08/02/2019

Prata de casa [Argentina Santos]


Y 25|ABRIL|2003
música|argentina santos

prata da casa


Aos 77 anos, Argentina Santos continua a incluir o fado na ementa da sua alma e do seu restaurante. Ainda arranjou tempo para gravar um novo álbum.

“Não tenhas medo da fama/D’Alfama mal afamada/Que a fama às vezes difama/Gente boa, gente honrada”. A quadra, escrita num azulejo incrustado na parede logo à entrada do “Parreirinha”, quase se poderia aplicar ao modo como Argentina Santos, voz e nome de prata, optou por gerir uma carreira que só recentemente, quando, em 1994, Carlos do Carmo a convidou para estar presente num espetáculo no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, começou de facto a acontecer. Dona Argentina preferiu dedicar-se por inteiro à sua casa e aos seus petiscos. O fado e a culinária estão-lhe no sangue e encara as duas como arte. Nenhuma delas mais valiosa do que a outra.
            À hora de jantar, o Parreirinha enche-se lentamente de turistas. Argentina Santos está sentada, como sempre, à entrada, fazendo de anfitriã. Neste dia decide não cantar. Há ocasiões assim, em que o ambiente não se proporciona. É necessário que as pessoas estejam ali não só para ouvir cantar o fado mas que sejam capazes de o sentir da maneira mais profunda. Em vez dela, os estrangeiros podem ouvir Tina Santos. Aplaudem na mesma, à média luz, cumprindo o ritual. Argentina olha embevecida. A fadista que canta, as empregadas que servem à mesa, as cozinheiras fazem todas parte da sua família. Sente-se bem assim. Os espetáculos, como aqueles que deu no festival de Edimburgo, no Queen Elizabeth Hall em Londres, no Konzerthaus em Viena, no La Cité de la Musique, em Paris, numa digressão por Itália ou no Coliseu de Lisboa, e os discos, como o novo “Argentina Santos”, lançado na passada quarta-feira pela MVM, podem esperar. Afinal de contas não há fado melhor do que ser feliz.
            O novo disco demorou quanto tempo a gravar?
            Poucochinho. Eu chegava e todos os fados saíram à primeira. Só num é que o Jorge Fernando me pediu para lá ir outra vez mudar uma coisinha. Mas nunca canto o mesmo fado da mesma maneira. Quando havia uma falha qualquer, ele pedia-me para gravar só aquele bocadinho. Não ensaiámos nem nada. Tenho aí fados que nunca antes cantei.
            Consegue cantar tão à vontade no estúdio como no Parreirinha?
            Não é a mesma coisa mas, olhe, senti-me bem. Cantei os fados com menos meio tom, tinha a impressão de que não era capaz, mas ele achava que ficava mais bonito assim. Quando ouvi achei uma maravilha. Desde que a pessoa que está a tocar, toque, e eu comece a vê-lo sentir o fado… Ao ouvir um guitarrista, fico logo a conhecer a forma como reage, se gosta de acompanhar, se é fadista. Se o guitarrista não for fadista, a gente pode dar as voltas que quiser, que não vai lá…
            Preferiu manter-se fiel ao seu restaurante do que arriscar uma carreira como profissional. Porquê?
            Tenho a minha casa. Estou cá há 54 anos, foi feita com sacrifício. É como ter uma filha e criá-la. Depois, nunca fui pessoa para andar por aí a dizer “eu estou aqui, também sei cantar…”. Mas quando vim para aqui o meu companheiro, para me deixar cantar, era um caso sério, sabe, aquelas coisas dos homens antigos… Morreu, voltei a casar, mas ainda ficou pior, então cantar lá fora, fazer espetáculos e ganhar dinheiro, escusava de pensar nisso. Mas morreu também e fiquei… solta, com mais oportunidades de cantar para as pessoas e elas de me ouvir. Aí, o Carlos do Carmo, uma pessoa que gostava de me ouvir, veio ter comigo e convidou-me para ir ao Coliseu. Mas fiquei assim, “vais não vais”, a tremer por todos os cantos, e acabei por dizer que sim.
            Quantas vezes canta por semana no restaurante?
            Só quando vejo que há público que sabe. Quando vejo que não sentem, posso cantar dois ou três fados e muito obrigado, que vá cantar outra pessoa! Não canto marchas nem coisas com palmilhas, não é o meu género.
            Os restaurantes e casas de fado continuam a ser os melhores locais para se cantar o fado?
            Acho que sim. Quem não entrar e cantar nas casas de fado não terá um público que saiba ouvir. E não me venham cá com essa coisa do fado vadio, o que eu chamo fado vadio é fado espontâneo, pessoas para quem cantar é um alívio. Acho que os novos devem começar por cantar nas casas de fado.
            Está a pensar na atual vaga de novas fadistas? Tem alguma preferida?
            Sou amiga de todas elas, já cantei com todas, já fui ao estrangeiro com elas. Gosto de todas mas, e que me perdoem as outras, gosto mais da Ana Sofia Varela, é a mais fadista. Gosto muito da Mariza e da Mafalda [Arnauth], também, mas puxo mais para a Sofia. A Joaninha [Amendoeira] é uma menina doce que está a cantar melhor do que da primeira vez em que a ouvi, tem uma doçura e uma meiguice…
            Para se cantar bem o fado é preciso ter já experiência de vida, mais ou menos sofrida?
            Sim, sim! Não concordo que um menino ou uma menina de 12 anos ande a cantar o “Povo que lavas no rio” ou “Passaste com ela à minha rua”, são coisas para pessoas adultas, não para crianças. Elas têm muito tempo para sofrer. Há quem cante o “Povo que lavas no rio” porque já sabe que vai receber aplausos, só que 50 por cento desses aplausos são pela D. Amália. Depois da morte da D. Amália pôs-se toda a gente a cantar coisas dela. Acho uma asneira. Um artista, ao fazer do fado profissão, deve procurar os poetas, aprender as letras e cantar dentro do seu estilo, não é pôr um disco a rodar e tirar dele todas as voltinhas. Para se ser fadista tem que se ter trabalho.
            Como Amália Rodrigues, tenciona cantar até que a voz lhe doa?
            Tenho muita pena de estar a envelhecer e ter que deixar de cantar. Mas se continuar a ouvir cantar bom fado já fico muito contente. A D. Amália, o maior problema que teve nos últimos anos não foi a idade, foi a doença que lhe atacou a garganta. Mas ainda está por aparecer aquela que seja capaz de fazer o que ela fez. Além da voz linda, “estilou” coisas que hoje, quando a querem imitar, não estão a estilar, estão a gritar.
            No seu caso, uma das coisas que mais impressiona, é quando sobe aos agudos e parece voar como um pássaro…
            E às vezes não vou mais além para não exagerar. Mas isso, graças a Deus, ainda consigo fazer.
            Sai-lhe sempre bem?
            Não. Às vezes estou ali no meio da casa e digo assim: “só mais um fado que isto hoje nem a Amália! Desculpem mas isto hoje não está a sair como eu quero”. Não estou a sentir e ninguém me convence. Mas também é preciso ver que muitas vezes, nas casas ou nas festas, canta-se apenas um ou dois fados. Eu não, têm que me deixar cantar. Por vezes o primeiro fado não nos sai bem, a voz nem tempo tem para aquecer, depois no segundo já está melhor e é quando tem que se parar!
            Já deixou de participar em espetáculos por causa das suas obrigações no restaurante?
            Às vezes, em ocasiões em que há muito que fazer. Mas quando vou cantar lá fora deixo tudo bem orientado, tenho empregadas já com 40 anos de casa. Mas não recomendo nada a ninguém, cada um sabe aquilo que tem a fazer.
            Ainda cozinha?
            Quando os clientes me pedem, eu é que vou fazer o comer. Mas tive que deixar um bocadinho a cozinha por ter sido operada e já me custa estar muito tempo à frente do fogão.
            Cozinhar é uma arte?
            Eu gosto tanto de fazer comer como de cantar. É igualzinho. Adoro estar aqui em casa e ouvir o cliente dizer-me que está bom. E tanto improviso no comer como no fado.
            Mas aí não tem ninguém a acompanhá-la à guitarra…
            Quando muito posso pedir para me descascarem umas cebolas ou uns alhos mas o resto, quando me ponho em frente do fogão, é comigo. E posso garantir que aquilo que faço se pode comer (risos). Fazer o comer é uma coisa rica, um ato de amor.

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