu piano para o céu. Um dos místicos da música alemã. Compositor de serviço de Werner Herzog. “In Der Garten Pharaos” (1972).

Klaus Schulze

Pai da música cósmica. Tocou bateria nos Psi Free e Tangerine Dream, estudou o catálogo do VCS3 nos Ash Ra Tempel e desapareceu, finalmente, entre os circuitos do sintetizador, abraçado a um busto de Wagner. Há quem adormeça ao escutar os seus “mantras” eletrónicos de 30 minutos e quem jure viajar com eles por outras dimensões. “Cyborg” (1973), “Mirage” (1977), “X” (1978).

Kraftwerk

Ralf Hütter e Florian Schneider estiveram sempre um pouco à margem do “krautrock”. Ainda experimentaram o ruído, nos Organisation e nos dois primeiros álbuns, mas com “Autobahn” aboliram a portagem que impedia a livre circulação nas auto-estradas da música de dança do mundo. Depois transformaram-se em robôs e fecharam-se no estúdio Kling Klang, de onde saem de vez em quando para fazerem pontos de ordem à música tecno. “Ohm Sweet Ohm”, “Kraftwerk” (1970), “Kraftwerk 2” (1971), “Ralf & Florian” (1973), “Autobahn” (1974), “The Man Machine” (1978).

Tangerine Dream

Papas da Escola de Berlim. Música onírica, banda sonora das divagações sobre a relatividade de Einstein. A religião dos eletrões. Tiraram o ritmo aos Pink Floyd abrindo no seu coração um pulsar. A primeira fase é “free rock” para tripar ao gosto de Julian Cope. Preferimos os espaços mais amplos rasgados pela formação quintessencial dos TD: Edgar Froese, Peter Baumann e Chris Franke. “Zeit” (1972), “Atem” (1973),”Phaedra” (1974), “Rubycon” (1975),

Walter Wegmüller

Wegmüller era um artista e mago cigano que o acaso fez cruzar com Timothy Leary, profeta e ideólogo do LSD, e com a turma inteira dos Cosmic Couriers, numa aldeia suíça onde teve lugar uma das desbundas de ácido de todos os tempos. “Tarot” (que inclui um baralho de Tarot desenhado pelo próprio) reflete todas as vertentes, virtudes e defeitos dos primeiros anos da “Kosmische Musik”. “Tarot” (1973).

Whithüser & Westrupp

“Acid Folk” que entusiasmou Rolf-Ulrich Kaiser, dando origem ao selo Pilz, subsidiário da “Ohr”, sede de todas as aventuras cósmicas. “Trips und Traume” (1971).

Nota: todos os discos disponíveis em CD.

À atenção dos curiosos: Achim Reichel, Brainticket, Bröselmaschine, Cosmic Jokers, Cozmic Corridors, Joachim H. Ehrig (Eroc), Embryo, Emtidi, Eulenspygel, ExMagma (não confundir com os franceses Magma), Gila, Golem, Sergius Gollowin, Grobschnitt, Guru Guru, Hoelderlin, Kraan, Mythos, Novalis, Out of Focus, Parzival, Pell Mell, Phantom Band, Release Music Orchestra, Sand, Thirsty Moon, Wallenstein, Xhol, Yatha Sidhra.


BIBLIOGRAFIA

“Krautrocksampler: One Head’s Guide to the Great Kosmische Musik – 1968 Onwards” – Julian Cope (ed. Head Heritage). Manual.

Um dos responsáveis pelo recrudescimento de interesse pelo “krautrock”. O entusiasmo e a linguagem de verdadeiro apreciador com que Cope nos descreve as suas descobertas contagiam. Alguma falta de rigor é compensada pelas histórias deliciosas que se leem como um romance, por exemplo todo o episódio do retiro suíço com Timothy Leary ou a paranoia de poder de Rolf-Ulrich Kaiser (“the kaiser”, como a dada altura lhe chama Cope), patrão e mentor dos Cosmic Couriers. Na discografia seleccionada é evidente o gosto do “acid head” pelas obras mais “tripantes” (mas também mais desconjuntadas...) do “krautrock”, privilegiando, quase sempre, os primeiros álbuns de cada artista, de que são paradigmáticos a inclusão da estreia dos Tangerine Dream, a profusão de discos dos Ash Ra Tempel das “acid jams” ou a totalidade da dispensável série dos Cosmic Couriers.

“Cosmic Dreams At Play – A Guide to German Progressive and Electronic Music”, de Dag Erik Asbjomsen (ed. Borderline Productions). Enciclopédia.

Notas informativas extensas, embora demasiado subjetivas e reveladoras da propensão do autor para valorizar discos pouco representativos. Vê-se que o autor aprecia acima de tudo o progressivo mais lamechas, na área do “sinfónico”... Discografias completas. A quantidade de entradas é razoável embora haja lacunas. Uma obra que perde, sobretudo, por um grafismo e “lettering” infelizes, como consequência de ser mais uma compilação de um amador do que um trabalho metódico. Reprodução, a cores e a preto e branco, de capas escolhidas de forma aleatória, com pouca atenção ao grafismo geral da obra.

“The Crack In The Cosmic Egg – Encyclopedia of Krautrock, Kosmische Musik & Other Progressive, Experimental & Electronic Musics from Germany”, de Steve Freeman e Alan Freeman (ed. Audion Publications). Enciclopédia.

O melhor e mais completo livro sobre “krautrock” editado até à data, ao contrário dos outros dois, estendendo-se pelos anos 80 e 90. Organizado metodicamente, inclui um mapa da Alemanha com a sinalização das cidades onde tiveram origem alguns dos grupos mais importantes, árvores genealógicas, um “top-100”, editoras, tópicos gerais e um glossário. As discografias são acompanhadas, para cada álbum, pela lista completa dos músicos participantes. Os textos são informativos, rigorosos e excitam a curiosidade. A seleção de capas, todas com reprodução a cores, é, por si só, um prazer à parte.

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