11/12/2025

"Gosto da liberdade de improvisação" [Nuno Rebelo]

 

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 19 JUNHO 1991 >> Cultura

 

Nuno Rebelo, depois da vitória no Concurso de Música Moderna

 

“Gosto da liberdade de improvisação”

 

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Dos computadores, Nuno Rebelo passou para os delírios da improvisação em palco. Duas faces de uma mesma moeda: a paixão pela música. Há anos, o concurso do Rock Rendez-Vous lançou-o e aos Mler Ife Dada. Agora a história repete-se, com os Plopoplot Pot.

 

Os Plopoplot Pot, projeto há muito acalentado por Nuno Rebelo, venceram o Concurso de Música Moderna, promovido pela Câmara Municipal de Lisboa. Como sempre acontece nestas ocasiões, houve polémica. Vitória da competência sobre a imaginação, disse-se a propósito. Colagem aos Naked City, “exercício masturbatório”, “mutíssimo competente execução” foram algumas das “acusações”. Nuno Rebelo não tinha o direito de ser o melhor.

PÚBLICO – Que motivos o levaram a participar num concurso aparentemente vocacionado para a divulgação de novos nomes, o que não é o seu caso nem dos outros Plopoplot Pot?

NUNO REBELO – Os Plopoplot Pot são um projeto surgido há cerca de três anos. O nome era outro mas a ideia era a mesma. Houve alguns ensaios e desistimos. Mas fiquei com essa “fisgada”. Em relação aos concursos, vejo-os como uma oportunidade de concretizar ideias. São uma motivação. Quando era pequeno, fazia histórias de banda desenhada. Pensava em escrever histórias de 50 páginas mas nunca passava da segunda, porque sabia que não as ia publicar. Preciso imenso desses objetivos concretos. Em relação à banda, como não houve nenhuma editora que viesse ter comigo a dizer “forma uma banda que eu gravo-te o disco…”

P. – Mas a vossa participação no concurso pode ser encarada como uma forma de promoção que, na prática, está a tirar a oportunidade a músicos mais novos…

R. – Antes de eu apresentar as maquetes, telefonei para a organização a pôr essa questão. Foi-me dito que havia vários grupos a concorrer com músicos profissionais, um com o Rui Júnior e a Paula dos Ban, falava-se de um grupo com o Jimba e alguns dos Censurados. Disseram-me mesmo que o prémio do concurso era muito bom, precisamente para cativar os profissionais, de modo a aumentar a qualidade, para não se chegar ao fim e o júri dizer “bem, ora vamos lá dar o prémio ao mal menor”.

P. – E se os Plopoplot Pot não tivessem ganho?

R. – Teria sido uma vergonha tremenda, para mim. Foi um risco que tive de assumir. A partir do momento em que entreguei a maquete, passei a funcionar só em termos de “vou ganhar este concurso”.

 

Projeto para continuar

 

P. – Os Plopoplot Pot são projeto para continuar?

R. – Isto foi a concretização da ideia do grupo. A segunda etapa é tentar arranjar, o mais rápido possível, maneira de gravar um LP. A terceira, tentar ir lá para fora, uma vez que nos movemos numa área em que competimos em pé de igualdade, o que não acontece com grupos como os Delfins ou os Xutos, que têm de competir com mega-estruturas, ao nível das dos Simple Minds ou Rolling Stones.

P. – Há quem compare a música dos Plopoplot Pot à dos Naked City. Em relação a si, que no grupo toca baixo e violino, vem à baila o nome de Fred Frith. Aceita este tipo de comparações?

R. – O que se passa é haver uma relação de identidade. Há dias, a seguir a um concerto, a propósito da tal influência dos Naked City, respondi que “lá por duas pessoas falarem francês, não quer dizer que se andem a imitar uma à outra”. Dito isto, em termos de referências, é preciso recuar aos anos 70 e aos Gentle Giant, ou aos 80, quando ouvia Fred Frith, com quem me identifico, em termos de sensibilidade musical. Já John Zorn e os Naked City são referências mais remotas. A cena de contrastes dos Naked City é uma coisa que eu já desenvolvia com os Mler Ife Dada.

P. – As pessoas tendem a associá-lo aos computadores e à música eletrónica. Como explica a passagem repentina para um contexto tão diferente?

R. – Nesta banda reencontrei a energia que tinha perdido quando deixei os Street Kids, que vinham da “new wave”. Havia uma carga energética em palco que se foi perdendo nos Mler Ife Dada e de que comecei a sentir falta. Posso dizer que nunca na minha vida dei um concerto em que tivesse descarregado tanta energia, como na final do concurso. Saí com os músculos da barriga completamente doridos, as pernas pareciam de gelatina. Não me aguentava de pé.

