03/10/2025

Devine & Statton - Cardiffians

POP ROCK QUARTA-FEIRA, 10 OUTUBRO 1990

 

DEVINE & STATTON
Cardiffians
LP e CD, Les Disques du Crépuscule, distri. Contraverso














São discos do quilate deste que dão credibilidade à profissão de “escritor de canções”. “Cardiffians” é a segunda jóia arrancada à pedra da inspiração, depois de “Prince of Wales”. Longe vão os tempos dos Young Marble Giants, em que as ocasionais desafinações de Alison Statton eram compensadas pela frescura e pelo modo original como sabiam transformar a ingenuidade em pequenos e estimulantes exercícios melódico-minimais. De ingénuo não há nada, neste novo álbum da dupla. Quanto a Alison Statton, aprendeu a difícil arte de fazer da voz um instrumento capaz de produzir, mais do que sons, emoções de toda a espécie, sempre de modo natural e demonstrando uma facilidade e espontaneidade que não se perderam no “saber fazer” técnico entretanto acumulado. Jogos de subtis registos e entoações que percorrem todo o universo situado entre as latitudes ocupadas por Isabelle Antenna (“Hideaway”, “Enough is Enough”), Dagmar Krause (do tempo dos Slapp Happy e de canções como “Slow Moon’s Rose”, no balanço, e tipo especial de “vibrato”, em “A Fact of Life”) e Virginia Astley (a mesma ausência de peso, as refrações cristalinas luminosas de “A Right to be Lazy”). Ian Devine revela-se como um dos grandes autores de canções da atualidade. Em “Cardiffians” não falta nada: arranjos e produção (partilhados com Eric Mertens) revelam uma atenção e capacidade minuciosas na criação de pequenos pormenores fundamentais para o ambiente específico de cada canção. O trombone de Curtis Fowlkes, ao lado de Roy Nathanson e Marc Ribot, um dos três Jazz Passengers convidados, nos dois temas que abrem cada um dos lados, a introdução fantasmagórica e tauromáquica de “Lovers get in the Way”, o metal elétrico da guitarra e o órgão celestial em “A Fact of Life”, as percussões digitais de “Silence” ou o baixo pneumático de “In the Rain” são algumas entre infinitas cambiantes que tornam a audição de “Cardiffians” numa sucessão de prazeres constantemente renovados. Para além do já referido “A Fact of Life”, mencione-se ainda, entre outras delícias, a única interpretação vocal de Ian Devine, em “Green & Pleasant Land”, rasgada em vastidões pelo piano fabuloso de Eric Mertens e os instrumentais “Regina & Michael” (exótico à maneira dos Penguin Cafe Orchestra) e “Last Days” (que encerra o disco, aéreo e pastoril, como um jardim de Virginia Astley, pontuado por flautas e silêncio). Ao todo doze viagens através do melhor que a pop nos pode oferecer: a simulação da felicidade. **** 

Deacon Blue - Ooh Las Vegas

 POP ROCK QUARTA-FEIRA, 10 OUTUBRO 1990

 
DEACON BLUE
Ooh Las Vegas
LP e CD CBS, distri. CBS port.



Que sórdidos motivos, que inconfessáveis traumas poderão levar um jovem escocês filhos de boas famílias, aparentemente são de espírito, a querer ser Paddy McAloon? Cabe aqui informar que Paddy McAloon é a designação comum para a síndrome, vulgar na comunidade pop, que costuma atacar vocalistas masculinos de voz a atirar para o fininho, característica geralmente acompanhada, à laia de compensação, por um crescimento exagerado do ego. Facto que os leva, com uma certa frequência, a perder o sentido de equilíbrio e das proporções.

Paddy McAloon, o original, dos Prefab Sprout, foi aqui examinado há umas semanas atrás. Acha-se génio. Está no seu direito. Nestes casos não convém contrariar demasiado o doente, sob pena de o enervar ou, pior ainda, excitá-lo ao ponto de querer gravar mais discos justificativos da sua paranóia. Os Deacon Blue, ou melhor, o seu vocalista Ricky Ross, sofre da síndrome. Mas o seu caso é ainda mais grave. À perda do sentido da realidade acrescenta-se a total despersonalização, ao ponto da voz, maneira de cantar e de compor se confundirem com as do génio McAloon. Não seria dramático se o desenvolvimento do mal se confinasse ao segredo das instituições e ao silêncio, remetendo o maníaco para o lugar que lhe compete: a reclusão, o colete-de-forças e, sobretudo, a mordaça. Mas não, dão-lhe trela, voz ativa, e quem sofre é a humanidade inteira e, por tabela, o crítico, forçado à escuta atenta da deformidade. “Ooh Las Vegas”, assim se chama o instrumento de tortura. Duplo, ainda por cima. Vinte e três atentados à sensibilidade. Outros tantos golpes impiedosamente vibrados na música pop, já de si não muito bem de saúde. Para Ricky Ross não chega massacrar o ouvinte. É preciso levá-lo à completa agonia, utilizando todos os meios, mesmo os menos lícitos, para levar a cabo os seus negros desígnios. Neste caso serviu-se de “lados B” de singles, maxis e EP antigos (“When will you Make my Telephone Ring”, “Dignity”, “Queen of the New Year”, “Chocolate Girl”, “Love and Regret”, só para referir o primeiro lado), bem como sessões para a peça televisiva “Dreaming”, de William McIlvanney e um ou outro tema original. A monotonia impera. A voz de Ricky irrita, de tanto se esforçar por imitar aquela que bem sabemos. As canções vão passando, passando, a paciência esgotando-se, esgotando-se. Ao escutar títulos como “Back here in Beanoland” ou “Let your hearts be troubled”, o cérebro é percorrido por uma sucessão de imagens assustadoras, com os rostos e as vozes de Elton John, Chris de Burgh e de todas aquelas outras personagens tenebrosas que perpetuamente assombram os tops americanos, a divertirem-se na meticulosa tarefa de nos arrasar psicologicamente. Mais um disco como este e também nós ficaríamos a deitar serpentinas pelos ouvidos e a cantar fininho. Será que afinal foi isso que aconteceu a Ricky Ross, depois de ter ouvido o McAloon? “Why? Why? Why? Why? Why?” – pergunta Terry Staunton, do NME, após a audição de “Ooh Las Vegas”. Não indo tão longe, aqui fica, no entanto, uma pergunta de outro estilo: “Porquê? Porquê? Porquê?” *

Sementes de violência [Telectu e Elliott Sharp]

 QUARTA-FEIRA, 3 OUTUBRO 1990 cultura

 

Concerto de Elliott Sharp e Telectu na Gulbenkian

 

Sementes de violência

 

FOI O concerto da brutalidade. Elliott Sharp e os Telectu iam rebentando os tímpanos a uma assistência que encheu, segunda-feira, por completo a sala polivalente do CAM, siderada pela violência sonora e pelo inusitado da combinação.

