Na capa
OUTRA VEZ O MURO, PODRE DE
MADURO
O muro nunca mais acaba de cair. Agora é a vez
da feire de Berlim, com Roger Waters vendendo os seus bonecos em saldo de
fim-de-estação. Vai um tijolo e um porquinho?
Woodstock, Wight,
Reading, Knebworth, Glastonbury, Veneza, Cannes, Figueira da Foz, Fantasporto,
Bienais de Berlim, Nova-Iorque, Odivelas, Agro-Pecuário de Santarém, RTP da
Canção – diferentes acontecimentos sustentando a designação comum de
“festival”. De música, cinema, pintura, vacas e couves ou, simplesmente, lixo.
Uns são culturais, outras nem tanto. Não querendo entrar aqui em polémicas se
“vacas e couves” são ou não cultura, que tal a “cultura da batata”? A questão
não é pacífica. Muito menos as suas implicações, artísticas ou alimentares. As
opiniões dividem-se, a confusão impera. A noção de “lixo” é ainda mais ambígua.
Bem coberto com camadas de verniz, judiciosamente aplicadas em delicadas
operações cosméticas, e bem condimentado com sábia dose de “popstars” [?],
passa com [...] por ser cultura artística.
Produtos de Festival
O “festival” apresenta algumas
características que o distinguem de qualquer outro tipo de atividade. Trata-se
sempre de uma “mostra” de qualquer coisa, uma coleção de “produtos”. (Um filme,
uma canção, um quadro, um pepino, para além do valor simbólico como “obras de
arte” – e, se dúvidas há quanto ao pepino, recorde-se o quadro de Arcimboldo –,
são também produtos, que se mostram, compram e vendem, objetos de comércio.)
Neles, apresenta-se “trabalho feito”, em certames de maior ou menor projeção e
importância, consoante a qualidade das mercadorias, a aplicação do verniz, ou
as estratégias de “marketing”.
Vem esta prosa a propósito da
recente edição do duplo álbum com a gravação ao vivo do espetáculo “The Wall”,
que os Pink Floyd deram, no outro dia, em Berlim. Foi um festival ou não foi?
E, em caso afirmativo, que importância teve? Admitindo que os Floyd são
cultura, o que é que se mostrou e se viu nessa noite de muitas luzes, tijolos e
porcos insufláveis? Consinta-se na
importância sociológica e mediática do acontecimento, na data e local
específicos em que se realizou: milhares de pessoas reunidas em frente do muro
(ou do recetor de televisão), celebrando não se sabe ainda bem o quê, para além
do ato simbólico da “queda”.
Prendinhas
Mas, se o espetáculo de Berlim se
justificava, o disco, editado “a posteriori”, parece funcionar apenas como uma
espécie de “souvenir” (para aqueles que estiveram presentes na futura capital
da Alemanha unificada) ou substituto (para os outros) do evento real, do mesmo
modo que as “T-shirts” ou as embalagens com um tijolo, pretensamente arrancados
do “muro”, vendidas aos turistas. Vestuário, discos e tijolos, transformados em
ícones de um acontecimento que, para além do significado intrínseco, se
deslocou para o domínio, sempre passível de rentabilização, das imagens e da
pluralidade e dispersão dos sentidos.
Pode, por exemplo, à laia de
passatempo, comparar-se faixa a faixa, o original de Roger Waters e os Pink
Floyd, de 1979, com as novas interpretações dos mesmos temas, levadas a cabo
pelos numerosos convidados chamados a participar na encenação pública da
paranóia do autor. E, nesta comparação, não restam dúvidas de que Bryan Adams,
The Band, Tim Curry, Thomas Dolby, Marianne Faithfull, Albert Finney, Cyndi
Lauper, Ute Lemper, Joni Mitchell, Van Morrison, Sinead O’Connor, Scorpions, a
orquestra, as bandas e os coros envolvidos (já não falando do próprio Waters,
com menos voz e quase nenhuma energia, e restantes Floyd), por muito que se
empenhassem, não se revelaram à altura de fazer esquecer a unidade e força do
primeiro disco.
Boas Intenções
Claro que se pode ver a coisa de
outra maneira: atendendo à sobreposição das temáticas abrangidas pelo conceito
“queda do muro”, a obra de Roger Waters acabou por ganhar, onze anos depois,
uma carga significante e uma premência que, na altura, refletia “apenas” as
vivências pessoais do compositor. Assim, “The Wall – Live in Berlin” seria uma
espécie de confirmação, reatualização do individual, projetado num imaginário
coletivo, contemporâneo e politizado.
Sabe-se, porém, que as ideias e
intenções não valem (e sobretudo não vendem...) por si sós. A pureza e
sinceridade que pudessem existir na recuperação de uma obra que
sintomaticamente foi a derradeira dos Pink Floyd, como nome relevante da pop
atual, perderam-se no espetáculo de circo e no aparato cénico de que se
revestiu e em que se perdeu o espetáculo de Berlim. Mas foram os bonecos, os
nomes dos convidados, as dimensões do muro a fingir, os helicópteros e o
fogo-de-artifício que levaram todos aqueles milhares até às portas de
Bradenburgo. Juntava-se o útil ao agradável: uma boa causa (recolha de fundos
para o “Memorial Fund for Disaster Relief”) e a relevância cultural do
acontecimento aliavam-se a uma gigantesca operação promocional de que agora se
começam a recolher os dividendos.
O Muro em Série
Não nos admiremos se a seguir
aparecer novo disco, “The Wall – The Final Rendition” ou “The Complete Wall”,
por exemplo, incluindo as prestações dos grupos que foram entretendo a multidão
ao longo da tarde de 21 de Julho passado. Ou então outro, contendo toda a
informação técnica relativa às dimensões do palco, feitura dos tijolos e
potência das luzes. E porque não gravar Leonard Cheshire em dueto com Waters,
sobre um fundo de ruídos de guerra? Ou a versão instrumental de “The Wall”, ou
“The Wall in rap”, talvez “Acid House Wall”… Tanto ainda por
fazer, senhores editores!...
“The Wall – Live in Berlin”
resume-se deste modo a uma feira de bonecos de borracha ou de carne e osso,
personificados nas figuras disformes encarnadas por Ute Lemper ou Thomas Dolby,
em que a música se reduz a uma réplica quase fiel do disco de estúdio,
aumentada pelo ruído da multidão. Como se o tom épico pretendido residisse na
acumulação de adereços e no aumento desmesurado das escalas. Seja como for, o
“objeto” chegou, para se acomodar ao lado do restante entulho que enche as
prateleiras das lojas. Por exemplo, entre uma Torre Eiffel cinzeiro e um galo
de Barcelos.
VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA,
12 SETEMBRO 1990
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