P. – Houve mesmo quem chamasse à vossa prestação um “exercício masturbatório”…

R. – Nós o que fizemos foi reencontrar o velho prazer de tocar ao vivo. Em palco, há toda uma comunicação entre os músicos, à base de sinais, de olhares, de gritos. Quase um ritual. Subimos para o palco, fechámo-nos sobre nós próprios e carregámo-nos de energia. A pensar: “vou explodir a seguir, vou dar o máximo”.

 

O prazer de fazer música

 

P. – Como encara o futuro da música portuguesa alternativa?

R. – Há uma situação interessantíssima na cena atual. Acho tão importante a atividade individual de maturação dos músicos, como depois partilhar isso com os que passaram pelo mesmo processo. No meu caso, há um mês estava no Johnny Guitar com um computador, em improvisações eletrónicas, e o Sei Miguel na trompete. Um mês depois estou num palco a partir as cordas do baixo. Isto é ser músico, em 1990. Gosto da eletrónica, mas também da energia rock e da liberdade de improvisação. Movimento-me pelo prazer de fazer música.

P. – Em que ponto se encontra a hipótese de edição no estrangeiro, nomeadamente na belga Made to Measure (MTM), subsidiária da Crammed?

R. – A “Sagração do Mês de Maio” funcionou como uma espécie de cartão de visita para o Marc Hollander. Mandei-lhe depois material como o “Auto da Índia”, da peça de Gil Vicente, composta sobre música do séc. XVI, vista por um prisma atual, e música étnica dos lugares por onde os portugueses passaram. Disse-me que nunca tinha ouvido nada igual, mas lamentou não poder editar. Ele edita discos de John Lurie ou Arto Lindsay que vendem 40, 50 mil exemplares. Quantos venderia o Nuno Rebelo? O objectivo de Marc Hollander é chegar o dia em que as pessoas comprem um disco da MTM só porque é MTM, seja do José da Silva ou do Mike Stangerman. Só nesse dia o Nuno Rebelo terá lugar na Crammed.

 

 

Cao na Mãe d'Água [Emilio Cao]

 

PÚBLICO DOMINGO, 16 JUNHO 1991 >> Cultura

 

Cao na Mãe d’Água

 

NA MÃE D’ÁGUA, em Lisboa, continua a decorrer (até dia 18) um ciclo dedicado aos instrumentos de corda, à semelhança aliás do que, em local diferente, aconteceu no ano passado. Anteontem à noite foi a vez do duo Carmen Cardeal/Pedro Teixeira da Silva, repetivamente em violino e harpa clássica, e do galego Emilio Cao, em harpa céltica. A Mãe d’Água, situada na zona das Amoreiras, é uma imensa cisterna aberta a meio do aqueduto das águas livres ou, se quisermos, uma catedral de água, cuja ressonância de 55 segundos constitui uma característica interessante (se bem aproveitada) para a prática de música acústica. Espaço mágico, em boa hora dado a descobrir aos lisboetas.

Ao centro da superfície aquática, enquadrado por quatro imponenetes colunas, erguem-se esculturas (da autoria de Susanne Themlitz e Paula Valente) imitando instrumentos de corda, que a iluminação (concebida por Pedro Leston) e a reflexão da água transformam em simetrias luminosas, vibrando em sintonia com o elemento líquido.

Carmen Cardeal e Pedro Teixeira da Silva interpretaram, com a sensibilidade que o espaço circundante pedia, peças de Donizetti, Debussy, Bach e Bartok, entre outros. Se a ressonância, por um lado, dimensiona o som de maneira a dilatar o espectro vibratório, por outro, não tem quaisquer contemplações para com o mínimo deslize dos intérpretes, o que, na ocasião aconteceu algumas (raras) vezes – uma ligeiríssima saída de tom nos registos mais agudos do violino ou uma corda grave da harpa a soar desagradavelmente lassa – mas não chegou para comprometer nem a prestação dos músicos nem o prazer da audição.

