01/02/2016

De quem é a culpa, Marianne? [Marianne Faithfull]

Y 22|FEVEREIRO|2002
marianne faithfull|música

Deram o braço a Marianne em “Kissin Time”, Beck, Etienne Daho, Billy Corgan, Jarvis Cocker e Damon Albarn. Não foi suficiente para afastar a culpa que enferma a carreira da cantora.

de quem é a culpa, marianne?

A vida e a música de Marianne Faithfull têm sido uma sucessão de máscaras e cicatrizes. De “groupie” inocente que fugiu de um colégio de freiras a “junkie” afogada no desespero, de princesa pop a megera, de amante de Mick Jagger a solitária militante, as últimas quatro décadas foram percorridas numa deriva musical que corresponde, afinal, ao corropio de choques existenciais que lhe sulcaram a voz e o rosto.
Foi a loura angelical dos anos 60 que chorava “As tears go by”, a “irmã morfina” dos Stones, a bruxa que tenta romper as malhas eletrónicas de “Broken English”, a dica weilliana de “The Seven Deadly Sins and Other Songs”, a “jazz singer” na noite dos sentimentos de “Strange Weather” (o seu melhor álbum), a voz de sonâmbula embrulhada nos esconderijos misteriosos de Angelo Badalamenti de “A Secret Life”. Uma mulher, enfim, que aos 56 anos continua a procurar paz e equilíbrio.
            A mais recente aventura discográfica é um álbum de colaborações, “Kissin Time”. Participaram artistas tidos como seus seguidores: Beck, Etienne Daho, Billy Corgan (dos extintos Smashing Pumpkins), Dave Stewart, dos Eurythmics, Jarvis Cocker, dos Pulp, Damon Albarn, dos Blur. Tem capa expressionista, colorida por manchas de tinta fosforescente, a tapar-lhe o rosto e o corpo. No interior as manchas transformam-se em formas abstratas. Tao abstratas como as emoções que atravessam as 11 canções? É o que procuraremos ver, faixa a faixa.

Sex with strangers
Primeira das várias participações de Beck que, além de compositor, se encarrega das programações, do sintetizador e da percussão e faz uma perninha nos apoios vocais. Com rótulo de “êxito” colado na cara, é o single evidente que soará entusiasmante para uns e vulgar para outros. “Sex with strangers/Maybe sex with someone else/You have nothing left inside/Bored, you’d try a little danger” (uma das canções do álbum “Blazing Away” chamava-se, aliás, “Passion for danger”…). Tal prática não será para todos e encerra riscos, mas pelo lado da música o risco é nulo: batida funky acompanha as palavras declamadas, algures entre D.A.F., Laurie Anderson e… Beck himself.

The pleasure song
A eletrónica de novo, ainda num registo convencional, mas com Marianne mais próxima do seu passado, numa canção assinada a meias por si, Etienne Daho e Les Valentins. “So much more to know”, garante ela com convicção. Concordamos em absoluto. Até porque “The pleasure song” poderia passar bem por uma canção dos Depeche Mode.

Like being born
Segunda presença de Beck na composição, e aqui também como guitarrista. Revisitação do passado, aos sonhos desfeitos, às promessas dos pais, a busca do tempo perdido. Proust disse o mesmo no seu calhamaço. A Marianne Faithfull basta-lhe sussurrar: “It’s like being born”. Vagamente country, tem o brilho das estrelas que não se conseguem tocar e é uma das melhores canções do disco.

I’m on fire
A nostalgia dos anos 80 ao ataque. Comercial até dizer chega, lembra mil e uma coisas, dos Yazoo aos farsolas neo-românticos. Serve para Marianne pedir amor (todas as canções do álbum falam de uma maneira ou de outra do mesmo, mas o que é que se há-de fazer, dizem que faz parte do compêndio…). É claro que não o recebeu e o tema passa depressa, mal servido por um Billy Corgan que, convenhamos, não terá sido nunca um Beethoven da pop.

Wheverer I go
De novo saído da inspiração de Billy Corgan, volta a soar a algo já ouvido, desta feita aos Velvet, matizados de Black e com a melodia apoiada num ritmo básico que, uma vez mais, conduz a música para os terrenos estafados da pop eletrónica das últimas duas décadas. O mesmo que Leonard Cohen pisou no recente “Ten New Songs”. Foi chão que já deu uvas, mas ainda cresceu nele um verso como “Da da da da da da da da da”.

Song for Nico
A música, co-composta por Dave Stewart, está longe de se assemelhar aos Velvet, o que não deixa de ser curioso uma vez que se trata de uma evocação de Nico que é também um lamento sobre a inexorabilidade do tempo. O fantasma de Cohen assombra novamente uma melodia que parece suspensa do contar da história, que Marianne desenha em traços largos embora não se tivesse esquecido de citar os nomes dos sucessivos amantes de uma artista que, depois de morta e sem que nada o fizesse prever, volta a estar na ribalta (edição de uma antologia, a canção “These days” incluída na BSO de “The Royal Tenenbaums”, de Wes Anderson). “She’s in the shit, though she is innocent”. Nico, entenda-se. Marianne já se deixou disso.

Sliding through life on charm
Ou como Jarvis Cocker conseguiu transformar Marianne Faithfull numa versão rock de Amanda Lear. O tema é decadente e “camp” à maneira dos Pulp – “Suburban shits who want some class/All quele up to kiss my ass/(…)And crepes who want to fuck a nun on drugs” –, mas funciona como descarga efetiva de algumas das paranoias jamais exorcizadas pela cantora, em particular o sentimento de culpa.

Love & Money
Entre Lou Reed e um sumo bebido nas Caraíbas, a “high life” segundo a visão sarcástica da cantora e de David Courts, seu colaborador de longa data e responsável por “Vagabond Ways”, canção que dá título ao seu anterior trabalho. “Is it a crisis? Is it a crime? Or is it a fantasy? Does it take time? Will it cost money? Will it mean love? See you at the parties, you’re never the same”. Muitas perguntas para uma resposta: “You hold your head high with one foot in the grave”.

Nobody’s fault
Beck e o seu grupo numa canção do álbum “Mutations” cederam a Marianne o papel de catalisadora da uma canção que percorre o amor das suas múltiplas vertentes, naquela estrada longa que une o inferno ao céu, a alegria e a perda, a inocência e a decadência. Eletrónica, presa numa orquestra de farsa, as águas estagnadas de um vibrafone criam uma atmosfera de agonia que, no final, se revolve na assunção final (uma vez mais) da culpa: “It’s nobody’s fault bit mine”.

Kissin Time
Outro tema de se fugir ou capaz de suscitar reações apaixonadas, consoante a empatia com a música dos Blur, já que Damon Albarn é aqui o compositor e segundo vocalista de serviço. Deliberadamente repetivivo, com uma batida pachorrenta e a voz irritante de Damon aos beijos nos Bee Gees de “Tragedy”. Não chega a ser uma tragédia, mas também não será propriamente a forma mais digna de preencher uma canção cujas palavras anseiam pela eternidade.

Something good
Mas pronto, “Something good”, “standard” pop composto nos anos 60 por Gerry Coffin e Ethel McCrae para os Herman’s Hermits, termina “Kissin Time” numa nota de otimismo. Ao mesmo tempo redime Billy Corgan, que ao assegurar todas as intervenções instrumentais consegue transpor o tom bubblegum do original para uma inusitada emulação dos Pet Shop Boys.

MARIANNE FAITHFULL
kissin time
Virgin; distri. EMI-VC

6|10

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