08/08/2025

Dead Can Dance - Aion

 Pop

 

NOITE ANTIQUÍSSIMA

 

DEAD CAN DANCE
Aion
LP e CD, 4AD


 











            Música antiga. Sons eternos. Longe, muito longe das convulsões epilépticas do rock, da pop e do restante entulho dos tops. Emoção concebida de silêncios e pequenas eternidades partilhadas. Música do Silêncio. O álbum anterior, “The Serpent’s Egg”, deixava adivinhar a fuga em direção ao tempo das catedrais, mas ainda não o definitivo adeus às notas do presente. Os Dead Can Dance habitam uma realidade anterior, refratando cores astrais, reinventando instantes e mitos ancestrais. Brendan Perry e Lisa Gerrard dão corpo a uma arte sem corpo material. As formas do seu sonho recuam à Idade Média, a trovadores, a castelos de reis suspirando porque as princesas suas filhas são presas do dragão. “Aion” foi gravado na Irlanda, terra das verdes lendas e da magia. Afasta-se deliberadamente do ritmo frenético dos dias atuais e citadinos. Renega sem apelo a cultura pop que se podia esperar estivesse na sua origem. Alicerça-se num passado revisto à luz da sensibilidade de dois jovens do século 20, para quem fazer música é a constante reatualização de uma dádiva de amor.

            A voz de Lisa Gerrard não encontra paralelo no resto do mundo das músicas para consumo das massas. Nem a sua maneira de cantar. A não ser que franqueemos as portas do outro mundo, da música antiga dos mestres Clemencic, Paniagua, Kecskes e das cantigas de amor e amigo de Figueras ou Esther Lamandier. “The Arrival and the Reunion”, “The End of Words”, “Wilderness” são magníficos exemplos da arte de vencer, pelo canto, a gravidade. Seria cântico gregoriano se não fosse interdito ao sexo que, como Duras literalmente define, “ocupa totalmente o espaço”, ao contrário do “forte” que “por ele passa e o atravessa” – o trespassa. Lisa Gerrard ocupa todo o espaço, abraçando com a alma inteira a essência dos primórdios do cantar. “The Song of the Sybil” (referenciada na capa como tradicional catalã do século 16, mas cuja origem remonta à Roma antiga, sucessivamente recuperada pelos monges ao longo de toda a Idade Média e interpretada em disco por Monserrat Figueras, acompanhada pelos Hesperyon XX) demonstra até que ponto a voz feminina pode abarcar as vastidões. Longa e solene reverberação vibrando na noite antiquíssima. E “Radharc”, mais mediterrânica e solar, de sugestões árabes, tão próximas também do berço medievo.

            Ao homem só foi concedido o privilégio de dizer as palavras de Luis de Góngora em “Fortune Presents Gifts not According to the Book” e ofuscar a luz divina em “Black Sun”, dos poucos temas em que a eletrónica nos recorda que vivemos no século da técnica e das grandes realizações inúteis. Porque no resto repicam os sinos de igreja e gemem as gaitas-de-foles em “As the Bell Rings the Maypole Spins” ou rangem profundamente as sanfonas em “Radharc”. “The Garden of Zephirus” é um interlúdio ambiental cantado pelos pássaros, pelo vento e pelos pequenos seres da Natureza. Sem palavras. Como “Saltarello”, dança italiana de autor anónimo do século 14, de fazer saltar bruxas, fadas, virgens pálidas e douradas e o ouvinte frente às colunas, se despreconceituado e capaz de compreender que o tempo, como Parménides dizia, é uma mera ilusão. A capa é belíssima – um pormenor do fresco de Hyeronimus Bosch, “The Garden of Delights” e “Aion”, a mais bela e inebriante flor desse jardim.

 

QUARTA-FEIRA, 25 JULHO 1990 VIDEODISCOS

O muro espetáculo [Roger Waters]

 CULTURA SEGUNDA-FEIRA, 23 JULHO 1990

 

200 mil ao vivo e milhões pela TV assistiram ao megaconcerto de Berlim

 

O muro espetáculo

 

Inacreditável era a expressão mais ouvida na Praça de Potsdamer, em Berlim, para qualificar a monumental encenação de “The Wall”, levada a cabo por Roger Waters, Leonard Cheshire e uma companhia de estrelas empenhada em fazer do dia 21 de Julho uma data inolvidável.

 

Se nem tudo foi perfeito, também não desmereceu da proverbial capacidade organizativa germânica. A Imprensa não se pode queixar. Foi estragada com mimos. No hotel três bonitas alemãs informavam sobre tudo, davam papéis e ainda por cima sorriam. Já no local do espetáculo, uma tenda gigantesca montada atrás do palco, fazia estendal de iguarias e bebidas à disposição dos esfaimados e sedentos jornalistas. Não se pense naquelas barracas “à portuguesa”, do estilo “coratos, febras e tintol”. Os alemães são um pouco diferentes e, quando querem, primam pelo requinte. Que, no caso, chegou ao ponto de arranjos florais dispostos sobre as mesas e o serviço de valquírias solícitas e peito “prateleira-tapa-a-visão”.

            Frente ao palco a multidão. Cerca de 200 000 pessoas estendiam-se pelo imenso recinto até perder de vista, algumas afastadas centenas de metros do palco. A festa começou logo de tarde. Primeiro só com o público, feliz apenas por estar ali, perplexo diante de um muro de 170 x 25m, quilómetros e toneladas de cabos, torres, andaimes, ecrãs e holofotes. Cenário grandioso pronto para um dos maiores espetáculos alguma vez realizados no planeta.

 

À espera da noite

espanto

 

            O ambiente geral era o de um novo Woodstock. Pacifismo, cor, bolas de sabão, corpos despidos e muita ideologia à mistura. Não se sabe se houve algum parto. Celebrava-se (obviamente) a queda do muro mas também algo mais, difusamente sentido como liberdade ainda mal saboreada. Berlim, após décadas de isolamento exorcizava-se e sublimava velhos medos e ânsias dissimuladas. Como a personagem criada por Roger Waters, condenada, após o julgamento, a enfrentar o outro lado. Crime e castigo. Como em Nuremberga. No futuro, como será?

            Os Frumpy, The Hooters, The Band e The Chieftains encheram a tarde e a paciência dos poucos que se dignaram dar-lhes atenção. Os “The Band”, pelo passado ilustre, mereciam mais respeito. Ninguém lhes ligou nenhuma. Quanto aos The Chieftains, a sua música tradicional da Irlanda provou que é diferente tocar num pub para 50 pessoas de copo de whisky na mão e para 200 000 à torreira do sol. A harpa e a gaita-de-foles celebraram como puderam o sol que se escondia. Mas do que toda a gente estava à espera era que a noite do espanto chegasse. Por fim, desceu a escuridão e fez-se luz. Com meia-hora de atraso em relação ao previsto, fogo-de-artifício, explosões e a queda de minúsculos para-quedistas. A partir deste momento o mundo inteiro viu pela televisão.

