09/08/2014

Canibalismos [Jaki Liebezeit]



Pop Rock

7 Maio 1997

Jaki Liebezeit recorda os Can a propósito do álbum de remisturas

Canibalismos

Os Can foram um dos grupos mais importantes da cena musical alemã dos anos 70. A sua música, marcada pela espontaneidade e pela inovação, tinha a força de um ritual. Muito por culpa da batida hipnótica do baterista Jaki Liebezeit, um dos poucos “homens-máquina” de carne e osso. Entre histórias de vómitos, vodu e futebol, uma certeza: “Os Can nunca foram um grupo de ‘krautrock’!”

Admirador dos Kraftwerk e dos Einstuerzende Neubauten, sem nunca ter ouvido os Faust, Jaki Liebezeit compara a música dos Can a um jogo de futebol. As regras são conhecidas mas, iniciado o jogo, nunca se sabe o que vai acontecer. É esse sortilégio da incerteza e a precisão com que dominaram o acaso que fizeram a mística do grupo. Liebezeit desfez, diante do PÚBLICO, alguma dessa magia: “A música dos Can tornou-se inofensiva.”
PÚBLICO – Nos Can, ficou célebre a batida metronómica da sua bateria. Tratou-se de uma reação contra as suas raízes no free jazz?
JAKI LIEBEZEIT – Em parte, sim. Toquei free jazz durante um ano, mas não me sentia satisfeito, sentia necessidade de um ritmo que permanecesse constante. Foi nessa altura que tomei a decisão de tocar de uma maneira mais “monótona”.
P. – Desenvolveu alguma técnica especial?
R. – De início, tocava ao mesmo tempo que uma caixa-de-ritmos. Ao fim de 20 anos, posso dizer que consigo tocar como uma máquina.
P. – O efeito que a sua bateria provocava era equivalente ao das batidas eletrónicas da atual música tecno?
R. – É a mesma coisa. Estou atualmente a tocar bateria convencional numa espécie de tecno, ao lado de dois jovens músicos, em computadores de ritmo e sintetizadores. Vai sair em breve um disco.
P. – Nos anos 60 e 70 um concerto dos Can podia estender-se por sete ou oito horas...
R. – Acontecia, de facto, quando o público e o ambiente eram propícios. era um divertimento! Em todos os concertos tocávamos sempre de uma forma espontânea, não havia qualquer alinhamento prévio de canções, como acontece hoje. Às vezes tocávamos um único tema durante meia hora ou mais. Era tudo bastante improvisado, talvez “improvisado” não seja o termo indicado, mas essa tal espontaneidade. Como se conversássemos ou discutíssemos em palco. Podemos comparar com um jogo de futebol. As regras do jogo são conhecidas, mas, antes do jogo começar, nunca se sabe o que irá acontecer. Era esse o nosso sistema. O fundamental era o modo como fazíamos música no próprio instante. Ainda aqui há semelhanças com a cena tecno. Apesar de o som não ser o mesmo, existe uma idêntica abordagem na forma de criação, com a dispensa da escrita. Os Can nunca escreveram uma única canção. a música desenvolvia-se toda no estúdio, a partir de uma ideia qualquer.
P. - As pessoas costumavam falar de uma comunicação telepática entre os cinco membros do grupo. Era assim tão profundo?
R. - Não era telepatia, mas, na realidade, a partir de certa altura, a comunicação entre nós era tão boa que podia dar de facto essa impressão...
P. - Corria também uma estranha história acerca de certos ritmos vodu que lhe teriam sido ensinados por um certo personagem, mas que não podiam ser tocados ao vivo sem autorização, sob pena do infrator ser executado...
R. - Essa é outra história, mas que nunca aconteceu com os Can. A personagem de que fala era um tocador cubano de congas que veio para a América nos anos 50, chamado Chano Pozo. A mim nunca me ensinou nada...
P. - Mas há quem jure que você era capaz, num concerto, de voluntariamente fazer vomitar qualquer elemento da assistência...
R. - Mas isso pode acontecer com qualquer músico, se tocar muito mal! [Risos.] Bem, fiz de facto algumas experiências, quando tocava free jazz, mas as pessoas vomitavam por causa do som péssimo, penso eu...
P. - O LSD ajudou a criar a música dos Can?
R. - Não. A música é que devia parecer de tal modo estranha a certas pessoas que as levava a pensar que andávamos a tomar LSD a toda a hora. Admito ter tentado algumas vezes, mas sempre sem qualquer relação com a música. Música e drogas não combinam. A droga não faz tocar melhor, a única coisa em que pode melhorar aexecução é o que vem de entro do músico. A droga excita e revela apenas o lado cerebral.
P. - Tantas histórias em redor do grupo apenas comprovam que este se tornou uma lenda, não é verdade?