            As notas da guitarra e do saxofone soprano de Sharp e a panóplia eletrónica dos Telectu explodiram literalmente num caos apocalíptico que teve entre outras a virtude de fazer pensar sobre algumas das vias encetadas pela chamada “nova música”, designação demasiado lata que não chega para abarcar a pluralidade de correntes que em comum apenas têm a repulsa nutrida em relação às “mafias” para as quais a música não passa de negócio.

 

Mestre da guitarra

 

            A primeira parte do programa foi preenchida por Elliott Sharp em solo absoluto. Uma guitarra de dois braços e um saxofone bastaram-lhe para produzir um caudal de sons violentíssimos, para muitos insuportável alguns segundos logo após a vibração da primeira corda, para a maioria um excitante delírio virtuosístico, com o guitarrista a dar mostras de um domínio absoluto do instrumento. Sonoridades distorcidas até ao limite do tolerável, as notas e ruídos entrechocando-se num combate monstruoso, em “clímaxes” criados com a ajuda de pedais de efeitos, mas sobretudo graças ao modo superior como o músico consegue dominar a massa sonora, domando-a como se de uma fera se tratasse.

            Solou indiscriminadamente com as duas mãos e com uma terceira feita em arame, raspou as cordas, agrediu a caixa do instrumento, pôs os olhos e ouvidos em bico a quem estivesse à espera de uma prestação convencional. Explosões, ruído branco, sequências e automatismo rítmicos complexos, sobreposição de frases melódicas e soluções tímbricas arrojadas, mostraram à saciedade por que razão Sharp é hoje considerado um dos grandes mestres contemporâneos da guitarra elétrica. Durante os 45 minutos ininterruptos de risco e provocação auditiva em que Sharp atuou só, ruíram os alicerces do velho mundo.

 

Subversão a três

 

            Os Telectu entraram a seguir, acrescentando uma dose extra de agressividade ao tom orgiástico da noite. Jorge Lima Barreto percutia o seu DX7, criando uma selva digital entre a qual gritavam as guitarras desvairadas do nova-iorquino e de Vítor Rua. Por trás do palco eram projetadas imagens vídeo computorizadas acrescentando à “performance” o estímulo visual. Onde se esperaria talvez que os Telectu se espraiassem pelas paisagens mais rigorosas de “Digital Buiça”, como ponto de apoio para as intervenções de Elliott Sharp, aconteceu ao invés uma improvisação a três, um pouco à maneira da praticada pelo coletivo AMM, na mesma tentativa de subversão e reconversão dos códigos estéticos e pressupostos éticos subjacentes ao jazz e à música contemporânea. A um espetáculo que se anunciava integrado nas celebrações do Dia Mundial da Música, não se podia pedir melhor.

Cocteau Twins - Heaven Or Las Vegas

 QUARTA-FEIRA, 3 OUTUBRO 1990 POP ROCK

 

O MUNDO IMPONDERÁVEL

 

COCTEAU TWINS
Heaven or Las Vegas
LP e CD, 4AD, distri. Anónima

 

Título enigmático como sempre acontece quando a dupla Elizabeth Fraser/Robin Guthrie se decide a passar para o vinil, encantamentos e fantasmas. Ao lado dos seus principais rivais, Dead Can Dance, os Cocteau Twins integram a elite mais atmosférica da editora de Ivo Russell. Voando através de diferentes estratos da atmosfera, os dois grupos perseguem o sétimo céu. Se em “Aion” os Dead Can Dance recuaram decididamente em direção às brumas e invocações do passado, folgando e fulgindo em épocas medievais e renascentistas, os Twins flutuam ainda e sempre num território indefinido, limbo inebriante, a que se acede por áleas difusas, estados de alma particulares, propícios ao fruir das fragrâncias vocais de Elizabeth Fraser. Em relação a álbuns anteriores os céus possuem agora fundações mais sólidas. A voz ancora-se em estruturas rítmicas definidas, na forma de canções, em vez dos habituais esboços de contornos mutáveis. Na aparência, pode parecer não ser o método ideal para o espraiar de todas as potencialidades do canto. A audição de “Heaven or Las Vegas” prova o contrário: num contexto formal declaradamente pop (em que quase se adivinham refrões e o dialeto secreto da cantora se abre, por vezes, a termos linguisticamente perceptíveis...), os arabescos vocais de Liz Fraser ganham uma maior concentração, como se, ao invés de longas e abstratas divagações, se procurasse agora, em cada tema, canalizar um ambiente preciso, evocar um espectro particular, sugerir um determinado perfume. Como as imagens de um quadro ao qual se acrescentou uma moldura. Temas como “Iceblink Luck” (editado em single) ou “Heaven or Las Vegas” (com a voz de Fraser quase agressiva, lembrando Chryssie Hynde nas entoações), são dos poucos imediatamente identificáveis com esquemas musicais de anteriores trabalhos. Nos restantes assiste-se ao germinar de novas estratégias, com Robin Guthrie e Simon Raymonde, concedendo papel determinante ao baixo e aos sintetizadores na criação dos ambientes sobre os quais sonha e bruxuleia a voz da fada. “Pitch the Baby” e “I hear you Ring” são intrincados labirintos vocais, diálogos a duas e três vozes, (no segundo Liz veste a pele de Kate Bush e entretém-se a brincar na casa dos espelhos), teias onde as emoções se enredam, estradas que vão dar a lado nenhum, paisagens, miragens percorridas em estado de encantamento – como num sonho. Diáfana e poderosa, a música dos Cocteau Twins gira eternamente, renovando a cada rotação, o colorido, o ritmo e a velocidade. O essencial permanece imutável: um universo à parte na atual música popular, de fronteiras bem delimitadas e paradoxalmente difíceis de localizar – “esfera cujo centro está em toda a parte e a calote em lado nenhum” – segundo a asserção alquimista. ***

02/10/2025

A matemática do caos [Telectu e Elliott Sharp]

 CULTURA SEGUNDA-FEIRA, 1 OUTUBRO 1990

 

Elliott Sharp e os Telectu atuam hoje na Sala Polivalente do CAM, às 18h30 e 21h30

 

A matemática do caos

 

O guitarrista nova-iorquino Elliott Sharp e o duo português Telectu tocam juntos, numa prova de que a “nova música” também tem lugar entre nós. A violência eletrónica, em plena atividade de “sabotagem” cultural.

 


Nova Iorque – capital de mil perigos e deformidades. Há músicas que traduzem essa monstruosidade. Sons que avisam e perturbam. Nos clubes e nas caves. Na penumbra do fumo, longe das luzes do dia e dos hipermercados.