            A mobilidade da câmara televisiva permitiu a milhões de espetadores ver muito mais que os milhares reunidos na Potsdamer Platz. Pormenores como “close-ups” sobre os músicos ou do que se passava por detrás do muro, escaparam ao olho nu dos presentes no local. O concerto começou mal, com falta de som de retorno, levando mesmo a que Ute Lemper se recusasse a cantar o tema que lhe era destinado. Mas tudo bem: afinal o que todos queriam era ver a desmesura do espetáculo, os fumos, as luzes e os helicópteros – a construção da ilusão.

 

Sentir a História

 

            Por outro lado, era importante participar, “sentir” a História, através da encenação da história de Pink (alter-ego de Waters em “The Wall”), inserida num novo contexto. O muro tornou-se plural, símbolo fácil da coerção da liberdade. A réplica reduzida a escombros certifica a queda do original. O ritual da encenação confirma o facto histórico. Paradoxo: a ilusão certifica o real.

            Na primeira parte, foram momentos altos o aparecimento do boneco insuflável representando “o professor”, durante a prestação de Cindy Lauper em “Another Brick in the Wall” e a sentida interpretação de Joni Mitchell em “Goodbye Blue Sky”. Bryan Adams cumpriu a sua parte e Jerry Hall fez de “groupie” enquanto Waters/Pink deitava o televisor pela janela em “One of my Turns”, uma das melhores canções do disco.

           

“Fomos nós que o derrubámos”

 

            No intervalo publicitaram-se a justa causa do “Memorial Fund for Disaster Relief” e a British Airways. Imagens projetadas sobre o paredão, de dor e sofrimento de pessoas concretas, e de figurantes anónimos formando a imagem de uma marca. O muro normalizou, nivelando o horror e a banalidade. Impensável e dispensável.

            A ambulância e a seringa descomunal de “Comfortably Numb” foram os adereços que conduziram ao clímax de “Bring the Boys Back Home”, com orquestra, coro e uma banda militar soviética tocando em crescendo enquanto no muro se projetavam imagens e nomes alusivos às vítimas da guerra. Em “Run like Hell” e “Waiting for the Worms” reinou o porco insuflável de olhos vermelhos e a ameaça do totalitarismo tresloucado.

            No julgamento destacaram-se Marianne Faithfull, no papel de mãe e a figura de Thomas Dolby em contorções de pesadelo. No apoteótico derrubar final de “The Wall”, a multidão rejubila. “Fomos nós que o derrubámos” – parecem gritar milhares de gargantas alemãs, exultantes na recuperação da identidade perdida.

            O espetáculo encerrou com um “Do They Know it’s Christmas” de ocasião, as personagens “más” arrependidas, cantando em coro as virtudes da paz reencontrada e jurando que a maré mudou. Resta saber para que lado.

            Tudo acabou como começou – com fogo-de-artifício e focos de holofotes varrendo o céu de Berlim.

23/07/2025

O Muro em espetáculo [Roger Waters]

 

SÁBADO, 21 JULHO 1990 local

 

RTP

 

O Muro em espetáculo

 

JONI MITCHELL, Sinead O’Connor, Cindy Lauper, Marianne Faithfull, Bryan Adams, The Band, Scorpions, Jerry Hall, Ute Lemper, Tim Curry, Thomas Dolby, Albert Finney, a Orquestra Sinfónica de Radiodifusão de Berlim Leste, a Banda das Forças Soviéticas na Alemanha, gigantescos bonecos insufláveis, helicópteros e holofotes sobre a multidão, são alguns dos elementos participantes na edificação de “The Wall”, hoje, em Berlim, frente às portas de Brandenburgo. Roger Waters acedeu a encenar ao vivo a sua fantasia, gravada para a posteridade dez anos antes da queda do muro da vergonha. A causa justifica os meios e o empenhamento. A ideia é do veterano de guerra Leonard Chishire – contribuir com a receita para a criação de uma bolsa permanente de auxílio às vítimas de acidentes e catástrofes. Pretende-se angariar  uma quantia de 500 milhões de libras esterlinas, 130 milhões de contos em moeda portuguesa, equivalentes a 5 libras por cada vítima dos conflitos bélicos deste século, num total de óbitos estimado em cerca de 100 milhões. Recorde-se que o pai do antigo baixista e vocalista dos Pink Floyd faleceu na Segunda Grande Guerra e que a história da personagem principal de “The Wall”, interpretada no filme de Alan Parker por Bob Geldof, descreve, em tons de pesadelo, o percurso biográfico do autor dos recentes “The Pros and Cons of Hitch Hiking” e “Radio K.A.O.S.”. O grandioso concerto desta noite, que poderá ser visto via satélite por milhões de telespectadores em todo o mundo, constituirá um dos maiores jamais realizados, contando, para além das prestações musicais, com projeções animadas e a encenação teatral da sequência do julgamento, um dos “clímaxes” mais fortes e angustiantes de “The Wall”. Há 600 pessoas envolvidas na produção do espetáculo cuja assistência se espera que ronde os 200 mil. João Filipe Barbosa comenta, dos estúdios da RTP. Antes, está prevista a exibição de um documentário sobre o muro de Berlim.

            Canal 1, às 21h00

Vozes de África [Ladysmith Black Mambazo]

 

Na capa

As cores do Verão

 

Estiveram no “Graceland” ao lado de Paul Simon. Participaram no vídeo “Moonwalking”, de Michael Jackson, e foram à “Rua Sésamo”. São os Ladysmith Black Mambazo e cantam “a capella”. Em Lisboa – onde atuam no Verão 90 – a voz dos anjos também será negra.

 

VOZES DE ÁFRICA

 



Fala-se em música africana e ouvem-se batuques. Afluem ao espírito imagens de selva, savana, fogueiras noturnas perturbadas por olhos na escuridão e rugidos que se desejam ao longe. Mas África é também do Sul e o “apartheid”, Nelson Mandela, grandes cidades e o tribalismo afastado para o lado, mas constantemente a gritar os seus direitos.

            Os Ladysmith Black Mambazo são sul-africanos, negros e não tocam tambores. Cantam. Maravilhosamente e “a capella”, hinos religiosos e temas populares e tradicionais do seu país. O canto “a capella” é o estilo vocal em que cada cantor entoa uma linha melódica diferente, uns em voz grave, outros em voz menos grave e por aí acima até aos gorjeios soprano do topo da escala. O feito total é a harmonia perfeita – como acontece com os Manhattan Transfer, os grupos de espirituais negros ou o Coro de Santo Amaro de Oeiras.