Emilio Cao, um dos expoentes da harpa céltica e da música tradicional da Galiza, por seu lado, estava positivamente encantado com a acústica e o ambiente do local. A sua harpa poucas vezes terá soado tão pura e ao mesmo tempo tão majestosa, como na ocasião. Jogando, por várias vezes, com “clusters” prolongados, conseguiu criar acordes e harmónicos que mais se assemelhavam às emanações de um órgão celestial. Cascatas de notas (o músico aludiu ao paralelo entre os sons da harpa e a água) que desaguaram no dedilhar preciso (arrancou estrelas das cordas, trazendo o céu da Galiza para o lago oculto no centro de Lisboa) dos instrumentais célticos e na suavidade contida do canto, de “Fonte do Araño” ou “Amiga Alba e Delgada”. Silêncio interior, reverberado nas notas infinitas da harpa e na comoção das centenas de pessoas que, ostentando no rosto expressões de autêntico êxtase, comungaram com a água, a luz e as intimistas liturgias tradicionais do músico galego. No final, muitos foram aqueles que, querendo talvez continuar a ascese, subiram a estreita escada de pedra que conduz ao terraço da construção, agora transformado em esplanada, para ver, como se fosse a primeira vez, a linha quebrada que une o céu aos telhados de Lisboa.

 

10/12/2025

Rosa Zaragoza - Les Nenes Bones Van Al Cel; Les Dolentes, A Tot Arreu

 

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 12 JUNHO 1991 >> Pop Rock >> LP’s

 

ROSA ZARAGOZA
Les Nenes Bones Van al Cel; les Dolentes, a Tot Arreu
CD, Saga, distri. Mundo da Canção
 
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     As raparigas boas vão para o céu, as más (Rosa Luxemburgo, Violeta Parra, Safo de Lesbos, Angela Davies, Camille Claudel ou Janis Joplin, entre outras mencionadas na capa) não se percebe bem, mas deve ser para o inferno. Se bem que isto de raparigas “boas” ou “más” seja muito relativo, dependendo da maneira como se olha. Cicciolina, por exemplo, é “boa” ou “má”?

Rosa Zaragoza é boa, nos dois aspetos. No segundo, contudo, já foi melhor, em álbuns anteriores – como “Cançons de Noces del Jueus Catalans / Canciones Judeo-Españolas” e “Cançons de Bressol del Mediterrani” –, nos quais canta a música que lhe é mais querida, dos judeus sefarditas do Sul de Espanha. Em “Los Nenes...”, pelo contrário, Rosa opta pela “canção de protesto”, colocando a sua voz magnífica (terna e intimista ou angustiante e próxima do grito, tal qual uma Diamanda Galas da folk) ao serviço de minorias étnicas como a cigana e a índia, ao mesmo tempo que vai defendendo a causa feminina.

“L’esperança de la meua vida”, melopeia árabe encantatória, “Niggum”, um tema tradicional hassideano (hassideanos – presumíveis antepassados dos fariseus), “Aixi s’acaba la vida”, pungente, letra escrita em 1954 por um índio americano em carta dirigida ao Presidente dos EUA, “Una abraçada d’amor”, maravilhosamente judia, ou o esoterismo basco de “Baga biga higa” justificam por si sós a audição atenta e a descoberta de uma voz ímpar da atual música popular.

Para os amantes da tradição musical sefardita, uma referência final para a coletânea “Todas las voces de sefarad”, que inclui os seus melhores intérpretes, como La Bazanca, Raices, Simane, Joaquin Diaz, a própria Rosa Zaragoza, para além de gravações recolhidas em direto da comunidade israelita de Madrid. Bons ventos, soprando do Mediterrâneo. ****

 

La Bottine Souriante - Chico & Swell

 

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 12 JUNHO 1991 >> Pop Rock >> LP’s

 

LA BOTTINE SOURIANTE
Chic & Swell
CD, Green Linnet, distri. Megamúsica
 
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     Acredite-se ou não, o Canadá também tem folclore. Evidentemente, é uma mistura, mas uma mistura fascinante. A música tem “cajun”, as jigas, “reels” e demais danças irlandesas, juntamente com as suas congéneres francesas, combinaram-se de modo a dar origem a um novo estilo que, dos ingredientes, soube retirar a quintessência. Os La Bottine Souriante, prosseguindo uma tradição que remonta à “explosão” dos “fous du folk” dos anos 70 e à existência, no Canadá, de grupos como os Harmonium, Séguin ou La Chiffonie, retomam as experiências então realizadas no seio da editora francófona Hexagone (que em breve terá representação nacional), burilando as arestas mais ásperas das sonoridades rurais para lhes sublimar a elegância e o requinte, num trabalho formal que só a distanciação e a pesquisa permitem. Fabulosas, em “Chic & Swell”, as harmonias vocais (partilhadas pelos cinco elementos da banda) e o violino de Martin Racine, ao longo de uma imparável sequência de danças e canções (sublime, “Le Rossignol Sauvage”) capazes de juntar, num golpe, a Irlanda, Escócia e França ao caldeirão do Quebeque. ****

