Folk
O CAMPO DE BATALHA
Da Escócia, país de lendas e nevoeiros, a
música mágica dos Battlefield Band. O amor pelas lonjuras ancestrais recriado
no presente e projetado no futuro. A gaita de foles e o sintetizador. A
tradição, o cruzamento feérico da cidade industrial com o verde e a água da
floresta.
Gravaram, até à data,
doze álbuns, alguns deles peças indispensáveis numa coleção folk digna desse
nome. Combinam a interpretação das canções e danças tradicionais com
composições escritas pelos membros do grupo. Respeitando o espírito original,
iluminando a corrente que liga a terra ao céu.
Só os amantes deste especial tipo de
música saberão talvez apreciar, sentir astralmente, as vibrações que se
desprendem das sonoridades tradicionais. Irmanados na congregação do Grande
Templo, as portas do tempo revelando e escondendo o secreto centro. Fogo, ar,
água, terra. Quatro entradas e mais uma, oculta, para o país dos sortilégios. A
música fala-nos da eternidade. A tradição aponta-nos o coração ígneo, silêncio
pulsante donde nasce o movimento. Em cima, esculpindo as formas do que há-de
ser. Em baixo, nos pés que pulam e batem no barro, nas folhas e no húmus,
bailando ao ritmo das estações, dos astros e das humanas paixões.
Os novos bardos catalisam o polo
positivo do poder, raio forçando a transição entre duas épocas. Força
ascensional, percorrendo os quatro eixos do mundo, enquadrando o corpo e a
consciência no eixo vertical e superior. A cruz centrando a rosa. Flor de luz.
Em Casa
Os Battlefield Band não serão tão
esotéricos. Neste caso, as palavras servem como orientadoras da sensibilidade.
Não se ouve música folk da mesma maneira que a pop ou o rock. Aprendizagem é
iniciação. A banda escocesa, uma boa escola.
A fase inicial da sua discografia,
que vai de 1976 a 1979, constituída pelos três primeiros álbuns, intitulados
simplesmente “Battlefield Band” 1, 2 e 3, e por “At the Front” e “Stand Easy”,
não se encontra, por enquanto, disponível entre nós. A coletânea “The Story So
Far” reúne material deste período, bem como de EP e cassetes da banda. É a fase
da procura de uma via pessoal, a exploração de combinações instrumentais
inusitadas que se tornariam num dos seus polos mais interessantes e inovadores.
Saliência para algumas vocalizações femininas, a partir daí completamente
ausentes dos processos musicais dos Battlefield Band.
“Home Is Where The
Van Is” assinala a grande explosão. Ged Foley (que viria a formar os House Band),
bandolim, guitarra, gaita de foles de Northumbrian e voz; Brian McNeill,
violino, viola de arco, “bouzouki”, “cittern”, concertina, sanfona e voz; Alan
Reid, teclados (órgão, piano, sintetizador) e voz; e Duncan MacGillivray, gaita
de foles das terras altas, “tin whistle”, guitarra, harmónica e voz, dão corpo
e alma a uma música verdadeiramente excitante, alternando temas do cancioneiro
com composições originais de McNeill e Reid. É o primeiro álbum gravado para a
editora Temple, de Robin Morton, que dá uma ajuda num dos temas, tocando
“bodhran” (correspondente britânica do adufe).
Computando a tradição
“There’s a Buzz”, outro disco fora
de série, está ao mesmo nível que o anterior. Robin Morton volta a participar,
tocando trompete em “Sir Sidney Smith’s March”. Dougie Pincock, dos Kentigern,
ainda na condição de artista convidado, toca flauta em “Shining Clear”, tema
baseado num poema de Robert Louis Stevenson. Em “The Battle of Waterloo” fazem
jus ao nome que para si escolheram, com Duncan MacGillivray e Dougie Pincock
competindo nas gaitas-de-foles.
O computador de ritmos faz a sua
aparição em força no álbum seguinte, “Anthem For The Common Man”, talvez o
disco mais fraco, a tecnologia ainda não assimilada de molde a não perturbar a
coerência estética do projeto. Ainda assim o disco vale por peças como “I Am
the Common Man” ou “The Yew Tree”, em que os Battlefield fazem questão de nos
presentear com extraordinárias prestações vocais. MacGillivray é entretanto
substituído por Dougie Pincock, na gaita-de-foles, e Ged Foley dá lugar a
Alistair Russell. A mesma via é prosseguida em “On The Rise”, com a vantagem
dos ritmos computorizados encontrarem o seu justo lugar na hierarquia
instrumental, funcionando de maneira mais discreta e contribuindo assim para um
maior equilíbrio entre as componentes acústica e eletrónica. Mesmo assim, os
puristas dão saltos ao escutar “Bad Moon Rising”, dos Creedence Clearwater
Revival, transformado em jiga.
Hotel Celta Universal
“Celtic Hotel” constitui novo marco
de exceção. O leque instrumental alarga-se ainda mais, com a introdução do
saxofone e do “mandocello”. Os Battlefield Band assumem-se definitivamente como
uma das forças criativas a ter em conta no desenvolvimento da folk escocesa,
numa perspetiva semelhante à de Alan Stivell em relação à música e tradição
bretãs. O som torna-se mais universal, e abre-se, em “Muineira Sul Sacrato
Della Chiesa”, a essa outra finte inesgotável da cultura e imaginário celtas
que é a Galiza e à Bretanha, em “E Kostez An Henbont”, um “dro” (cadência
rítmica utilizada com frequência nesta região). Brian McNeill confirma, em “The
Rovin’ Dies Hard”, o estatuto de compositor à altura para contribuir com novas
canções para o património cultural popular escocês, numa balada que relata o
confronto entre a nova geração de músicos e o passado e legado históricos que
lhes estão na origem.
“Homeground”, o mais recente
trabalho da banda, é o único gravado ao vivo, até à data. Ao lado de
irrepreensíveis interpretações de temas de álbuns anteriores, surge um “medley”
impensável que junta, no mesmo saco e a um ritmo diabólico, jigas, “reels”,
rock ‘n’ roll, os Beatles de “With a Little Help from my Friends” e mesmo
algumas brincadeiras rap. A diversão total, o puro gozo de tocar ao vivo, a
alegria de uma música que não se esgota em discursos de academismos enfadonhos.
Assinalem-se ainda, a par da
discografia do grupo, os discos a solo de Brian McNeill, “Monksgate” e
“Unstrung Hero”, bem como a colaboração, em dois volumes, dos Battlefield Band
com a harpista Alison Kinnaird, no projeto “Music in Trust”, com a música composta
para o programa televisivo do mesmo nome. Série de documentários sobre zonas e
edifícios de interesse histórico-cultural, em que o vigor e a complexidade
formal do quarteto se casam na perfeição com o tom mais sereno e introspetivo
de Alison Kinnaird, que cintila nos fulgores e vibrações das cordas da
“clarsach” (designação local para a harpa escocesa).
A maior parte dos discos gravados
para a Temple são distribuídos no nosso país pela Mundo da Canção, sediada no
Porto, que tem desenvolvido um meritório trabalho de divulgação das propostas
mais atuais do movimento folk britânico.
Pedra a pedra se vai construindo o
templo. Portugal está prestes a ocupar nele o lugar que, por divino direito,
lhe pertence. Saibamos ser a alma, visão e respiração de um mundo a arder.
QUARTA-FEIRA,
15 AGOSTO 1990 VIDEODISCOS
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