            O nome do grupo significa “enxada preta de Ladysmith” e grande parte do seu reportório inspira-se no estilo “mbube”, indissociável da cultura zulu, e na “Isicathamiya”, cantada pelos trabalhadores negros que foram levados à força para longe das casas e famílias para trabalhar nas minas exploradas pelo branco. O seu mentor, Joseph Shabalala (“Bekezizwe” em zulu, “homem líder”) trabalhou nas minas. A sua música irrompe do sofrimento e da harmonia dos sonhos, como ele gosta de afirmar. Convenceu alguns dos seus familiares a partilharem desses sonhos e a materializarem-nos na voz.

            Costumam tocar um pouco por todo o lado, mas especialmente em igrejas e centros comunais. Já o fizeram também em prisões, em escolas secundárias e nas grandes catedrais. Participaram na “Rua Sésamo” e nos espetáculos “Saturday Night Live” e “The Tonight Show”, bem como no vídeo de Michael Jackson, “Moonwalker”. Além de cantarem, narram provérbios e contam histórias e anedotas da sua tradição. Trazem as raízes ancestrais para a cidade e encantam sempre.

            Costumam utilizar a língua materna zulu – por isso poderá haver quem não entenda as palavras. Mas a música, todos a sentem, e a mensagem passa. Fora dos limites estreitos do Sul do continente negro, para o resto do mundo. Em discos avidamente escutados pelos ocidentais, sempre dispostos a consumir e a devorar novas e diferentes sensibilidades, que apelidam invariavelmente de “exóticas”. Que nos façam bom proveito.

            Paul Simon (em zulu, “Vulindlela” – “aquele que abriu o portão”) não deixou escapar a ocasião e utilizou, com ótimos resultados, as vozes africanas no álbum “Graceland”. Mas os Ladysmith Black Mambazo têm discos só seus. Ao todo vinte e oito. Os mais recentes dão pelo nome de “Inala”, “Umthombo Wamanzi” e “Two Worlds, One Heart”, este último concedendo espaço aos instrumentos e à eletrónica, incluindo um “Zulu-Funk-Rap” ao lado de George Clinton e com honras de edição em CD.

            O importante é intuir a voz da terra irmanada com os cânticos do céu. A dança tribal invadindo a selva urbana. Para os Ladysmith Black Mambazo há “Two Worlds, One Heart”: “Dois mundos – a terra e o paraíso – e um coração, poder único que se ergue acima do mundo e conduz à paz e unidade de todos os povos do planeta”, como eles explicam.

 

LISBOA, Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, 5ª, às 22h.

 

 

A SEMANA SEXTA-FEIRA, 20 JULHO 1990

 

22/07/2025

Entre dois muros [Pink Floyd]

 

Na capa

 

ENTRE DOIS MUROS

 

Passada uma década sobre a edificação de “The Wall”, Roger Waters, dissidente dos Pink Floyd, regressa nos papéis de arquiteto e carpinteiro. O muro volta a ser erguido. Em Berlim, claro, sobre os escombros do outro e com honras de transmissão televisiva em todo o mundo.

 


Os muros separam e protegem. Escondem e dividem. Existem duas espécies distintas: ou de cimento ou qualquer outro material sólido e aqueles mais subtis, invisíveis, construídos metodicamente só do lado de dentro. Os primeiros podem ser destruídos, deitados abaixo com maior ou menor dificuldade. Os segundos utilizam materiais indestrutíveis e flexíveis que resistem às pressões exteriores e às pancadas. Moldam-se a elas. Adaptam-se. Os seus construtores são fabulosos arquitetos, peritos na minúcia com que delineiam mirabolantes fantasias. Fantasmas criados com todo o cuidado, mantidos vivos e atuantes graças a um constante apelo ao medo, memória e imagens de monstros infantis.

 

Ascensão e Queda

 

            Em finais de 1979, Roger Waters, músico e letrista dos Pink Floyd, banda emblemática do psicadelismo, constrói um muro descomunal gravado para a posteridade num disco chamado simplesmente “The Wall”. “O Muro” pertence ao grupo das construções mentais inabaláveis e impenetráveis. Decorridos dez anos a História confirma a regra atrás enunciada. Uma das mais sólidas paredes jamais erguidas por mãos humanas revelar-se-ia, finalmente, apenas um amontoado de tijolos. A 9 de novembro de 1989, cai o muro de Berlim, sinónimo de terror e divisão, vergado às rajadas do vento dos novos tempos.

            No próximo dia 21 de Julho, o muro volta a ser erguido. Desta vez como simulação e símbolo. No próprio local onde se abriu passagem entre as duas metades de um todo nacional, Roger Waters constrói de novo a sua monstruosa fantasia, sublimada em espetáculo gigantesco. O fingimento substitui o horror, o “rock”, orgia mediática, multiplicando as referências e paradoxalmente funcionando como veículo normalizador de uma realidade complexa, unificada numa estratégia de massificação simplificadora. Exorcismo simbólico e coletivo sintetizado num único conceito – o muro.

 

Catástrofes

 

            A multidão que se concentrará nessa ocasião na Praça Potsdam, em frente à Porta de Brandenburgo, em plena “terra de ninguém” situada entre as duas antigas fronteiras, participará inconscientemente num acontecimento único, mas não ao nível do que será universalmente alardeado e difundido. Oficialmente, o concerto organizado por Waters e Leonard Cheshire, veterano aviador na Segunda Grande Guerra, tem como objetivo angariar fundos para uma bolsa permanente de auxílio às vítimas de catástrofes e acidentes, o Memorial Fund for Disaster Relief, funcionando por acréscimo como evocação e homenagem às vítimas dos dois conflitos mundiais e das não menos mortíferas sequelas da Coreia ou do Vietname. Recorde-se que o pai do antigo baixista e vocalista dos Floyd, também aviador, morreu num acidente da Guerra de 1914-18 e que a sua ausência é precisamente um dos fantasmas que assombram “The Wall”, o disco, abrindo caminho para a emergência do oposto matriarcal, personificado na mão zeladora e castradora.

 

O Eterno Retorno

 

            Depois de amanhã, num superespetáculo que, para além de Waters, contará com Joni Mitchell, The Band, Marianne Faithfull, Cindy Lauper, Sinead O’Connor, a Orquestra e Coro do Exército Vermelho e bandas militares, milhares de pessoas serão de novo emparedadas e embaladas nos braços quentes e protetores dos seus próprios fantasmas, na tal “no man’s land”, estrato indefinido e uterino, terra de novo fértil e semeada onde voltarão a crescer os frutos envenenados de renovados e pujantes nacionalismos. A mãe-pátria recupera a sua vocação telúrica, capaz de gerar filhos solares ou monstros disformes (como aqueles que flutuarão ameaçadores sobre a multidão durante o concerto), consoante for fecundada pelo macho do poder, em amor ou em paixão. A História nunca se repete? Ou vivemos todos adormecidos no seio de novos espectros totalitários? Não é a própria desmesura do espetáculo anunciado, em que cada espectador se quedará subjugado por um excesso de imagens e sons à escala não humana (como as figuras e o estádio monstruoso no interior da capa de “The Wall”), reduzido à condição de simples número manipulado como um fantoche, manifestação evidente de subtil totalitarismo? O indivíduo perdido na multidão e no gigantismo massificador obedece cegamente aos estímulos sonoros e visuais. Moderno ritual de obediência a ídolos que em vez do facho imperial empunham guitarras elétricas. E canções do “top” substituem hinos guerreiros. Há sempre um “Führer” disposto a gritar “slogans”. O “rock está à inteira disposição de candidatos.

            O que se pretende da celebração e festa encobre afinal mais sinistras formas. As boas intenções cumprem-se no prolongamento contemporâneo de mal enterrados horrores. Evocam-se antigos fantasmas para os exorcizar ou para os venerar? Convocam-se os mortos para celebrar a vida, esquecendo que morte e vida formam a dupla face de um mesmo rosto. O super-homem nietzschiano, como a criança, é inocente e despreza ambas com soberana alegria. Quem preside afinal à reunião, Apolo ou Dyonisius? O sol ou o solo? Berlim volta a ser centro do mundo. Destruído o muro que dividia alguns e protegia outros, o espetáculo “The Wall” volta a suscitar eternas dúvidas e recônditos receios. O novo fantasma chama-se Europa.

 

QUARTA-FEIRA, 18 JULHO 1990 VIDEODISCOS

Tijolo a tijolo [Pink Floyd]

 

Na capa

 

TIJOLO A TIJOLO

 


            A loucura tem sido boa conselheira dos Pink Floyd. Pela formação britânica, responsável pelo nascimento e bom nome do psicadelismo dos anos 60, passaram pelo menos dois dos seus cultores: Syd Barrett, esquizofrénico com carimbo clínico, e Roger Waters, psicótico controlado que soube fazer render o peixe, isto é, a paranoia, ao preço de ocasião e com a indústria a apoiar.

            Syd é lenda. Perdeu-se na violência dos seus sonhos e alucinações. Escrevia pequenas histórias sob a forma de canções. Quando entrava no estúdio, o seu eterno estado sonambúlico transformava-se em delírio criativo. Compunha pequenas obras-primas. Cantava e tocava guitarra como se estivesse sozinho no Universo. Jogava com ninguém ao dominó, numa casa inglesa, daquelas escuras e antigas, cheias de fantasmas. Sempre em dias de chuva. Jogava enquanto esperava. A chuva nunca parou e a princesa que chegou não era a prometida. Espalhou as peças pelo chão e levou-o para o armário dos papões. Deixou testemunho das suas visões em “The Piper at the Gates of Dawn”. 1967, ano de todos os sonhos, para Syd, o início do pesadelo. Nunca mais veremos Emily tocar.

 

Viagens espaciais

 

            A partir do ano seguinte, o seu amigo Roger Waters inverte o sentido da viagem. Das estrelas na cabeça do gnomo Barrett para os grandes espaços cósmicos exteriores. Toma os comandos e aponta a nave para o coração do Sol (“Set the Controls for the Heart of the Sun”). “Interstellar Overdrive” estendida até às dimensões épicas do absoluto. A sua maior ambição era compor a banda sonora do “2001”, de Kubrick. Ficou-se pelos tons “hippies” de Antonioni em “Zabriskie Point”, perdido nas selvas luxuriantes da “La Vallée”, de Barbet Schroeder.

            O tom épico e desmesurado que a música dos Pink Floyd demandava foi encontrado afinal na Mãe Terra. “Atom Heart Mother” (1970), viagem infinita por lado nenhum, acompanhada de orquestra e coros, em longa suíte que depurava até à perfeição as premissas enunciadas no compêndio psicadélico. Para trás ficavam “A Saucerful of Secrets” (1968) e a obra-prima incompreendida “Ummagumma” (1969), duplo álbum magistral, dos poucos verdadeiramente experimentais da época. No segundo disco, cada um dos quatro Floyd mostrou até que ponto a loucura se pode estruturar em obra de arte. Um dos temas chamava-se “Several Species of Small Furry Animals Gathering Together in a Cave and Grooving with a Pict”. Nunca antes no rock a natureza tinha cantado tão estranhamente como aqui.

            “Meddle” (1971) prolongava o segundo lado da “Atom Heart Mother”. Música de sol, mar e lonjura. Os Floys espraiavam-se indolentes pelas vastidões aquáticas de um sonho momentaneamente aquietado. Os pingos de “Echoes” reverberando num adeus pacificado à década finada. Com “The Dark Side of the Moon” (1973), a máquina dos dólares começou a faturar. “Welcome to the Machine” – os filhos pródigos regressavam ao lar, acolhidos de braços abertos pela indústria maternal. “Atom Heart Mother” permanece até hoje nos tops americanos. Waters é emparedado. Tijolo a tijolo, o muro começa a ser erguido. Em “Wish You Were Here” (1975), olha-se para trás, em busca de Barrett. “Shine on you Crazy Diamond”. Mas o diamante não voltará a brilhar. Os Pink Floyd perdem-se no caminho. “Animals” (1977) é um fracasso a todos os níveis. A banda, um mero grupo de suporte de Roger Waters.

 

A grande explosão

 

            A explosão redentora dá-se finalmente no último ano da década. É o grande exorcismo de Waters, que finalmente se assume como alma exclusiva dos Floyd. Libertam-se medos e paranoias durante anos acumulados. A história de “The Wall” é a biografia do músico. Grito revoltado contra o universo inteiro. A construção do muro levada a cabo nesse instante precário que decorre entre o nascimento e a morte. A mãe, os professores, as namoradas, os outros todos e o “outro” que é ele próprio são monstros agressivos que fazem da vida um inferno e uma guerra em que todos são “o inimigo”. Roger Waters vingava Syd Barrett. Onde este soçobrou, vergado ao peso da loucura, aquele vence, ao atirar os seus dejetos à cara do mundo. “The Wall” é finalmente o apontar de dedo a todas as mentiras do universo rock. Alan Parker passou-o para celuloide. Bob Geldof encarnou a figura do mártir. Quase todos dizem mal. Salva-se a fabulosa animação que dá vida às delirantes figuras desenhadas na capa do disco, da autoria de Gerald Scarfe.