 

Gwendal - Glen River

 

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 12 JUNHO 1991 >> Pop Rock >> LP’s

 

GWENDAL
Glen River
LP, MC e CD, Mélodie, distri. Mundo da Canção

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     Os Gwendal são atualmente Youenn Le Berre e Robert Le Gall, bretões de espírito aberto, sem vergonha nem pruridos puristas de qualquer espécie. Para eles a música tradicional, neste caso da Bretanha, é o ponto de partida para viagens sem roteiro fixo nem regresso assegurado. Estiveram recentemente no Porto, no II Festival Intercéltico, e desiludiram quem estava à espera de reencontrar a síntese jazz-folk dos tempos áureos de “À vos désirs”. Agora a música é outra, mais dispersa, eletrónica e descomplexada. As flautas, gaita-de-foles, bombarda e violino tradicionais juntam-se ao saxofone, ao baixo e às programações computorizadas, em delírios de síntese que de modo algum seguem à risca os preceitos do “velho” compêndio celta. O “celtic reggae” de “Glas nox”, o africanismo pop de “Uilean mandinga”, o sinfonismo oldfieldiano de “La tarentule” ou a “electronic body folk” de “Celtic bridge” são algumas das direções que os Gwendal apontam, com maior ou menor convicção. Há faixas dispensáveis, de evidente mau gosto rockeiro, outras integradas no mais puro espírito tradicional (“Jigger jig”, “Noces de granit”, “Sterem” ou esses “Champs bothorel” cintilantes de cristal). A capa explica o conteúdo: um edifício futurista perdido entre as brumas de uma floresta. ***

 

DAVID BYRNE - The Forest

 

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 12 JUNHO 1991 >> Pop Rock >> LP’s

 

O HOMEM E O MITO

 

DAVID BYRNE
The Forest
LP, MC e CD, Luaka Pop/Sire, distri. Warner

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     David Byrne passou definitivamente para o “outro lado”. “The Forest”, o seu mais recente projeto, não tem rigorosamente nada que ver com toda a sua discografia anterior, a solo ou nos Talking Heads. Em termos formais, trata-se de uma obra conceptual, inteiramente orquestral e destituída de quaisquer conotações com o rock ou a pop. O título pode induzir em erro, sugerindo um manifesto ecológico pró-Amazónia, que, no caso de Byrne, nem sequer seria despropositado, tendo em conta anteriores ligações ao Brasil, à sua música e aos seus rituais. “The Forest” avança exatamente na direção oposta à “féerie” carnavalesca de Rei Momo ou das recentes coletâneas brasileiras. “Floresta” que aqui funciona antes de mais como uma metáfora do inconsciente coletivo. “Menos uma peça e mais um processo de descoberta do nosso lugar no mundo”, para utilizar as palavras do compositor. Chegados a este ponto o melhor é sentarmo-nos todos, relaxar, cruzar as pernas, acender o cachimbo e baixar as persianas e a voz. O assunto é sério e merece discussão. Vamos por partes.

Comecemos pelo som, que é o que chega aos ouvidos em primeiro lugar. Peça única, dividida em dez partes, em que a orquestra é o principal “instrumento” solista. Há coros grandiosos, percussões tonitruantes e, ocasionalmente, a voz de Byrne, quase irreconhecível. A explicação encontra-se em parte no crescente interesse que o músico tem vindo a devotar aos compositores românticos do século passado, saltando por cima da aventura serialista, para recuperar o maior mediatismo da “música de filmes”, aquela que as pessoas associam a sentimentos de “respeito”, “mistério”, “aventura”, “terror”, “angústia” e “alegria”.

Os saltos seguintes são menos evidentes. A ideia de Byrne é a seguinte (baixemos ainda mais o tom de voz e, já agora, o de lá do fundo que apague a luz e feche a porta): juntar a mitologia suméria às novas conceções do mundo nascidas da Revolução Industrial. “Não é possível!”, exclamam todos em coro. “Com David Byrne, tudo é possível!”, riposta, imperturbável, o crítico, voltando a acender o cachimbo e descruzando as pernas, enquanto se delicia com a reação da plateia.