            Elliott Sharp resiste, luta, provoca a cidade, nas suas convulsões guitarrísticas. Loucura artística contra a loucura institucionalizada. Integra hoje a elite dos impulsionadores e inovadores da vanguarda nova-iorquina, ao lado de nomes como John Zorn, Glenn Branca, David Fulton, David Linton, Rhys Chatham, Wayne Horvitz, Ned Rothenberg, Samm Bennett, Scott Johnson, Robert Previte, David Weinstein ou David Garland, muitos deles colaboradores regulares nos seus trabalhos.

 

Guitarra telúrica

 

            Especialista em abordagens revolucionárias do instrumento, possui uma habilidade inata para despedaçar os códigos estéticos e as posturas técnicas tradicionais, a par de uma capacidade analítica capaz de unir as pulsões inconscientes, físicas e emocionais ao rigor estrutural. O cérebro mestre do telurismo. Matemática do caos.

            Exemplo desta atitude é a utilização, em discos como “Marco Polo’s Argali”, “Tessalation Road” ou “Larynx”, de um complexo sistema algorítmico denominado  “séries Fibonacci”, através do qual se torna possível gerar diferentes tipos de afinação, bem como novas soluções harmónicas e melódicas.

            Elliott Sharp caminha sobre o fio da navalha, ao longo de uma já vasta e diversificada discografia que integra experiências que vão da composição (ou decomposição...) da música para cordas (em “Tessalation Road”, com os Soldier String Quartet, equivalente intuitivo e esquizofrénico dos seus congéneres Kronos Quartet), o brutalismo rítmico tribal realizado em computador (“Virtual Stance”), a “canção” eletrónica demencial (“In the Land of the Yahoos”, ao lado de Sussan Deyhim, Christopher Anders, David Fulton, Shelley Hirsch e Christian Marclay), à transfiguração do ruído, ordenado sequencialmente (“Looppool”) ou a interpretação orquestral dos cantos “Inuit” e “hoomii”, respetivamente das regiões árticas do Canadá e da Mongólia (“Larynx”, com Samm Bennett, David Fulton, David Linton, Robert Previte, Jim Staley e, de novo, os Soldier String Quartet), Capítulos importantes da sua discografia são também “Rhythm and Blues”, “Escape Clause”, “I/S/M:R”, e “Carbon” e “Fractal”.

            Uma definição possível para esta música arrebatadora pode ser encontrada nas próprias palavras do guitarrista, relativamente a “Larynx” mas perfeitamente aplicáveis a toda a sua obra: “Música que dança sobre permutações constantes entre uma geometria derivada das séries Fibonacci e uma geometria fractal de turbulência, caos e desordem”.

 

Eletrónicos

 

            Os Telectu, grupo de Jorge Lima Barreto e Vítor Rua, com o qual Elliott Sharp tocará hoje no CAM (Centro de Arte Moderna da Gulbenkian), são pioneiros da música eletrónica no nosso país, passando do minimalismo inicial, para posteriores incursões nas sonoridades ambientais (em álbuns como “Rosa Cruz”, e “Halley”), a música “mimética” (“Mimesis”, “Cameratta Electronica”) ou, atualmente, aproximações a um expressionismo digital no qual se incluem músicos como Jeff Greinke, Robert Rich, Peter Frohmader ou, por vezes, o próprio Elliott Sharp, influência evidente em alguns temas de “Live at the KnittingFactory” e “Digital Buiça”.

            A conjunção da eletrónica dos Telectu com a guitarra explosiva de Elliott Sharp pode fazer estragos. Espera-se que esta não seja uma iniciativa isolada e que as “músicas alternativas” ocupem, no nosso meio musical, o lugar de destaque a que têm direito.

Um dia na Ópera [Philip Glass & Robert Wilson]

 cultura SEXTA-FEIRA, 28 SETEMBRO 1990

 

Philip Glass em Lisboa

 

Um dia na Ópera

 

Philip Glass e Bob Wilson encontram-se desde há duas semanas no nosso país, a preparar uma ópera dedicada aos Descobrimentos portugueses. Dentro de dois anos será de novo a conquista de mares nunca antes navegados.

 


“Through the Eye of the Raven” é o título escolhido para a obra composta por Philip Glass, encenada por Bob Wilson e com “libretto” de Ana Luísa Gomes, inspirada nos Descobrimentos portugueses e com estreia mundial marcada para 28 de junho de 1992, no Teatro Nacional de S. Carlos.

            Em encontro informal com a imprensa, num dos camarins do teatro e em plena atividade de ensaios, o compositor americano, autor de outras obras importantes no mesmo domínio, como “Einstein on the Beach”, “Satyagraha” e “Akhnaten” e o seu colaborador de longa data Bob Wilson, levantaram algumas pontas do véu. A ópera será inovadora a vários níveis: música (Philip Glass ainda não escreveu uma única nota, mas tudo está previsto até ao décimo de segundo...), coreografia e texto funcionarão como entidades autónomas, cujo sentido global caberá em grande parte à intuição do auditor unificar e apreender. Haverá momentos em que, aparentemente, “a música, o texto e as movimentações sobre o palco não terão nada a ver umas com as outras”. A vanguarda é assim mesmo.

            Na prática, a estrutura final vai sendo progressivamente construída, partindo de um trabalho em regime de “Workshop”, por ambos considerado como “ideal”, com o aspeto criativo fruto de uma colaboração constante entre a totalidade das partes envolvidas. Bob Wilson chega ao ponto de afirmar “ser possível compor uma ópera a partir do vestuário ou da iluminação...”. Mas acalmem-se os mais tradicionalistas que, neste caso e ainda segundo Wilson, “a ópera é, do ponto de vista formal, extremamente tradicional, dividida em cinco atos, com uma abertura e um prólogo, para além de várias ‘Knee plays’, espécie de interlúdios musicais fazendo a ligação entre as partes principais”.

           

Ditosa pátria minha amada...

 

            No capítulo da encenação Bob Wilson promete algumas surpresas espetaculares: Vasco da Gama, o Rei e a Rainha, um escritor, uma freira, três cientistas, Miss Universo e outras personagens saídas da História e da imaginação dos autores, vão fazer mil tropelias, em locais tão diversos como o mar (incluindo uma deslumbrante cidade de cristal oculta nas suas profundezas), o espaço cósmico, “buracos negros” por todo o lado, a selva brasileira, os exotismos do Oriente, na Corte de D. Manuel, e outros, menos facilmente catalogáveis. Haverá terríveis naufrágios, terramotos, monstros de toda a espécie (alguns nascidos de delírios de Jorge Luís Borges), cabeças de cão e patas de elefante, aviões e foguetões, um telescópio gigantesco girando ameaçador sobre a cabeça dos atores, uma “troupe” de dançarinos japoneses, viagens para além da morte, enfim, como diz Glass – “não se pretende dar uma lição de história, trata-se antes de uma abordagem poética, de caráter universalista, em que Passado, Presente e Futuro se confundem numa nova Realidade. Quem quiser receber lições deve procurar nos compêndios...”.