            Esqueçam-se os capítulos mais recentes da odisseia Waters, “The Final Cut” (1983) e “The Pros and Cons of Hitch Hiking” (1984), assim como dos Pink Floyd sem ele em “A Momentary Lapse of Reason” (1987). O importante vai ser estar em Berlim no próximo dia 21 ou assistir a tudo pela televisão. Para ficarmos a saber como se constrói um muro. E se o destrói.

 

 

NÚMEROS

 

            O palco é o maior alguma vez construído (onde é que já se ouviu isto?) – 168 m de comprimento, 25 de altura. Vai levar um mês a erguer e duas semanas a destruir. 50 camiões transportam-no até ao local do concerto. Os bonecos insufláveis ultrapassam os dos Stones: são do tamanho de edifícios de seis andares. O “professor” mede 12 m com uma amplitude de braços de 31 m. O “porco” alcança os 15 m. Cada boneco é comandado através de uma grua de 45 m e controlado por 20 pessoas. No muro que será erguido ao longo do espetáculo, serão utilizados 2500 tijolos especiais, cada um medindo 1,5 m x  75 cm e peando 9 Kg. São 50 os obreiros. Ao todo serão 600 pessoas a trabalhar para esta produção. A energia necessária para pôr tudo a funcionar – 5 megawatts, 1,7 dos quais fornecidos pela (ainda) Alemanha do Leste e o resto por geradores próprios. Um gigantesco ecrã circular com 16 m de diâmetro rodeado por 36 “Vari lites” constituirá, na ocasião, a maior estrutura observável nos arredores da Porta de Brademburgo. Estão previstos um total de 46 min. De projeções de “desenhos animados”. Os céus de Berlim vão ser iluminados por 12 holofotes sincronizados. Tudo junto vai poder ser presenciado “in loco” por cerca de 150.000 pessoas.

 

VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 18 JULHO 1990

 

São Geldof está entre nós [Bob Geldof]

 

cultura SEXTA-FEIRA, 13 JULHO 1990

 

Hoje concerto no Campo Pequeno

 

São Geldof está entre nós

 

De crítico a punk. De punk a benfeitor. Percurso exemplar de Bob Geldof, que hoje nos visita, assentando praça na do Campo Pequeno para um concerto em que se faz acompanhar pela banda The Vegetarians of Love.

 


O evento está agendado para o final da noite, atuando antes os portugueses Censurados, pelas 21h, e os Xutos e Pontapés, uma hora depois. O concerto integra-se nas Festas da Cidade de Lisboa e comemora o quinto aniversário do megaconcerto “Live Aid”, de ajuda e solidariedade às vítimas da fome nos países africanos.

            Faz hoje precisamente cinco anos que o grandioso acontecimento, só possível devido ao esforço e idealismo empenhados de Geldof, serviu para alertar, a uma escala planetária, sobre um dos problemas mais prementes da nossa civilização, ao mesmo tempo que teve, como efeito perverso, fazer aumentar indiretamente as contas bancárias dos músicos presentes, à custa de publicidade maciça e gratuita.

            Foi a partir da realização do “Live Aid” que se tornaram correntes os concertos em defesa de todas as causas imaginárias, nomeadamente as ecológicas.

 

Cavaleiro da Paz

 

            Bob Geldof, irlandês de 35 anos, agraciado com o título de “Knight of the British Empire” pelos bons favores prestados à causa do Império, e proposto para prémio Nobel da Paz, fundou, em 75, a banda punk “The Boomtown Rats”, tornada conhecida graças a um requinte instrumental acima da média e à força apelativa e intervencionista de canções como “Looking after nº.1” e, sobretudo, o célebre “I don’t like Mondays” inspirado na matança de San Diego, em 79, em que a estudante Brenda Spencer assassinou vários colegas. Até ao ano culminante do “Live Aid” (prenunciado  por participações nos singles “Do They Know it’s Christmas” e “We are the World”, a banda do ex-crítico musical do “New Musical Express” gravou alguns bons discos, caso dos álbuns “A Tonic for the Troops” (78) e “The Fine Art of Surfacing” (79), pedradas no charco niilista e inconsequente em que o movimento punk se tinha então tornado.

 

Indefinição estética

 

            Após um período algo apagado em que “The Boomtown Rats” se viram confrontados com a indefinição estética dos anos que se seguiram ao “boom” da “New Wave”, Geldof ganha um novo fôlego através do papel principal que interpreta no filme “The Wall”, de Alan Parker, baseado no duplo álbum dos Pink Floyd e nas paranoias autobiográficas do seu líder Roger Waters. Autobiográfico é também o livro da sua autoria “Is that all?”, editado em 86 e o maior “best-seller” de sempre escrito por uma estrela de rock.

 

Vegetarianos do amor

 

            Concretizado o “Live Aid”, terminadas as atividades beneficentes em que chegou ao ponto de acompanhar, até ao fim, o percurso dos lucros do concerto, certificando-se de que o dinheiro chegava ao seu destino, sem desvios e “cortes” intermediários, Bob Geldof dedicou-se de novo à música e à gravação de discos, desta feita a solo – “Deep in the Heart of Nowhere”, donde foram extraídos os “hit singles”, “This is the World Calling” e “Like a Rocket” e o novo “The Vegetarians of Love” nome dado à banda que o acompanha na sua visita a Lisboa e que integra alguns dos músicos da excêntrica “Penguin Cafe Orchestra”.

            Colaborou com Dave Stewart (Eurythmics), Eric Clapton, Maria McKee (Lone Justice), e Alison Moyet. Já esteve em Lisboa, no início da década de 80, como punk. Dez anos depois, chega de novo à capital, agora com a auréola de santo.

 

 

Bob e os touros

 

NUMA MINICONFERÊNCIA realizada ontem à chegada ao aeroporto, Bob Geldof teve oportunidade de conversar com os jornalistas, a quem apelidou de “cínicos”. Admitiu ser conhecido sobretudo por atividades extramusicais e que a fama do “Live Aid” nunca mais o abandonou, mas é graças à música que “consegue pagar a contra da eletricidade”. Em relação ao concerto desta noite, não pretende veicular qualquer espécie de mensagem. “Não sou nenhum pregador” – afirmou – “e espero esta noite não ser o touro, embora seja reconfortante saber que em Portugal não os matam” – acrescentou, aludindo ao local de realização do concerto. Ainda sobre o espetáculo tauromáquico acha que, embora respeitando as tradições dos diversos países, aquele é “um entretenimento bárbaro, não havendo o direito de assustar e maltratar animais apenas para nossa diversão”. Não se sabe se pretende organizar um “Bull-Aid” de solidariedade aos irmãos cornúpetos. Quanto à música atual, que ouve na rádio, “é uma estupidez, os ritmos ‘acid’ e ‘house’ perfeitamente vazios, bons para festas, mas não dizem rigorosamente nada. Nos tempos atuais há imensas coisas para dizer e fazer”. O espírito de militância a vir novamente ao de cima. A opinião sobre a música vanguardista também não é abonatória – “John Lennon tinha razão, quando afirmou que ‘avant garde’ é o termo francês para dizer merda”. Alguns dos músicos que integram a sua banda de apoio, os Vegetarians of Love pertencem a uma das melhores formações vanguardistas britânicas – os Penguin Cafe  Orchestra.

10/06/2025

Guitarras elétricas e neuróticas [Sonic Youth]

 

Pop

 

A DISCOTECA

 

GUITARRAS ELÉTRICAS E NEURÓTICAS

 

Ruído, guitarras elétricas, melodias pop, paranóia urbana. A fórmula não é nova, mas ninguém como os Sonic Youth conseguiu aplicá-la com tanta eficácia. O segredo está em saber utilizá-la ao serviço de uma ideia. O novo álbum, “Goo”, dá a ideia que para a banda de Lee Ranaldo e Thurston Moore o pesadelo e a loucura não têm fim.

 


            Os Sonic Youth fazem efetivamente muito barulho. Em decibéis e no esgravatar dos cérebros e das consciências norte-americanas. São originários, como não podia deixar de ser, da cidade de Nova Iorque, “fétiche” privilegiado de todas as imagens e perversões. Encarnações de infinitas fantasias. Sonhos por vezes tornados pesadelos. A banda de Lee Ranaldo, Thurston Moore, Kim Gordon e Steve Shelley faz questão em dissecar minuciosamente as taras e os medos de uma América confrontada consigo própria, no meio de uma crise de abundância e de valores. Os temas que tratam nunca são cómodos e muito menos inocentes. Ferem, fazem mossa, inquietam, trazendo para a luz do dia o lado negro e tenebroso do “American way of life”. A religião, a violência, o sexo e a loucura são alguns dos seus temas preferidos, abordados exaustivamente ao longo da sua discografia sempre de uma forma coerente e esteticamente inovadora.

 

Ruído e Melodia

 

            Desde o álbum de estreia, “Sonic Youth”, que o som ficou definido – uma torrente ininterrupta de eletricidade, produzida pelas guitarras de Thurston Moore e Lee Ranaldo, criando o pano de fundo obsessivo sobre o qual se vão contando as histórias e delineando as melodias. São notórias algumas influências: Stooges (a voz de Iggy Pop aparece escondida entre as espiras de “Bad Moon Rising”...), MC5, Velvet Underground, Hawkwind (alusão óbvia no título “Silver rocket” de “Daydream Nation” e escute-se com atenção as progressões e linhas de baixo de “Kool thing” e “My friend Goo”, do novo álbum...) e Glenn Branca são as mais evidentes. Branca, com quem Moore chegou a tocar as suas sinfonias para orquestra de guitarras. Dos Velvets aprenderam que o ruído e a distorção nada valem se não existir o esqueleto que sustenta o caos – a melodia. Simples, direta, eficaz, construída a partir de uma sucessão imparável de “riffs” sobrepostos, num caudal sonoro monstruoso e hipnótico. Em termos exclusivamente sonoros os Sonic Youth, desde o início até “Goo”, têm progredido sobretudo em termos de apuramento de uma sonoridade cedo bem demarcada. Sem que se tenha perdido a “acidez” que caracteriza toda a sua música, há, contudo, e a partir de “Daydream Nation”, a preocupação de domesticar minimamente a fera sonora, abrindo espaço para estratégias mais subtis. Como aquelas já evidenciadas no projeto paralelo Ciccone Youth em “The Whitey Album”. Da ilustração sonora do pesadelo mergulhemos então no seu centro fantasmagórico. No sonho psicótico, colorido de sangue e humor negro.

 

Sonhos Invertidos

 

            “I dreamed a dream” era o título de uma das canções do álbum estreia, que prenunciava esse outro sonho imenso que é o duplo “Daydream Nation”, repositório exaustivo de alucinações coletivas e infinitos medos. Desde a imagética das capas à constante referência aos símbolos (de que são exemplo sintomático aqueles inscritos nos rótulos de “Daydream”, à semelhança do que fizeram os Led Zeppelin) e a conotações obscuras com o “voodoo” e outras práticas rituais, todo o universo dos Sonic Youth é um tratado de fazer inveja a mestre Freud. “Daydream Nation” é o inverso do sonho americano. Os Sonic Youth praticam o psicadelismo voltado do avesso.

            O amor (tema constante nas suas canções) é apenas sexo e este doença que se propaga como um vírus (“Touch me, I’m sick”, “single” dos S.Y./Mudhoney) para utilizarmos a metáfora do cineasta David Cronenberg, um dos polos de interesse extramusicais, partilhado pelos membros da banda. Entre o sangue e a morte, elementos inseparáveis do sexo, o “amor” é sinónimo de violência, o seu inverso – “evol”, “love” ao contrário, quase Evil, o Diabo, amigo de longa data dos Sonic Youth. “Confusion is Sex”. Charles Manson é o anti-herói satânico que personifica esta atitude. A mulher aparece nua nas capas, apenas como um corpo, objeto de assunção do poder. “Support the power of woman, use the power of man, use the word: fuck. The word is love” – como se diz em “Bad Moon Rising”. As figuras de Walt Disney da capa da “Sister”, Cinderella (“Cinderella’s big score” do novo “Goo”) e mesmo Louise Ciccone, imagens a um tempo cândidas e perversas, em que se revê grande parte da juventude americana, são monstros camuflados que escondem o lado oculto por detrás das aparências. A realidade de uma sociedade à beira da dissolução é a paranóia absoluta. “I’m insane” (de “Bad Moon Rising”), “Schizophrenia” (de “Goo”) gritam os Sonic Youth, e ao som dos gritos os putos começam a dançar. Esquizofrenia e ilusão, o real esvaziado de sentido por uma excessiva acumulação de informação, transforma-se em alucinação vertiginosa. Mensagens sem emissor nem recetor, circulando no vazio. Informação fantástica e estereográfica, transmitida via satélite “no dia em que o corpo morre”. A santidade elétrica. Ruído branco. “Stereo sanctity”, faixa de “Sister”, aludindo a “Radio free Albemuth”, versão prévia de “Valis”, obra grande de outro dos heróis dos S.Y., o escritor Philip K. Dick, esquizofrénico genial e assumido. Mundos dentro de mundos, “All comin’ from human imagination, daydreamin’ days in a daydream nation”.

 

O Som da Entropia

 

            A religião é o terceiro ponto chave da temática dos Sonic Youth. “I got a catholic block” (de “Sister”). Thurston Moore teve uma educação católica e não sabe o que lhe há-de fazer. Entre a santidade e o mal (“The good and the bad”, de “Sonic Youth”, “Cotton crown”, de “Sister”) e a crucificação (“White cross” de “Sister”), melhor é crucificar sim, mas Sean Penn (“The crucifixion of Sean Penn”, de “Evol”) e permanecer na tal santidade elétrica, branca e vazia, de “White cross” – “Stay away another sonic life”. Ou “Sonic Death”? E, mais além, o infinito, simbolizado graficamente em “Daydream Nation” e materialmente concretizado na repetição, simulacro demoníaco da eternidade, dos sons aprisionados no final de “Evol” e em cada espira, nos “instantes de ruído” de “From Here to Infinity” de Lee Ranaldo.

            Para já disponível na discoteca Contraverso, “Goo” (nome de uma rapariga da cena “punk” de L.A. em 1979 e personagem de um filme de Raymond Pettibon), ironicamente feminista, é “apenas” o capítulo mais recente dessa eterna viagem pelos confins do pesadelo americano, repetindo “ad infinitum”, de diferentes e novas maneiras, a face sempre mutável e ilusória da loucura. Os Sonic Youth continuam apostados em revelar a essência escura do psicadelismo (mesmo quando se disfarçam de “rappers” como em “Kool thing”, inspirado em LL Cool J e que conta com a participação de Chuck D. da Def Jam), disfarçados com as cores e estrelas que vestem os corpos fotografados e os sons. Astros aparentes, encobrindo buracos negros que tudo invertem e aspiram. Guitarras elétricas e nervosas. A galáxia da pop como o lugar mais perigoso do Universo. Implosão sónica. O som da entropia.

 

QUARTA-FEIRA, 11 JULHO 1990 VIDEODISCOS

João Peste & O Acidoxibordel - Groovy Noise - Dada Rock

 

Pop

 

PESTE NA CORDA BAMBA

 
JOÃO PESTE
GROOVY NOISE – DADA ROCK
Maxi, Ama Romanta



















           Não há dúvida que Peste gosta de arriscar e experimentar. Só que o experimentalismo é uma faca de dois gumes, podendo resultar em objetos esteticamente fascinantes, mas também em exercícios de pretensiosismo e de vazio. Digamos que neste seu novo disco, o músico, letrista e mentor da Ama Romanta vai de um extremo ao outro. No primeiro caso estão o segundo tema do lado A, “Cocaine, amigo” e, ligeiramente abaixo, “Clio software” que abre o segundo lado. O tema principal “Groovy noise” cumpre perfeitamente as funções que lhe foram destinadas – ser imediatamente atraente e acessível ao ouvido, sem ser vulgar e chamando a atenção para o resto das canções. É uma espécie de chamariz. O tema que em princípio fará vender o disco. O passo em falso é dado com o tema final – “Distante domingo (TL-2 Napoleon)”.

            Analisemos cada um mais detalhadamente e desde o princípio: “Groovy noise” é puro gozo, “Rádio fun fun” povoado de associações livres, “I want to be pop-a-lula in the tears of a clown” e alguns achados ao nível da produção que incluem um solo de guitarra de Jorge Ferraz (atualmente nos Santa Maria Gasolina Em Teu Ventre e inimigo declarado de Peste...) e uns toques de “scratch” da autoria de Rafael Toral. Basicamente é o velho rock ‘n’ roll coberto com a capa e o verniz modernistas.

“Cocaine, amigo” é muito boa (a canção, não a outra). Cantada em inglês, francês e português constrói a melodia a partir da música das palavras. Ambiência irreal e fonética, o cantor fazendo deslizar sonhadoramente a voz por entre os vapores inebriantes da irreal amiga e cantando “tous les mots sont des poèmes que se desfazem na minha [atenção, na ‘minha’ dele] mente”. Sucessão de imagens que, como nuvens, se desfazem ao ritmo flutuante dos ventos da imaginação. Neste tema Peste agradece a colaboração especial dos Sonic Youth, Jimi Hendrix, Butthole Surfers, Led Zeppelin, Kurt Schwitters, Almada Negreiros, Wyndham Lewis, Jean Cocteau e Pablo Neruda. Fica sempre bem um pouco de exibicionismo cultural...

            “Clio software” é outra alucinação sonora e João Peste revela-se um autêntico psicadélico. A letra refere-se à pessoa amada cujo cérebro, quando ligado ao ecrã do televisor, faz Peste “delirar com as imagens escondidas na sua mente”. Imagens de “losangos e quadrados de cores” que, afirma, “nem sabiam que existiam”. É o que faz abusar!... Trata-se de uma canção cibernética (seja lá o que isso for) que fala de “Cristo abençoando um prédio cinzento”, Coca-Cola, néons e Nova Iorque, sobre um ritmo eletrónico decalcado dos Suicide e o cantor lembrando vagamente os trejeitos vocais de Philip Oakley, dos Human League. Destaque para a intervenção de Rodrigo Amado, no saxofone. Apesar dos “encostos” o tema funciona, conseguindo criar o ambiente “Blade Runner” pretendido.

            “Distante domingo” é que se torna perfeitamente dispensável. João deixa de ser Peste para querer ser Villaret e o resultado é lamentável. O texto é declamado e enfia no mesmo saco o espírito de Rimbaud, o computador central de Helsínquia, soldados castanhos e um jacinto vermelho. Loucura controlada? Nem por isso. O “poema” não tem a força que lhe permita dispensar o apoio musical, que aqui se apaga quase completamente, afundando-se as palavras na voz monocórdica e dolente do seu autor.

Sintetizando: o maxi está muitos furos acima da produção média nacional, reiterando o que já se sabia – ser João Peste uma das personagens mais invulgares e provocadoras do nosso meio musical, capaz do melhor e do pior. Neste caso de ambos.