Na altura, David Byrne andava a ler muito provavelmente o clássico de Mircea Eliade. De repente, descobriu que “as lendas e mitos podiam funcionar como uma espécie de histórias primordiais, a partir das quais emergiriam todos os filmes contemporâneos, programas de TV e novelas”. Como o mito mais antigo que conhecia era o poema sumério da saga de Gilgamesh, foi por aí que começou. Já agora, para aliviar um bocado a tensão (está um ambiente de cortar á faca), eis alguns dos subtítulos de “The Forest”: “Ur”, “Dura Europus”, “Samara”, “Nineveh”, “Teotihuacan”, “Asuka”...

Onde é que íamos? Ah, sim, os mitos... Pois, acontece que esse, como outros mitos, descreve (de forma mais ou menos obscura), “voilá”, “as relações entre a natureza e a cultura, a luta do homem e da civilização contra a natureza, a imortalidade e a morte”. Ora, precisamente, toda esta problemática foi discutida e reformulada durante a Revolução Industrial, na Europa e nos Estados Unidos, dando origem a novos conceitos como: “a natureza é maravilhosa e as cidades são feias” ou “Deus faz parte da natureza, o homem não”, bem assim como a noções revolucionárias sobre o que eram, ou deveriam doravante passar a ser, coisas tão importantes como “progresso”, “sexo”, “trabalho”, “sexo”, “máquinas”, “sexo”, “amor” e, sobretudo, “sexo”. O problema (e eis-nos chegados ao cerne da questão), está em que a dita revolução passou para a vitrina dos museus, mas as ideias e preconceitos entretanto formados, não. Citando Byrne: “Vivemos já num novo mundo, com uma cultura assente no primado da informação e da computorização, mas os hábitos mentais e as crenças das pessoas permanecem obsoletos.” Para abreviar a coisa (já se notam ao fundo da sala alguns bocejos): Somos “modernos” da treta, que só querem sopas e descanso.

É aí que aparece “The Forest”, decidido a alterar o estado calamitoso a que chegámos e a acabar de vez com tamanha vergonha e iniquidade. Mas, para tal, tornava-se necessário penetrar nos meandros da “floresta” metafórica do inconsciente, “sentir o romance das fábricas, a beleza, o poder e as possibilidades das máquinas que iriam transformar o mundo” e depois “tentar usar esta música para entrar nas mentes dos nossos antepassados, tanto os europeus como os sumérios”. Só assim se tornará então possível dar um passo em frente, em direção ao futuro, que provavelmente coincidirá com o próximo álbum dos Talking Heads.

Malta, vamos a acordar. A coisa não é assim tão grave. Afinal trata-se apenas do novo disco de David Byrne. O homem até acredita no que diz e, o que é mais importante, de cada uma das suas loucuras resulta sempre música interessante. Como é o caso. Passadas a estranheza e resistência inicial ao radicalismo formal e à recusa sistemática em conceder o mínimo espaço à dança. Substituído pelo rigor orquestral e pelas estruturas “clássicas”, de que “The Forest” (parte da qual foi utilizada na peça teatral do mesmo nome, dirigida por Robert Wilson) faz gala em ostentar, resta apenas cortar as amarras, partir à aventura e seja o que Deus quiser. Depois da audição haverá talvez quem desate a correr desaustinado à procura de segurança nos discos dos Talking Heads. Outros pensarão que, afinal de contas, talvez Beethoven, Wagner ou Mahler não sejam assim tão maus. Outros, finalmente, ficarão mergulhados no mais profundo estupor. A maioria ficará confusa, sem saber o que fazer deste objeto “diferente” e impenetrável a emoções primárias.

Independentemente de tudo, porém, fica uma certeza: David Byrne (re)tomou a dianteira e o comando das operações, na frente mais avançada das manobras musicais do nosso século. “The Forest” ficará na história como um dos manifestos mais belos alguma vez escritos sobre a inquietação do homem perante o absoluto. Podem sair. *****

 

 

O homem que gravou Portugal ["Povo Que Canta"]

 

PÚBLICO SÁBADO, 8 JUNHO 1991 >> Local >> Televisão

 

O homem que gravou Portugal

 