            Luísa Costa Gomes, autora do “libretto” (que incluirá excertos de “Os Lusíadas” e da “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto) é de opinião que o tom geral dá uma “visão extremamente elogiosa, destacando o seu papel pioneiro, na transição da mentalidade e imaginário medievais para os renascentistas, dos Descobrimentos portugueses”, designação geral para uma gesta que, para si, se reveste inevitavelmente de um caráter simbólico, procurando na parte que lhe compete, evitar o “kitsch” e que os textos (inteiramente falados e cantados em português) reflitam essa mesma preocupação, para tal recorrendo a uma linguagem frequentemente metafórica, a começar pelo corvo mencionado no título, numa alusão às aves que equilibram a nau lisboeta. Viagens pelo mundo e pela alma humana adentro. Terra de Preste João, a Ilha dos Amores... “Gostava que a frase final, entoada pelo coro, fosse muito simples – ‘esta é a ditosa pátria minha amada’ – ‘mais nada”.

 

... à conquista do mundo

 

            Quanto à partitura de “Through the Eye of the Raven” (encomendada especialmente pela Comissão dos Descobrimentos) será exclusivamente para orquestra e coro, este último aparecendo em cena somente na apoteose final do quinto e derradeiro ato. Nada foi ainda escrito mas ideias parece que não faltam a Philip Glass, um dos “papas” da música minimalista dos anos Sessenta, que hoje recusa a conotação exclusiva com a escola que ajudou a construir e presentemente considerada ultrapassada, chegando ao ponto de afirmar que – “se tivesse hoje 20 anos jamais faria música minimal”.

            Para já adiantou que o terceiro ato será uma dança coreografada por um japonês (única sem a responsabilidade direta de Bob Wilson) e a totalidade do trabalho composicional realizada previamente ao piano.

            Teoria terminada, foram mostrados e explicados por Bob Wilson, vários esboços referentes aos “décors” de cada um dos cinco atos, uns em branco (para as cenas mais despojadas...) outro com uma mancha negra (o promontório de Sagres...) ou uns rabiscos confusos (a selva amazónica...). Elucidados e siderados pelo aparato visual do futuro evento, passou-se para o grande auditório, para uma demonstração coreográfica provisória do primeiro ato, sem música e com Luísa Costa Gomes soletrando o texto palavra por palavra. Nada a ver com o “Barbeiro de Sevilha”. Quando se ligar o som, que se desiludam os amantes do “Bel Canto”...

            A dois anos da sua apresentação oficial, “Through the Eye of the Raven”, provoca desde já interesse por parte dos meios culturais estrangeiros (fala-se inclusive num possível “sponsor” americano, para suportar os elevados custos da produção), na apresentação local da ópera, nomeadamente os japoneses, aos quais a problemática dos Descobrimentos diz obviamente respeito. Para além dos americanos, também os alemães se mostram interessados. Em Espanha o “Olhar do Corvo” passará na Expo-92. Philip Glass e Bob Wilson não fazem a coisa por menos: “Com este trabalho tencionamos conquistar o mundo da ópera”. Daqui a sensivelmente dois anos se verá... Para já a certeza de que, em termos operáticos, depois destes descobrimentos, nada ficará como dantes.

Uma mulher dos diabos [Tina Turner]

 Na capa

 

UMA MULHER DOS DIABOS

 

Depois dos Stones e de Bowie – com quem já atuou em diversas ocasiões – é a vez de Tina Turner: uma voz rouca e sensual, capaz de provocar os sentidos como poucas. A primeira parte do concerto será assegurada pelos Delfins.

 


Ancas longas e esguias, lábios carnudos, “Soul Music”, a alma voltada do avesso, deixando ver tudo (como os vestidos que usa durante as atuações), as lágrimas e os sonhos, o fogo interior inextinguível, “rhythm’n’blues”, os maus velhos tempos em que era dominada e espancada por Ike, “manager” e marido que não queria saber da emancipação feminina, Phil Spector e o clamoroso falhanço de “River deep, Mountain high”, a voz rouca e sensual, “Acid Queen” no “Tommy” de Ken Russell e amazona em “Mad Max beyond Thunderdrome” de George Miller – outras tantas imagens e sons que invadem a memória, presentes decerto no olhar e nos ouvidos de todos aqueles que se deslocarem ao encontro marcado para amanhã.

            Turner provoca os sentidos como poucas. Há quem lhe atribua responsabilidades no sair da casca de Mick Jagger. Os seus gostos não enganam, a energia transborda em cada instante, nas canções, na dança, no constante apelo erótico do corpo e da voz, na opulência radiante das formas.

            Mas Tina não é só suor, é também classe – a prová-lo, o convite que lhe foi endereçado pelos “dandies”, ex-Human League, Ian Marsh e Martyn Ware, convidam-na para interpretar “Ball of Confusion”, em “Music of Quality and Distinction”. Tina Turner no papel de grande senhora, diva de ébano reinando entre “babies” oxigenadas de 15 minutos de Top. São 34 anos de carreira recheados de êxitos, culminando no sucesso mundial de “Private dancer” e do “hit” “What’s love got to do with it”. Será que o amor tem alguma coisa a ver com os galardões que então lhe foram atribuídos – Grammies pelo melhor disco do ano (1984), melhor canção, melhor “performance” e melhor vocalista rock feminina? Questão à qual só a própria Tina poderá responder...

            Quem não se preocupou muito com isso foi Mick Jagger que, logo no ano seguinte, a convidou para dançar (ou foi ao contrário?) em pleno Live Aid. Tina Turner a todos seduz, de uma maneira ou de outra. Mark Knopfler (produtor de algumas transgressões em “Break Every Rule”) e Eric Clapton não resistiram aos seus encantos. Amanhã à noite vai ser a mesma coisa: poder ver, ao vivo, a energia em carne viva – no corpo e na alma de uma mulher endiabrada que persiste em querer vencer o tempo. E tem-no conseguido.

 

LISBOA Estádio José de Alvalade, Sáb, 29, às 21h00

 

SEXTA-FEIRA, 28 SETEMBRO 1990 A SEMANA

Lucía & Paredes - O dueto das cordas

 Na capa

 

LUCÍA & PAREDES

 

O DUETO DAS CORDAS

 

Hoje à noite, na Póvoa do Varzim, as guitarras de Portugal e Espanha vão tocar ao desafio: Paco de Lucía e Carlos Paredes, mestres incontestados dos respetivos instrumentos, num “mano a mano” que se prevê exaltante.