R. - Sim, mas apenas na maneira como fazíamos música. É isso que interessa aos jovens, saberem que não é preciso escrever primeiro, como aconteceu oa longo dos últimos séculos. Depois, nós e os Kraftwerk fomos os primeiros grupos a ter os nossos próprios estúdios, no nosso caso, um pequeno castelo nos arredores de Colónia. Mais tarde, mudámo-nos para uma sala de cinema.
P. - Até que ponto a música étnica influenciou a sua forma de tocar?
R. - Tirei, evidentemente, imensas ideias da música indiana, da árabe ou da espanhola. Vivi durante algum tempo em Barcelona, onde ouvia flamenco. Impressionou-me, pelos dançarinos, não pela dança em si, pelo modo como conseguem tocar o ritmo com os pés no chão, como se fosse uma bateria.
P. - O que eram exatamente as “Ethnological Forgery Series” (“séries de falsificação etnológica”) que apareceram nos álbuns “Limited” e “Unlimited Edition”?
R. - Foi mais uma piada. Sentávamo-nos a tocar umas músicas estranhas, em instrumentos acústicos, e acontecia que, por vezes, acabavam por soar a música étnica...
P. - Sentiu que a entrada de Rosko Gee e Reebop Kwaku Bah para os Can, em 1977, significavam o fim do grupo?
R. - Sim, mas não por causa desses músicos. Acabar, era apenas uma questão de tempo. Um grupo tem um tempo aproximado de vida, em termos criativos, de cerca de sete anos. Depois e sete, oito, na melhor das hipóteses, dez anos, a criatividade e a tensão entre os músicos desaparecem. Toda a gente conhece toda a gente. É como estar casado. Nos sete primeiros anos é bom, depois as pessoas divorciam-se. Os Can deixaram de tocar juntos, mas continuam a ser amigos, talvez até agora mais do que antes.
P. - Com qual dos dois vocalistas gostou mais de tocar, com Malcolm Mooney ou Damo Suzuki?
R. - Eram ambos excelentes músicos. Mooney trouxe para o grupo uma influência americana. Suzuki era mais caótico, mas também mais espontâneo, inventava as palavras enquanto cantava. Por exemplo, num tema como “Blue bag”, ele simplesmente viu, no chão do estúdio, uns sacos de lixo azuis e isso foi suficiente para fazer deles uma letra...
P. - Depois dos Can, envolveu-se noutros projetos e com outros músicos. Peço-lhe um comentário breve sobre cada um. Michael Rother...
R. - Fez parte de uma espécie de comunidade que existia em Düsseldorf, em torno dos Kraftwerk. Toquei com ele, como com muita outra gente, em estúdio, desde os Eurythmics, no início da sua carreira, aos Depeche Mode...
P. - Phantom Band...
R. - Um projeto breve que durou apenas dois anos. O conceito que esteve na sua origem nunca ficou bem claro.
P. - Phew...
R. - Gravei dois discos com ela. O primeiro, intitulado “Phew”, com Holger Czukay e Conny Plank, que, entretanto, já morreu. O segundo, “Our Likeness”, com membros dos Einstuerzende Neubauten, um dos grupos mais loucos da Alemanha.
P. - Jah Wobble...
R. - Um dos melhores baixistas que encontrei, sem dúvida um dos meus favoritos. Por norma, não gosto muito de tocar com baixistas, mas Jah é dos poucos com verdadeiro sentido rímico. Fizemos alguns concertos juntos, no ano passado. Há uns meses tocámos juntos em Inglaterra, com a Orquestra Filarmónica de Liverpool.
P. - O novo álbum de remisturas de temas dos Can, “Sacrilege”, o que lhe parece? Concorda com Irmin Schmidt quando ele diz que, no fundo, é apenas o mais recente desenvolvimento do “work in progress”, que foi, desde sempre, toda a música do grupo?
R. - Concordo. Se tivéssemos continuado a tocar juntos, talvez chegássemos a fazer algo parecido com a música deste disco, provavelmente até mais cedo... O espírito dos Can está completamente presente no álbum: uma espécie de liberdade.
P. - Os Can estão mais próximos, hoje, do seu tempo, do que estavam há 30 anos?
R. - Evidentemente. Nos anos 70, era mais difícil às pessoas assimilarem e aceitarem um som que era capaz de lhes soar um bocado alucinado. Quando ouvimos, hoje, a música dos Can, não soa, de modo algum, louca, mas como perfeitamente normal. Nos primeiros tempos do grupo, foi difícil arranjar um contrato para gravar. Achavam que era uma música demasiado excessiva. Hoje, pode-se considerá-la bastante inofensiva...
P. - O que pensa da atual onda de interesse em torno do chamado “krautrock”?
R. - Grande parte deve-se oa interesse suscitado plo livro de Julian Cope [“Krautrocksampler”, citado na bibliografia deste dossier”]. “Krautrock” que é, de resto, uma expressão bastante infeliz, inventada por um inglês maluco. “Krauts” era como chamavam aos alemães durante a II Guerra Mundial. O mais estranho é que os próprios alemães acabaram por aceitar o termo. A verdade é que os Can nunca foram uma banda de krautrock, pela simples razão de que nunca foram uma banda de rock!



Sem comentários: