25/02/2019

Requiem pela dama de negro [Nico]


13|JUNHO|2003 Y
ciclo|cinema


requiem pela dama de negro

Warhol viu nela o escândalo. Garrel a beleza da tragédia. Nico passou pela vida e pela obra de ambos da mesma maneira que a sua música marcou os Velvet Underground e deixou cicatrizes dentro de cada um de nós. Não se adora a lua impunemente. Para adorar, na Cinemateca, este mês.

Nico, cantora e atriz – diz o mini-ciclo na Cinemateca Portuguesa. Nico, mulher fatal. Philippe Garrel, cineasta. Ele afirmou um dia que fazia filmes para não se suicidar. Ela tomava comprimidos para dormir, comprimidos para acordar e comprimidos para viver. Costumava desfalecer sem razão aparente. Estavam destinados a encontrar-se e a viver um com o outro. Assim aconteceu até ao dia em que ela morreu, a 18 de Julho de 1988, às oito horas da noite, no hospital de Nisto, em Cannes, aos 50 anos, vítima de uma hemorragia cerebral provocada por uma queda de bicicleta, ao esbarrar contra uma árvore quando dava um passeio por Ibiza.
            Ele nunca se conseguiu libertar do fantasma e continua a filmar como se ela continuasse presente – a esfinge. A deusa da lua, como lhe chamavam. Nico e Philippe Garrel. Como antes tinham sido Nico e Fellini, Nico e Brian Jones, Nico e Alain Delon, Nico e Bob Dylan, Nico e Andy Warhol, Nico e Lou Reed e John Cale, Nico e Jackson Browne. Nico e Warhol é igual a Chelsea Girls (vai ser exibido no dia 18, às 21h30). Nico e Garrel é igual a La Cicatrice Intérieure (dia 25, às 21h30) e a Les Hautes Solitudes (dia 26, às 21h30).
            Nico e a morte. Morte que cada um podia ver a brilhar nos seus olhos azuis de cristal, na sua voz de mármore, na sua música de orgasmos gelados. Nico foi a lápide erigida ao rock dos anos 60 que sobreviveu pela década seguinte como uma máscara de cera mantida viva artificialmente por alguns dos homens que a veneraram como se venera a noite. John Cale, produtor de álbuns como “The End” e “Drama of Exile”, que fez dela a diva petrificada da new wave, do gótico e da eletrónica zombie. E Garrel, claro, que com ela viveu, com ela enlouqueceu e com ela filmou “La Cicatrice Intérieure” (1972), “Athanor” (1972), “Les Hautes Solitudes” (1974), “Un Ange Passe” (1975), “Le Berceau de Cristal” (1976), “Voyage au Jardin des Morts” (1978), “Le Bleu des Origines” (1979) e, já como presença fantasmática, post-mortem, “J’Entends plus la Guitarre” (1991) ou “Sauvage Innocence” (2001).

            serei o teu espelho. E, no entanto, Nico era outra. Quem, não se sabe. Não se soube nunca. Apenas que era loura mas que ficou imortalizada como morena, cor mais adequada às feiticeiras. Ou “another cooler Dietrich for another cooler generation”, como alguém a caracterizou, adivinhando-lhe o carisma de mulher fatal, sem saber até que ponto este “fatal” seria levado à letra. Apenas que não se chamava Nico mas Christa Päffgen (foi um fotógrafo que, aos 15 anos, em Ibiza, lhe pôs este nome, em homenagem a uma namorada morta, Nico Papatakis, a morte, sempre a morte). Apenas que não era cantora mas que a sua voz, vinda sabe-se lá de que abismos do ser, não teve paralelo em nenhuma outra intérprete da música popular. Apenas que não era música mas que a música que nos deixou, composta embora por outros, nos arrepia. Como um romance de Lovecraft em que uma personagem louca desenterra o “Necronomicon” para insuflar vida aos mortos.
            Nico foi, acima de tudo, uma personagem. Um molde. Um silêncio adequado à construção do mito. Com “Bitter dreams are made of this” afixado em cartaz.
            Garrel fez dela uma presença (ou uma ausência) de luz negra, personificação daquela eternidade que os poetas românticos Holderlin e Novalis encaravam como a dissolução final nas trevas, na grande noite universal, mãe dos sonhos e das quimeras. Em “Le Bercaeu de Cristal” a única voz que se ouve é a dela, declamando um poema, sobre a música do guitarrista Manuel Gottsching, dos Ash Ra Tempel (a BSO está disponível em CD numa belíssima edição da Spalax), designação então já encurtada para Ashra, de cuja formação fazia parte, precisamente, Lutz Ulbricht, amigo e empresário da cantora e antigo elemento do grupo de “krautrock”, Agitation Free.
            Podemos encadear algumas peças soltas. O que Gottsching/Ashra compõe é um mantra de sonoridades cósmicas que, progressivamente, coloca o espectador em transe, num cume mental a que o final do filme põe termo de forma abrupta, como uma ressaca instantânea.
            São as “altas solidões” de que Nietzsche fala na sua obra poético-filosófica e são deste filme as imagens que ilustram a capa de “The End...”, álbum de 1974, com produção de John Cale, de cujo alinhamento faz parte uma versão, ainda mais agonizante que o original, de “The end”, de Jim Morrison que, por sua vez, travou conhecimento com a germânica em moldes que a câmara de Oliver Stone filmou – em “The Doors- O Mito de uma Geração”, biografia ficcionada dos The Doors – de forma pouco católica, elipse que subentende uma sessão de sexo oral entre os dois, num elevador. Dificilmente representável como ícone sexual ou erótico, independentemente das sugestões de necrofilia que a sua figura pode induzir (há quem jure ter visto o seu rosto transformar-se numa caveira, durante um concerto realizado numa catedral em França nos anos 70) restava, ainda neste caso, a representação pela ausência ou pela redução à sexualidade despojada de qualquer sentimento. Nico, ainda e sempre, a pedra tumular sob a qual se escondem segredos insondáveis.

            a vida amarga. Christina Päffgen, ou Päfgens, ou Pfäffen, nasceu em Budapeste, em 1938, filha de mãe espanhola e pai jugoslavo (morto num campo de concentração nazi). Começou por ser costureira e, aos 13 anos, vendeu “lingerie”. Um ano mais tarde já trabalhava como modelo em Berlim. Participou pela primeira vez como atriz numa cena, filmada em Capri, de “For the First Time”, de Rudolph Maté, com Mario Lanza. Conheceu Ibiza e por lá ficou. A lua buscando a proteção do sol.
            De férias, em 1959, num “palazzo” em Roma, um amigo convidou-a para figuração em “La Dolce Vita”, de Fellini. Passeou-se no “plateau” com um candelabro nas mãos, numa festa. O realizador reparou nela (quem não repararia?) e convidou-a para participar no filme. Nascia o mito.
            Depois de assistir a aulas de representação no Actor’s Studio, de Nova Iorque, na mesma classe de Marilyn, conseguiu um dos principais papéis em “Strip-Tease”, de Jacques Poitrenaud. Gravou com Serge Gainsbourg o título-tema mas o single não foi editado, surgindo em seu lugar uma outra versão, por Juliette Gréco.
            Em 1964 conheceu Brian Jones, dos Stones, que a apresentou a Andrew Loog Oldham, então produtor do grupo. Gravou para o selo Immediate o single “I’m not sayin’”, composição de Gordon Lightfoot, com o guitarrista Jimmy Page, que se viria a notabilizar nos Led Zeppelin, e produção de Oldham.
            Uma relação amorosa com o ator Alain Delon, da qual nasceu um filho, Ari (há uma canção dedicada a ele, em “The Marble Index”) antecipou outro encontro, desta feita com Bob Dylan, que lhe ofereceu “I’ll keep it with mine” (mais tarde incluída no álbum de estreia da cantora, “Chelsea Girl”) e lhe dedicou “Visions of Johanna”, do álbum “Blonde on Blonde”. É Dylan quem, por intermédio do poeta Gérard Malanga, a conduziu à boca do lobo e da glória, Andy Warhol, que a convocou para participar nos seus filmes experimentais, como “The Chelsea Girls” (1966, mítico jogo de bobines intermutáveis das quais a cantora alemã protagoniza as marcadas com número de série 1, “Nico in kitchen”, e 12, “Nico crying”), “Screen Tests” (1964-66), “The Velvet Underground & Nico (A Symphony of Sound” (1966), “I, a Man” (1967, este com assinatura, na realização, de Paul Morrisey) ou “Imitation of Christ”.
            A sua vontade de fazer carreira como cantora, leva Warhol a integrá-la no espetáculo multimédia Exploding Plastic Inevitable e, consequentemente, nas gravações do mítico “álbum da banana” dos Velvet Underground, onde vocaliza três memoráveis composições de Lou Reed, “Femme fatale”, “All tomorrow’s parties” e “I’ll be your mirror”. Ao vivo, canta em clubes como o Blue Angel, acompanhada, além de Reed, Cale e Sterling Morrison, por futuros ilustres como Tim Hardin, Tim Buckley e Jackson Browne, com quem manterá uma curta relação e que lhe oferece as canções “These days” e “The fairest of the seasons”, ambas incluídas no disco solo de estreia.
            Mas os Velvet, no meio de disputas entre Cale e Reed provocadas pelo ciúme, não suportam a pressão de se verem ofuscados pelo brilho da estátua e despedem-na. É Cale, porém, quem relança a sua carreira a solo, ao produzir “The End...” (1974), já depois da cantora ter lançado em 1969 o que poderá ser considerado a sua obra-prima, “The Marble Index”, seguido do surreal “Desertshore” (1970), em cuja fotografia da capa se pode ver Nico numa cena do filme de Garrel, “La Cicatrice Intérieure”, que se estrearia dois anos mais tarde.

            o abandono. Após um interregno de sete anos, durante os quais assombra os palcos na companhia do seu “harmonium” (a sua imagem, de pé, hirta, atrás deste instrumento, é um dos primeiros paradigmas gráficos do “gótico”), do álcool e da heroína, compondo dedicatórias aos amigos mortos, reaparece com “Drama of Exile” (1981), já aureolada com o estatuto de “punk goddess”, concluindo-se a sua discografia a solo com “Camera Obscura” (1985), tentativa de reciclagem, novamente a cargo de John Cale, destinada a apresentá-la num novo formato eletrónico. Além destes álbuns, circulam no mercado quantidades consideráveis de “bootlegs”, coletâneas e arquivos ao vivo. Faltava esperar pelo fim.
            “Ibiza é o meu local favorito, é lá que hei-de morrer”, afirmou numa entrevista. O destino e uma árvore, contra a qual esbarrou durante o tal passeio fatídico de bicicleta, fizeram-lhe a vontade. Ela que também dissera: “Tenho o hábito de abandonar os sítios nas alturas erradas, precisamente quando algo de bom está prestes a acontecer-me”.
            O seu corpo repousa ao lado do de sua mãe, num cemitério na floresta de Grunewald, numa das margens do rio Wannsee, em Berlim. Pode lá ir-se, num velho autocarro que parte de hora a hora da estação de metro de Wannsee. De Inverno o cemitério fecha cedo. Conta-se que, durante o enterro, um grupo de amigos tocava “Desertshore” num gravador de cassetes. Quase juraríamos que a faixa final, “Le petit chevalier”. Onde Nico é conduzida pela voz de uma criança.

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