 

Fala-se de flamenco e vem-nos à memória a figura aprumada de Obélix, em volta da fogueira, batendo palmas e soltando uns “hayhayhayhay” compenetrados.

            Paco de Lucía não é Obélix, mas nem por isso deixa de ser um dos mais dignos representantes da guitarra flamenca. Guitarra que exige muita garra e fogo nos dedos. Vem dos ciganos o seu segredo, a maneira de traduzir a vida na vibração das cordas. A perfeição guitarrística não se esgota na velocidade nem no virtuosismo da execução. Os mestres sabem que a técnica está sempre ao serviço da emoção e que esta só então se cumpre no movimento corporal. Aprendizagem que exige iniciação. Paco de Lucía inclui-se no grupo restrito dos mestres, ao lado de Manitas de Plata, na arte de rasgar a alma.

            Hoje à noite, no Salão Nobre do Casino da Póvoa, tecerá armas, que é como quem diz, guitarras, com um artista à sua altura – o português Carlos Paredes – em duetos que vão pôr à prova a tradicional rivalidade entre os vizinhos ibéricos. De um lado a fogosidade picante, a típica extroversão andaluza, do outro, o intimismo e saudade lusitanas, através de dois dos mais conceituados intérpretes da atualidade.

            Paco de Lucía, de ser verdadeiro nome Francisco Sánchez Gomez, nasceu e foi criado numa família de músicos. Aprendeu com o pai os mistérios da guitarra espanhola, e, mais tarde, com os ensinamentos dos lendários Sabicas e Mario Escudero. Aos 13 anos já fazia parte, como terceiro guitarrista, da Companhia Espanhola de Ballet Clássico. Nos primeiros álbuns, o flamenco, sempre, e a música popular da Andaluzia.

            Junta-se a outros guitarristas – Paco Cepero, El Farruco, Juan Maya – e parte à descoberta da Europa, tornando-se durante sete anos o principal divulgador do flamenco, além fronteiras. Nunca mais parou de gravar discos: “Fantasia Flamenca”, “Fuente y Caudal”, “Almoraima”, “Castro Marín”, “Solo Quiero Caminar”. Este último granjeou-lhe enorme popularidade no nosso país através, sobretudo, da canção do mesmo nome. Ultimamente voltou-se para o campo mais vasto da música de fusão, tocando e gravando com outros “monstros” da guitarra, como Carlos Santana, Al Di Meola, John McLaughlin e Larry Coryell.

            Hoje à noite vai ser um negócio só a dois: guitarras à descarada, portuguesa e espanhola, num duelo de resultado incerto mas certamente mágico.

 

PÓVOA DO VARZIM Monumental Casino da Póvoa, 6ª, 28, às 22h00

 

SEXTA-FEIRA, 28 SETEMBRO 1990 A SEMANA

The Monochrome Set - Dante's Casino

 Pop

 
THE MONOCHROME SET
Dante’s Casino
LP e CD, Vinyl Japan


 








            Se houvesse um prémio de originalidade no grande concurso da Pop, ele teria que ser forçosamente atribuído aos Monochrome Set. Com efeito, a banda liderada pelo vocalista de ascendência indiana (e parece que de sangue real) Bid, mesmo nos momentos menos inspirados (que são de resto muito poucos) consegue o golpe de asa que transforma uma canção e um refrão em algo de divertido, diferente, estimulante e inovador. O segredo conheciam-no os Roxy Music, no período que vai até “Siren”, isto é, a capacidade de agarrar em certos géneros e estilos musicais bem definidos (o “glamour”, o rock ‘n’ roll, o “music-hall”, o experimentalismo, no caso dos Roxy; os Shadows, o som “merseybeat”, o psicadelismo, os ritmos latino-americanos e uma grande dose de humor britânico, no dos Monochrome Set), utilizando, com uma elegância extrema, os seus clichés na criação de sínteses em que os diversos ingredientes se combinam, dando origem a discursos musicais que fazem do tempo e das modas gato-sapato.

            Depois de terem assinado obras-primas como “Strange Boutique”, “Love Zombies”, “Eligible Bachelors” e “The Lost Weekend” (este já sem a guitarra inconfundível de Lester Square), sucessivos e imerecidos falhanços comerciais levaram à dissolução do coletivo. “Fin!” e a banda sonora “Westminster Affair” evitaram que o seu nome caísse no esquecimento. Finalmente, e para alegria de todos aqueles fartos da mediocridade e futilidade das atuais correntes dominantes da Pop, o trio Bid-Square-Andy Warren, acrescido do guitarrista e teclista Orson Presence, regressa com mais um disco imprescindível. Mantêm-se todas as características que granjearam aos Monochrome Set a aura de excêntricos que souberam cultivar: a fluência e imaginação de Lester Square, com um som límpido e coleante, por vezes próximo de Johnny Marr, dos Smiths, como em “House of God”, a paródia subtil aos anos 60 e neste disco, também aos 70, através de pastiches de rock sinfónico sabiamente desarticulados e integrados no tom de excentricidade geral, as vocalizações sinuosas de Bid, lembrando por vezes esse outro “dandy” que é Ray Davies, dos Kinks, a imprevisibilidade constante das cadências melódicas e rítmicas, remetendo para linguagens imediatamente reconhecíveis e balizadas, mas introduzindo-lhes sempre o toque de distanciamento e estranheza que faz de cada faixa uma constante sucessão de surpresas. Calipso FM, Bubblegum sinfónico, “heavy” psicadélico, Pop’n’roll latino, são alguns rótulos possíveis para uma (im)possível catalogação. “Bella Morte”, “Walking with the Beast”, o irresistivelmente swingante “White Lightning”, ou o ultrabizarro “Reverie” são outras tantas entradas para o jardim das delícias. Alucinações à hora dourada e muito “British” do chá das cinco.

 

VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 26 SETEMBRO 1990

Osso Exótico - Osso Exótico

 Pop

 
OSSO EXÓTICO
Osso Exótico
LP, Multinational


 








            Este disco foi “recorded in a testing room of the Geotechnical Department by the occasion of the advanced study institute on rockfill structures organized by NATO and sponsored by Laboratório de Engenharia Civil with the participation of scientists of nineteen countries”, Segundo vem escrito na capa. O texto em questão, “in english” porque há hipóteses do osso ser distribuído no estrangeiro pela Recommended Records, suscita de imediato várias considerações. Dá-se a ênfase ao aspeto científico, rodeando o objeto de uma aura vagamente ameaçadora. Completa-se o efeito com a série de fotografias impressas na parte de dentro: interiores de laboratórios desertos, maquinismos suspeitos, embalagens contendo sabe-se lá que infernais venenos. No lado de fora são só pedras. Toda a apresentação remete para a estética habitual dos Zoviet France, grupo com o qual os Osso Exótico partilham determinados pressupostos: a tentativa de criação de sonoridades rituais, construídas a partir de uma aproximação à “música industrial”, de acordo com os métodos e propósitos enunciados há mais de dez anos pelos Throbbing Gristle; a experimentação com determinadas frequências sonoras, indutoras de estados físicos e psíquicos particulares, um pouco à maneira dos Hafler Trio. Os dois conceitos são complementares.