É NOSSO costume deixar andar. Esperar que os outros façam por nós. Felizmente, no caso do folclore, houve quem fizesse, para nossa sorte e vergonha. Chamava-se Michel Giacometti, era corso e chegou a Portugal em 1959, atraído por um livro que lera, de Kurt Schindler, sobre Trás-os-Montes. Morreu português, após uma paixão pela música tradicional portuguesa que durou cerca de 30 anos, tantos quantas as viagens pelos territórios da nossa alma. Amou os portugueses melhor do que os portugueses. Gravou-lhes as alegrias e tristezas, com um gravador (então, uma coisa “satânica”) e “aquele ar manso de quem se aproxima devagar das borboletas não para as caçar, mas para lhes decifrar as cores e o voo”, como o descreve Sérgio Godinho. Contra a política oficial da FNAT, dos ranchos e dos acordeões, vigiado pela PIDE, Michel Giacometti percorreu o país à procura da nossa e da sua verdade. Contra o “folclore” devolveu-nos o folclore genuíno. Um “Cancioneiro Popular Português” e uma “Antologia de Música Regional Portuguesa”, em colaboração com Fernando Lopes-Graça, 150 horas de gravações registadas nos 24 discos dos “Arquivos Sonoros Portugueses”, seis mil fichas de informação etnográfica e três mil fotografias são o resultado dessa paixão. Quando chegou pela primeira vez a Bragança, de capa negra, “barba enorme” e cabelos compridos, o povo estranhou: “Uns diziam que era um padre; outros, um personagem mítico qualquer; e houve quem achasse que era a alma penada de um conde que, de vez em quando, voltava à terra”.

As Outras Músicas, de José Duarte, foram buscar gravações do programa Povo que Canta, que Michel Giacometti organizou e a RTP, na época, transmitiu. Para discutir e não deixar esquecer.

 

Canal 2, às 19h50

 

 

04/12/2025

Folclore, por tudo e por nada [Folk Tejo]

 

PÚBLICO TERÇA-FEIRA, 4 JUNHO 1991 >> Cultura

 

Folk Tejo

 

Folclore, por tudo e por nada

 

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Feito o balanço final do Folk Tejo, ressalta a necessidade de, para a próxima, se corrigirem os erros deste ano. Se a música, na generalidade, não foi de molde a entusiasmar, louve-se, pelo menos, o esforço de dar a conhecer à capital alguns dos nomes mais importantes da “folk” atual. Só por isso, terá valido a pena.

 

Agora que a poeira começa a assentar, importa fazer o rescaldo e tirar algumas conclusões sobre o que foi e poderá vir a ser, num futuro próximo, o Folk Tejo, iniciativa que neste ano de arranque terá incorrido em alguns equívocos e erros de cálculo que, de futuro, convirá evitar. Do papel à prática, algo falhou. Não faz sentido, por exemplo, concentrar num só dia, quatro nomes de cartaz, todos conotados com a mesma área musical, deixando para o outro uma mescla desequilibrada de estilios que só terá servido para confundir e, nalguns casos desmotivar, o potencial auditor e consumidor das chamadas “músicas tradicionais”. Se os portugueses Vai de Roda e Júlio Pereira se incluem sem dificuldade naquela categoria, já a banda do brasileiro Paulo Moura ou os americanos Moore by Four fariam melhor figura, respetivamente numa festa dos subúrbios do Rio de Janeiro e no casino do Estoril. Depois, quatro nomes por noite, é excessivo: no final da noite de domingo, estariam pouco mais de meia centena de pessoas a assistir à atuação dos Moore by Four.

Quanto à escolha do Coliseu dos Recreios, para um acontecimento deste género, também não terá sido das decisões mais acertadas. Demasiado fria para uma música que exige a proximidade e a cumplicidade do público, a “catedral”, como lhe chamam, ainda por cima não ajuda em termos acústicos, sobretudo quando, como foi o caso, não está cheia. Finalmente, o que é mais grave, ao “Folk Tejo” terá faltado um adequado enquadramento estrutural (ao contrário do que aconteceu recentemente com o 2º Festival Intercéltico), traduzido em atividades paralelas, capazes de o transformar em verdadeiro acontecimento cultural e não, como por vezes deu a desagradável impressão, numa mera jogada de oportunismo eleitoral. Uma referência final positiva para o programa, elaborado com mão de mestre pela equipa da “MC – Mundo da Canção”, que constitui o relançamento desta revista de boa memória, preparada para arrancar com novos voos.

E a música, como foi? Excelente, a dos Vai de Roda, como já vai sendo hábito, pese embora a proverbial e salutar insatisfação do seu mentor, Tentúgal, sempre em busca da impossível perfeição. Destaque para as prestações instrumentais de todos os músicos que desta feita se sobrepuseram às partes vocalizadas, prejudicadas, sobretudo a partir de “São João”, pelo som “assassino”. No final, os Vai de Roda apresentaram um tema inédito, a incluir num provável terceiro álbum (“nem que seja daqui a mais sete anos”), introduzido por uma notável improvisação de Tentúgal, na sanfona, a imitar o fraseado e a sonoridade da gaita-de-foles e concluído, de forma algo hesitante, pela voz de uma cantora convidada, pouco habituada ainda a estas andanças pelos “Coliseus”.