 

QUARTA-FEIRA, 11 JULHO 1990 VIDEODISCOS

Tango na noite [Fleetwood Mac]

 QUARTA-FEIRA, 11 JULHO 1990 local

 

Tango na noite

     ENTRE A PUREZA dos blues e o circo de multidões, foi longo o caminho percorrido pelos Fleetwood Mac, hoje sinónimo de sucesso conquistado à custa de golpes de rins e algumas concessões. Da formação inicial, constituída por Peter Green, Mick Fleetwood e John McVie, mantiveram-se os dois que lhe deram o nome – o Fleetwood e o Mac. Tornaram-se notadas as vocalistas: Christine McVie, classe e “savoir faire”; Lindsey Buckingham, um rosto bonito que passou; Stevie Nicks, loura atraente, contraponto juvenil da maior veterania da colega. As harmonias vocais tecidas pela voz de ambas são a principal atração do atual som da banda. Mas nem sempre foi assim. Há quem se lembre do antigo “hit” instrumental, “Albatross”. Ou dos bons álbuns “Kiln House”, “Future Games” e “Bare Trees”. Mas foi a partir de 1975 e do relançamento com “Fleetwood Mac” que a música se alterou profundamente, tornando-se comercialmente rentável. Vamos vê-los esta noite, num espetáculo ao vivo de 1978, Tango in the Night Live, no Cow Palace de São Francisco, e escutar alguns dos seus êxitos, como “Gipsy”, “Songbird” e “Oh Well”. O regresso das senhoras.

            Canal 1, às 14h50

À procura das raízes culturais da Europa [Encontros Musicais da Tradição Europeia]

 

cultura QUINTA-FEIRA, 5 JULHO 1990

 

Começam hoje em Évora, Famalicão e Oeiras os Encontros Musicais da Tradição Europeia

 

À procura das raízes culturais da Europa

 

À procura das raízes culturais. A partir de hoje e até dia 13, terão lugar em Évora, Famalicão e Oeiras, os primeiros Encontros Musicais da Tradição Europeia, organizados pela Cooperativa Cultural Etnia, sediada em Caminha. Da Galiza, Grã-Bretanha, Occitânia e Piemonte virão cultores de antigos sons. Paredes representará o espírito português: a fatalidade e a distância.

 

A iniciativa, que conta com o apoio das três câmaras municipais, tem como objetivo “incrementar o intercâmbio cultural no espaço europeu, com base na promoção e divulgação da música e cultura das suas grandes regiões, e fomentar o contacto entre grupos ou solistas ligados à música tradicional dessas mesmas regiões”. Pretende-se que a série de concertos passe a ter uma realização regular, sempre numa perspetiva de descentralização, procurando deste modo tornar o nosso país num ponto privilegiado de encontro entre as diversas culturas musicais europeias.

            Atuarão ao vivo, entre nós, alguns dos nomes mais importantes de cena “folk” atual, como Andrew Cronshaw, Emilio Cao, Manuel Luna, Perlinpinpin Folc, La Ciapa Rusa, para além do guitarrista português Carlos Paredes.

            Andrew Cronshaw é um músico britânico, responsável por uma original e sedutora fusão das sonoridades tradicionais com o jazz e a música clássica. Como se poderá comprovar pela audição do excelente “Till the Beast’s Returning”, álbum já há algum tempo disponível no mercado nacional. Outras obras importantes são os discos “A is for Andrew, Z is for Zither”, “Earthed in Cloud Valley” (com o guitarrista Martin Simpson), “Wade in the Flood” e o recente “The Great Dark Water”. Intérprete brilhante na cítara elétrica, estende os seus talentos por outros instrumentos – flautas chinesas, concertina, sintetizadores, percussão e o shawm, antepassado medieval do oboé.

            Emilio Cao é galego e já atuou várias vezes em Portugal, tendo colaborado com Fausto em “O Despertar dos Alquimistas” e com o grupo teatral “Os Comediantes”. Exímio executante de harpa, gravou entre outros o marco na evolução da música galega, “Fonte de Araño”. “No Manto da Auga”, “Amiga Alba e Delgada” e “Lenda da Pedra do Destiño” completam a sua atual discografia.

            Também espanhol (se considerarmos que a Galiza é Espanha, o que é duvidoso”...) é Manuel Luna, antropólogo, apaixonado pela música e cultura da região da Cantábria. Publicou vários ensaios e cerca de 30 discos de recolha etnomusicológica. Gravou com os “La Quadrilla” o álbum “Como Hablam las Sabinas”, já importado pela Etnia. A investigar são também “Em los Jardines del Sueño” e o novo “Os Galos de Londres”.

            No Sul de França, entre a Catalunha e a “Côte d’Azur”, fica a Occitânia, região natal dos Perlinpinpin Folc, um dos mais estranhos grupos do movimento folk gaulês. “Musique Traditionnelle de Gascogne”, “Gabriel Valse” e “Al Paїs d’Occitania” são alguns dos seus bons trabalhos. Sobre a sua música escreveu o crítico Pierre Corbefin: “Provoca-nos uma impressão quase opressiva, como se atravessássemos uma paisagem árida, despovoada, apenas habitada por um bater obscuro e pelos rumores da terra”.

            Os “La Ciapa Rusa” são italianos de Piemonte, a Noroeste do país. Combinam a excelência instrumental, através da utilização dos sons tradicionais da sanfona, do violino, do pífaro de pastor e da “musa” (gaita-de-foles piemontesa) com um notável trabalho de harmonias vocais.

            A representação portuguesa está a cargo de Carlos Paredes. Dele o mínimo que se poderá dizer é que é uma parcela importante da alma lusitana. Escutar a sua guitarra, contemplar o modo com se entrega a ela e à música que escorre pelos seus dedos até ao vibrar das cordas, é sentir o Fado e a distância. Ir ao sabor dos “Verdes Anos” até ao oceano sem fim.

            Uma palavra final de louvor para a Etnia que tem vindo a desenvolver um notável trabalho de recuperação e revitalização da cultura tradicional. Desde a realização de espetáculos, exposições e seminários, até à publicação de livros e à importação de pérolas discográficas folk, para já oriundas do país vizinho, como são os álbuns de Rosa Zaragoza, Amancio Prada, Manuel Luna, “La Musgana” e, brevemente, Emilio Cao.

 

PROGRAMA
 
ÉVORA – Praça do Giraldo
 
Quinta, 5 de Julho
MANUEL LUNA
PERLINPINPIN FOLC
 
Sexta, 6 de Julho
LA CIAPA RUSA
CARLOS PAREDES
 
Sábado, 7 de Julho
EMILIO CAO
ANDREW CRONSHAW
 
FAMALICÃO – Jardins da Câmara Municipal
 
Quinta, 5 de Julho
CARLOS PAREDES
ANDREW CRONSHAW
 
Sexta, 6 de Julho
MANUEL LUNA
LA CIAPA RUSA
 
Sábado, 7 de Julho
EMILIO CAO
PERLINPINPIN FOLC

OEIRAS – Auditório do Complexo Social das FA’s
 
Quinta, 5 de Julho
LA CIAPA RUSA
EMILIO CAO
 
Sexta, 6 de Julho
MANUEL LUNA
ANDREW CRONSHAW
 
Sábado, 7 de Julho
CARLOS PAREDES
PERLINPINPIN FOLC