            Constituem o grupo António Forte, David e André Maranha e Bernardo Devlin, em atividades subversivas, divididas entre a manipulação de sintetizadores e “samplers”, a tortura de guitarras, os batuques metálicos e as contorções das vozes, estas denotando ou um grande sofrimento ou vociferando ameaças veladas, sem que se consiga perceber os termos exatos das mesmas, como é de bom tom neste tipo de música. Vítor Rua, dos Telectu, dá uma ajuda nos sistemas de produção eletrónica. A intenção geral é meter medo, de forma ambígua, apelando para imagens desfocadas e sonoridades de pesadelo. O primeiro lado preenche-se com um único tema: “Osso exótico”, sombrio, pesado, esmagando sem remédio quem pudesse aspirar a um resquício de melodia. Do outro lado, mais três temas, onde para além das monstruosidades sonoras, prevalecem as citadas vozes, ora invectivando a raça humana em geral ora entoando cânticos litúrgicos em louvor ao demónio.

            O problema maior que aqui se levanta, para além das considerações morais que tal discurso musical não pode deixar de acarretar, diz respeito à sua originalidade, posta exclusivamente em termos artísticos. No caso dos Osso Exótico, fica a dúvida se pretendem avançar num caminho até aqui ignorado pelos novos músicos portugueses, mas já inflacionado nas cenas alternativas europeia e americana, ou se se aproveitam desse facto, limitando-se a copiar modelos alheios (neste caso demasiado óbvios), procurando deste modo passar por inovadores. Para um ouvinte desconhecedor, este disco funcionará decerto, utilizando uma imagem cara ao grupo, como uma autêntica “pedrada”. Para aqueles já viciados na prática masoquista da audição destes “exercícios em negro”, é uma pera doce.

 

QUARTA-FEIRA, 19 SETEMBRO 1990 VIDEODISCOS

24/09/2025

Outra vez o muro, podre de maduro [Roger Waters]

 

Na capa

 

OUTRA VEZ O MURO, PODRE DE MADURO

 

O muro nunca mais acaba de cair. Agora é a vez da feire de Berlim, com Roger Waters vendendo os seus bonecos em saldo de fim-de-estação. Vai um tijolo e um porquinho?

 


Woodstock, Wight, Reading, Knebworth, Glastonbury, Veneza, Cannes, Figueira da Foz, Fantasporto, Bienais de Berlim, Nova-Iorque, Odivelas, Agro-Pecuário de Santarém, RTP da Canção – diferentes acontecimentos sustentando a designação comum de “festival”. De música, cinema, pintura, vacas e couves ou, simplesmente, lixo. Uns são culturais, outras nem tanto. Não querendo entrar aqui em polémicas se “vacas e couves” são ou não cultura, que tal a “cultura da batata”? A questão não é pacífica. Muito menos as suas implicações, artísticas ou alimentares. As opiniões dividem-se, a confusão impera. A noção de “lixo” é ainda mais ambígua. Bem coberto com camadas de verniz, judiciosamente aplicadas em delicadas operações cosméticas, e bem condimentado com sábia dose de “popstars” [?], passa com [...] por ser cultura artística.

 

Produtos de Festival

 

            O “festival” apresenta algumas características que o distinguem de qualquer outro tipo de atividade. Trata-se sempre de uma “mostra” de qualquer coisa, uma coleção de “produtos”. (Um filme, uma canção, um quadro, um pepino, para além do valor simbólico como “obras de arte” – e, se dúvidas há quanto ao pepino, recorde-se o quadro de Arcimboldo –, são também produtos, que se mostram, compram e vendem, objetos de comércio.) Neles, apresenta-se “trabalho feito”, em certames de maior ou menor projeção e importância, consoante a qualidade das mercadorias, a aplicação do verniz, ou as estratégias de “marketing”.

            Vem esta prosa a propósito da recente edição do duplo álbum com a gravação ao vivo do espetáculo “The Wall”, que os Pink Floyd deram, no outro dia, em Berlim. Foi um festival ou não foi? E, em caso afirmativo, que importância teve? Admitindo que os Floyd são cultura, o que é que se mostrou e se viu nessa noite de muitas luzes, tijolos e porcos insufláveis?  Consinta-se na importância sociológica e mediática do acontecimento, na data e local específicos em que se realizou: milhares de pessoas reunidas em frente do muro (ou do recetor de televisão), celebrando não se sabe ainda bem o quê, para além do ato simbólico da “queda”.

 

Prendinhas

 

            Mas, se o espetáculo de Berlim se justificava, o disco, editado “a posteriori”, parece funcionar apenas como uma espécie de “souvenir” (para aqueles que estiveram presentes na futura capital da Alemanha unificada) ou substituto (para os outros) do evento real, do mesmo modo que as “T-shirts” ou as embalagens com um tijolo, pretensamente arrancados do “muro”, vendidas aos turistas. Vestuário, discos e tijolos, transformados em ícones de um acontecimento que, para além do significado intrínseco, se deslocou para o domínio, sempre passível de rentabilização, das imagens e da pluralidade e dispersão dos sentidos.

            Pode, por exemplo, à laia de passatempo, comparar-se faixa a faixa, o original de Roger Waters e os Pink Floyd, de 1979, com as novas interpretações dos mesmos temas, levadas a cabo pelos numerosos convidados chamados a participar na encenação pública da paranóia do autor. E, nesta comparação, não restam dúvidas de que Bryan Adams, The Band, Tim Curry, Thomas Dolby, Marianne Faithfull, Albert Finney, Cyndi Lauper, Ute Lemper, Joni Mitchell, Van Morrison, Sinead O’Connor, Scorpions, a orquestra, as bandas e os coros envolvidos (já não falando do próprio Waters, com menos voz e quase nenhuma energia, e restantes Floyd), por muito que se empenhassem, não se revelaram à altura de fazer esquecer a unidade e força do primeiro disco.

 

Boas Intenções

 

            Claro que se pode ver a coisa de outra maneira: atendendo à sobreposição das temáticas abrangidas pelo conceito “queda do muro”, a obra de Roger Waters acabou por ganhar, onze anos depois, uma carga significante e uma premência que, na altura, refletia “apenas” as vivências pessoais do compositor. Assim, “The Wall – Live in Berlin” seria uma espécie de confirmação, reatualização do individual, projetado num imaginário coletivo, contemporâneo e politizado.