Júlio Pereira entrou de seguida, em força, empunhando uma espécie de mini-guitarra elétrica (uma bandolarra? Um guitarrim?) pondo de imediato a assistência a bater palmas de acompanhamento, empolgada pela alegria contagiante e pelo reconhecimento do virtuosismo do homem das cordas. Dedilhando primeiro a braguesa, depois o cavaquinho, Júlio Pereira percorreu o caminho que vai da foz, das “Janelas Verdes” até à nascença, do álbum da “guitarra pequenina”. Acompanhado por uma banda de cinco músicos (destaque para Paulo Curado, nos “saxes” e flauta), Júlio Pereira recriou, à sua maneira (quer se goste ou não dela) o folclore português, evidenciando uma frescura e uma alegria de tocar que terão surpreendido muita gente. Referência muito especial para a voz maravilhosa da Minela e para a não menos maravilhosa forma como interpretou “Senhora dos Remédios”, num dos momentos mais altos de todo o festival.

 

Bem-vindos ao cabaré

 

Paulo Moura, saxofonista e clarinetista brasileiro, responsável pela fusão do Jazz com o “chorinho” e a “gafieira” dos bailes cariocas, desiludiu. Música de cabaré, sem “punch” nem imaginação, deixou saudades de feitos passados, acentuadas ainda mais pelas desinspiradas prestações vocais da “crooner” sambista Marilu Moreno. Quando Paulo Moura tocou “Lisboa antiga”, apeteceu deitar uma moeda na caixa ds esmolas.

Aos Moore by Four competia fechar em apoteose o “Folk Tejo”. Pura ilusão. O adiantado da hora e a vulgaridade dos músicos (versão de terceira dos” Manhattan Transfer) provocou a debandada geral do público, que, no final, ficou reduzido a uma pequena legião de fanáticos, disposta a aproveitar até à última gota as contorções e a postura “Hollywoodesca” dos músicos (a saxofonista, com pinta de “streaper”, soprava um saxofone tenor mais comprido que a saia, enquanto ia atirando a perninha para trás, num arremedo de fúria “swingante”…) mas já desesperada com o “top” da vocalista loura, que teimava em não cair.

À saída, alguém do público, vindo especialmente de Bragança para assistir ao “Folk Tejo”, bradava, entusiasmado, para quem o quisesse ouvir: “Fabuloso”. Pena Jorge Sampaio não precisar dos votos bragantinos.

 

Som quase estragou a festa [Folk Tejo]

PÚBLICO SEGUNDA-FEIRA, 3 JUNHO 1991 >> Cultura

 

Folk Tejo

 

Som quase estragou a festa

 

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Lisboa iniciou as suas festas juninas ao som da música folk. O cartaz de sábado era aliciante: duas vozes femininas de chegar ao céu, três escoceses dos copos e um gaiteiro de cortar o fôlego. Na luta contra o som, péssimo, só June Tabor venceu e comoveu. Mas o público queria era dar ao pé.

 

Música folk, tradicional, étnica, nos últimos tempos, tem sido um fartote. Lisboa aderiu à onda, com o Tejo ao lado e as eleições à porta. Coliseu dos Recreios. Cerca de meia casa, composta pelos indefectíveis do género, mais os curiosos, mais aqueles que vão a todas. Os primeiros saíram com um sabor a frustração. Os curiosos aguçaram ainda mais a curiosidade. Os outros não devem ter percebido nada, até porque o som não deixava.

Um grupo nacional de zés-pereiras, gaiteiros e tocadores de bombo circulou pelas artérias junto ao recinto, antes de subir ao palco para uma atuação, no mínimo, bombástica.

Maddy Prior, voz lendária da cena folk britânica, estandarte dos Steeleye Span e atualmente mais apaixonada do que nunca pela música antiga (no seio dos Carnival Band) e pelo marido, desiludiu, sem que a culpa tivesse sido inteiramente sua. Entre dois amores, optou por trazer o marido – Rick Kemp – e cantar umas melodias que seriam certamente bonitas, se acaso fosse possível perceber alguma nota. Não há, de facto, adjetivos que cheguem para desancar um som exageradamente amplificado, empastelado, impróprio para um comício quanto mais para um concerto de música. Salavaram-se os momentos em que Maddy Prior, sozinha, sentada à beira do palco, ou acompanhada unicamente pelo piano e pelo contrabaixo, deixou perceber a voz maravilhosa que realmente tem.

 

A emoção da cerveja

 

Das terras altas da Escócia, os McCalmans, trio já veterano nestas andanças, chegaram de guitarras e latas de cerveja em punho para pôr toda a gente aos pulos, com as suas harmonias vocais emocionadas e toda a fluência que só o álcool é capaz de proporcionar. O homem da mesa de mistura, experimentador nato, desta vez apostou tudo nos agudos metálicos, testando a capacidade de resistência dos tímpanos às frequências mais elevadas. Os escoceses acabaram por perceber – no “encore” da praxe dispensaram a amplificação, cantando abraçados, eufóricos e voltando a dar um empurrãozinho publicitário à tal marca de cerveja.

Depois, chegou o momento mais alto da noite, graças à voz e postura sublimes de outra grande senhora da Folk, June Tabor. Acompanhada apenas por dois violinistas, tornou claro que a verdade do canto tradicional exige silêncio e contensão. Foi até ao fundo, contando e cantando histórias trágicas de amor e ódio, de alegria e morte. Houve quem não compreendesse e assobiasse, exigindo o que nessa altura soaria despropositado – a dança e o delírio telúrico. June Tabor só no fim soltou as pontas à rede de sortilégios – saltando e batendo palmas, como uma menina que por dentro continua a ser – não sem que antes a sala escurecesse e calasse vergada a uma arrebatadora interpretação de uma canção de Brecht. O próprio som, como por artes mágicas, melhorou.

 

Música “a metro”

 

Davy Spillane, gaiteiro de reconhecidos méritos, revelou-se mestre de duas coisas: das suas “uilleann pipes” (que maneja com a agilidade de quem não deve fazer outra coisa) e na arte de música “a metro”. O irlandês mistura tudo – os blues, o rock ‘n’ roll, a country e a música de baile. A solo, mostrou-se realmente “virtuose”, interpretando, entre outros, um tema dedicado a esse outro grande gaiteiro que é Paddy Moloney, dos Chieftains. O pior foi o resto, as “desbundas” coletivas, o tom piroso da guitarra, embevecida nos acordes de “samba pa ti” e se calhar na lembrança de convívios que decerto deve ter havido também lá pela Irlanda. Davy não quis saber de purismos e lançou-se a mil à hora, tocando as suas “pipes” como um danado. Em frente ao palco, os mais entusiastas entregaram-se, extasiados, aos prazeres da dança.

Quem não deve ter sentido prazer nenhum foi aquele jovem espancado e atirado pela escada abaixo, já perto do fim, por três “agentes da autoridade, apenas por ter pedido que o deixassem entrar. Final triste para um acontecimento que se propõe dar um ar mais saudável e civilizado à capital.

 

Toyah Willcox - Ophelia's Shadow

 

Pop Rock

 

8 MAIO 1991


TOYAH WILLCOX
Ophelia’s Shadow
LP e CD, E.G., distri. Edisom

 

Atriz, cantora e casada com Robert Fripp, Toyah passou em pouco tempo de “punk” mal amanhada a dama do “music-hall”, ou quase… O atual marido pegou-lhe na carreira e deu-lhe a volta. O pior é que, por mais voltas que lhe dê, a carreira da senhora teima em avançar devagarinho, sobretudo em termos de vendas de álbuns, já que os singles lá vão conseguindo chegar aos tops. Vai-se mudando o estilo até encontrar a receita mágica. No álbum estreia (“The Blue Meaning”) era a poesia, longas histórias de encantar adultos (o título sugere os “blues minnies” do desenho animado “Yellow Submarine”), pontuadas pelas “frippertronics” do marido. “Prostitute” procurava ser experimental e ao mesmo tempo fazer dançar. Não era mau disco. “Ophelia’s Shadow”, de ressonâncias shakespeareanas, a recordar tempos passados, opta pelo meio termo, com nítida influência da vertente discretamente equilibrada e muito “crafty guitarists” de Fripp (que co-assina dois temas) e procurando a todo o custo uma aura de mistério e sensualidade. Refira-se, a propósito, que a voz de Toyah cada vez mais se vai tornando, em todos os aspectos, uma cópia muito perfeita da de Kate Bush. Sobra-lhe em mimetismo o que lhe escasseia em originalidade. Como será a fase seguinte? **