            Sabe-se, porém, que as ideias e intenções não valem (e sobretudo não vendem...) por si sós. A pureza e sinceridade que pudessem existir na recuperação de uma obra que sintomaticamente foi a derradeira dos Pink Floyd, como nome relevante da pop atual, perderam-se no espetáculo de circo e no aparato cénico de que se revestiu e em que se perdeu o espetáculo de Berlim. Mas foram os bonecos, os nomes dos convidados, as dimensões do muro a fingir, os helicópteros e o fogo-de-artifício que levaram todos aqueles milhares até às portas de Bradenburgo. Juntava-se o útil ao agradável: uma boa causa (recolha de fundos para o “Memorial Fund for Disaster Relief”) e a relevância cultural do acontecimento aliavam-se a uma gigantesca operação promocional de que agora se começam a recolher os dividendos.

 

O Muro em Série

 

            Não nos admiremos se a seguir aparecer novo disco, “The Wall – The Final Rendition” ou “The Complete Wall”, por exemplo, incluindo as prestações dos grupos que foram entretendo a multidão ao longo da tarde de 21 de Julho passado. Ou então outro, contendo toda a informação técnica relativa às dimensões do palco, feitura dos tijolos e potência das luzes. E porque não gravar Leonard Cheshire em dueto com Waters, sobre um fundo de ruídos de guerra? Ou a versão instrumental de “The Wall”, ou “The Wall in rap”, talvez “Acid House Wall”… Tanto ainda por fazer, senhores editores!...

            “The Wall – Live in Berlin” resume-se deste modo a uma feira de bonecos de borracha ou de carne e osso, personificados nas figuras disformes encarnadas por Ute Lemper ou Thomas Dolby, em que a música se reduz a uma réplica quase fiel do disco de estúdio, aumentada pelo ruído da multidão. Como se o tom épico pretendido residisse na acumulação de adereços e no aumento desmesurado das escalas. Seja como for, o “objeto” chegou, para se acomodar ao lado do restante entulho que enche as prateleiras das lojas. Por exemplo, entre uma Torre Eiffel cinzeiro e um galo de Barcelos.

 

VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 12 SETEMBRO 1990

The B-52's - Dance This Mess Around

Pop

 

SEMPRE EM FESTA

 

THE B-52’S
Dance This Mess Around
LP e CD, distri. BMG

            Sigla de bombardeiro. Alcunha de penteado em forma de melão espetado para cima, ao gosto de duas meninas que gostam de cantar: Cindy Wilson e Kate Pierson – The B-52’s – designação de conjunto pop, americano, podia lá deixar de ser. Ao todo são cinco, e cultivam o “kitsch” parolo-futurista. Ficção científica, índios e “cowboys”, Nova Iorque de pernas para o ar, a grande misturada, mexida e servida em “cocktail” de cores berrantes e sons “naif”. Órgão de plástico de banha-da-cobra, ritmos saltitantes (como se fossem uns Talking Heads de província, acabadinhos de chegar à grande metrópole, ou os Devo sem dinheiro para sintetizadores), à volta das vozes fininhas das meninas com ar e nome de bonecas: Cindy e Kate, primas de Barbie. Mini-saias, “art deco” e os outros três (Ricky Wilson, Fred Schneider e Keith Strickland) procurando não destoar da pose. Todos juntos, ao vivo, são inseparáveis, excitantes, completamente destrambelhados. A nossa televisão dignou-se a passar umas suas atuações, aqui há uns anitos. Inesquecível. De dar saltos. Deram o seu primeiro concerto numa festa particular, o amplificador do gira-discos a servir de P.A. e toda a gente aos pulos, quase fazendo cair o soalho. Depois o Deadbeat Club, antes dos Max’s Kansas City e de serem descobertos pelo patrão da editora Island, Chris Blackwell.

            “Dance This Mess Around” é uma coletânea de alguns dos melhores temas da banda, nomeadamente dos dois primeiros álbuns, “The B-52’s” e “Wild Planet”. As exceções são “Song for a Future Generation”, de “Whammy”, e “Wig”, não incluídos em nenhum dos prévios “longa-durações”. De fora, ficaram estranhamente discos como “Mesopotamia”, “Bouncing Off Satellites” e o recente “Cosmic Thing”.

            Os B-52’s não pretendem ser sérios. Só lhes falta pintar o nariz de vermelho, de tanto que se esforça para parecerem divertidos. Para eles, o mundo é uma festa, ao som do estalar de foguetes, com muitos “confettis”, planetas multicores e pequenos objetos inúteis. Sociedade de consumo. Hipermercado feérico, repleto de brinquedos e luzinhas. O universo é como um parque de diversões, “luna park” de emoções aos saltos no sobe-e-desce da montanha russa e algodão doce à saída.

            O tempo é outra brincadeira. As épocas confundem-se – meras reproduções de gravura de revista. Recortes. “Polaroids” de civilizações congregadas no culto à Coca-Cola. Mesopotâmia? Deve ser ao lado da Suécia, ou será uma nova série de TV? “Everybody goes to parties – Dance this mess around”. Lancem-se serpentinas e beba-se e dance-se até de madrugada. A América é uma “party” antes da ressaca. Cérebros dançando em espiral, para lá de Plutão, até aterrarem no planeta “Claire”. Qual o aspecto de uma lagosta de pedras? Sabe-se lá!... A ligação para o 6060-842 está sempre impedida.

            A música dos B-52’s vive de felizes desencontros, como peças de um “puzzle” encaixadas ao acaso, acabando por formar novos e inusitados padrões. Malucos é o que eles são. David Byrne não partilha essa opinião: produziu-lhes o desvario geográfico “Mosopotamia”. O som varia pouco, as meninas dão por vezes gritinhos histéricos, mas não se consegue deixar de ouvir e dançar.

            Quem disse que a demência é dolorosa? Um passo em frente, dois à retaguarda, salto no ar e cambalhota – “The Art of Walking” – como diria o pai Ubu. Não é dadá, é gagá. Irresistível.

 

VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 12 SETEMBRO 1990


O CAMPO DE BATALHA [Battlefield Band]

 

Folk

 

O CAMPO DE BATALHA

 

Da Escócia, país de lendas e nevoeiros, a música mágica dos Battlefield Band. O amor pelas lonjuras ancestrais recriado no presente e projetado no futuro. A gaita de foles e o sintetizador. A tradição, o cruzamento feérico da cidade industrial com o verde e a água da floresta.



Gravaram, até à data, doze álbuns, alguns deles peças indispensáveis numa coleção folk digna desse nome. Combinam a interpretação das canções e danças tradicionais com composições escritas pelos membros do grupo. Respeitando o espírito original, iluminando a corrente que liga a terra ao céu.

            Só os amantes deste especial tipo de música saberão talvez apreciar, sentir astralmente, as vibrações que se desprendem das sonoridades tradicionais. Irmanados na congregação do Grande Templo, as portas do tempo revelando e escondendo o secreto centro. Fogo, ar, água, terra. Quatro entradas e mais uma, oculta, para o país dos sortilégios. A música fala-nos da eternidade. A tradição aponta-nos o coração ígneo, silêncio pulsante donde nasce o movimento. Em cima, esculpindo as formas do que há-de ser. Em baixo, nos pés que pulam e batem no barro, nas folhas e no húmus, bailando ao ritmo das estações, dos astros e das humanas paixões.

            Os novos bardos catalisam o polo positivo do poder, raio forçando a transição entre duas épocas. Força ascensional, percorrendo os quatro eixos do mundo, enquadrando o corpo e a consciência no eixo vertical e superior. A cruz centrando a rosa. Flor de luz.

 

Em Casa

 

            Os Battlefield Band não serão tão esotéricos. Neste caso, as palavras servem como orientadoras da sensibilidade. Não se ouve música folk da mesma maneira que a pop ou o rock. Aprendizagem é iniciação. A banda escocesa, uma boa escola.

            A fase inicial da sua discografia, que vai de 1976 a 1979, constituída pelos três primeiros álbuns, intitulados simplesmente “Battlefield Band” 1, 2 e 3, e por “At the Front” e “Stand Easy”, não se encontra, por enquanto, disponível entre nós. A coletânea “The Story So Far” reúne material deste período, bem como de EP e cassetes da banda. É a fase da procura de uma via pessoal, a exploração de combinações instrumentais inusitadas que se tornariam num dos seus polos mais interessantes e inovadores. Saliência para algumas vocalizações femininas, a partir daí completamente ausentes dos processos musicais dos Battlefield Band.

            “Home Is Where The Van Is” assinala a grande explosão. Ged Foley (que viria a formar os House Band), bandolim, guitarra, gaita de foles de Northumbrian e voz; Brian McNeill, violino, viola de arco, “bouzouki”, “cittern”, concertina, sanfona e voz; Alan Reid, teclados (órgão, piano, sintetizador) e voz; e Duncan MacGillivray, gaita de foles das terras altas, “tin whistle”, guitarra, harmónica e voz, dão corpo e alma a uma música verdadeiramente excitante, alternando temas do cancioneiro com composições originais de McNeill e Reid. É o primeiro álbum gravado para a editora Temple, de Robin Morton, que dá uma ajuda num dos temas, tocando “bodhran” (correspondente britânica do adufe).

 

Computando a tradição

 

            “There’s a Buzz”, outro disco fora de série, está ao mesmo nível que o anterior. Robin Morton volta a participar, tocando trompete em “Sir Sidney Smith’s March”. Dougie Pincock, dos Kentigern, ainda na condição de artista convidado, toca flauta em “Shining Clear”, tema baseado num poema de Robert Louis Stevenson. Em “The Battle of Waterloo” fazem jus ao nome que para si escolheram, com Duncan MacGillivray e Dougie Pincock competindo nas gaitas-de-foles.

            O computador de ritmos faz a sua aparição em força no álbum seguinte, “Anthem For The Common Man”, talvez o disco mais fraco, a tecnologia ainda não assimilada de molde a não perturbar a coerência estética do projeto. Ainda assim o disco vale por peças como “I Am the Common Man” ou “The Yew Tree”, em que os Battlefield fazem questão de nos presentear com extraordinárias prestações vocais. MacGillivray é entretanto substituído por Dougie Pincock, na gaita-de-foles, e Ged Foley dá lugar a Alistair Russell. A mesma via é prosseguida em “On The Rise”, com a vantagem dos ritmos computorizados encontrarem o seu justo lugar na hierarquia instrumental, funcionando de maneira mais discreta e contribuindo assim para um maior equilíbrio entre as componentes acústica e eletrónica. Mesmo assim, os puristas dão saltos ao escutar “Bad Moon Rising”, dos Creedence Clearwater Revival, transformado em jiga.

 

Hotel Celta Universal

 

            “Celtic Hotel” constitui novo marco de exceção. O leque instrumental alarga-se ainda mais, com a introdução do saxofone e do “mandocello”. Os Battlefield Band assumem-se definitivamente como uma das forças criativas a ter em conta no desenvolvimento da folk escocesa, numa perspetiva semelhante à de Alan Stivell em relação à música e tradição bretãs. O som torna-se mais universal, e abre-se, em “Muineira Sul Sacrato Della Chiesa”, a essa outra finte inesgotável da cultura e imaginário celtas que é a Galiza e à Bretanha, em “E Kostez An Henbont”, um “dro” (cadência rítmica utilizada com frequência nesta região). Brian McNeill confirma, em “The Rovin’ Dies Hard”, o estatuto de compositor à altura para contribuir com novas canções para o património cultural popular escocês, numa balada que relata o confronto entre a nova geração de músicos e o passado e legado históricos que lhes estão na origem.

            “Homeground”, o mais recente trabalho da banda, é o único gravado ao vivo, até à data. Ao lado de irrepreensíveis interpretações de temas de álbuns anteriores, surge um “medley” impensável que junta, no mesmo saco e a um ritmo diabólico, jigas, “reels”, rock ‘n’ roll, os Beatles de “With a Little Help from my Friends” e mesmo algumas brincadeiras rap. A diversão total, o puro gozo de tocar ao vivo, a alegria de uma música que não se esgota em discursos de academismos enfadonhos.

            Assinalem-se ainda, a par da discografia do grupo, os discos a solo de Brian McNeill, “Monksgate” e “Unstrung Hero”, bem como a colaboração, em dois volumes, dos Battlefield Band com a harpista Alison Kinnaird, no projeto “Music in Trust”, com a música composta para o programa televisivo do mesmo nome. Série de documentários sobre zonas e edifícios de interesse histórico-cultural, em que o vigor e a complexidade formal do quarteto se casam na perfeição com o tom mais sereno e introspetivo de Alison Kinnaird, que cintila nos fulgores e vibrações das cordas da “clarsach” (designação local para a harpa escocesa).

            A maior parte dos discos gravados para a Temple são distribuídos no nosso país pela Mundo da Canção, sediada no Porto, que tem desenvolvido um meritório trabalho de divulgação das propostas mais atuais do movimento folk britânico.

            Pedra a pedra se vai construindo o templo. Portugal está prestes a ocupar nele o lugar que, por divino direito, lhe pertence. Saibamos ser a alma, visão e respiração de um mundo a arder.

 

QUARTA-FEIRA, 15 AGOSTO 1990 VIDEODISCOS