05/05/2009

O despertar da alquimista [Anamar]

Sons

26 de Setembro 1997

O despertar da alquimista

Anamar, mais que uma cantora, é uma viajante da alma. As imagens do seu filme interior mudaram nos últimos dez anos. Aprendeu a serenidade e a luz que se esconde nos gestos e nas palavras. “M”, o seu novo álbum, é pura vibração. “M” de “mais”, “M” de “morte”, “M” de “mudança”, “M” de “mundo”, “M” de “mar”.

A linguagem é a da alquimia. Casamento de elementos, dissociação e harmonização interior são termos empregues por Anamar para falar de “M”, o seu novo disco, gravado numa igreja. Um banho de luz.
PÚBLICO – “M” é um título estranho, não acha? “M”, “Matou”, de Fritz Lang. “M”, o grupo que fez o tema chamado “Pop Music”...
Anamar – Não queríamos limitar o que se pudesse percepcionar do disco com uma palavra. A ideia de ter só uma letra é de as pessoas associarem o que quiserem a essa letra. Deixar uma porta aberta.
P. – Depois há uma canção chamada “NSN”...
R. – Aí é por causa do “N”, que se diz com os lábios fechados, mas é audível cá fora. Uma relação exterior que nos interessa. Além disso, são as iniciais de “Nossa Senhora das Neves”, a quem foi erigida uma capela do séc. XII onde foi gravado o CD, no alto da serra de Montejunto.
P. – Estás sempre a falar em “nós”... Nós quem?
R. – Este trabalho não foi feito por mim exclusivamente, mas por um núcleo criativo de quatro pessoas: eu e o André Louro de Almeida, ao nível musical e do conceito de arranjos, e o Tiago Torres da Silva e a Ana Calhau, também criadoras do conceito de origem.
P. – Que conceito?
R. – Cantar a luz através do fado, sendo que, de uma maneira muito comum, o fado está associado a outro tipo de emoções: ciúme, posse, vingança, escuridão, saudade, desilusão, revolta... Mas esse conceito não me entusiasmou especialmente, não estava muito virada para pegar no código do fado, já muito usado e trabalhado anteriormente. Não é fado que costumo ouvir em casa, mas coisas com outra espacialidade, indicadoras de outros estados de espírito – Dead Can Dance, Rachmaninov, Brian Eno, David Sylvian... No entanto, o pacote de letras que o Tiago me apresentou era extraordinário.
P. – Falou em espacialidade. E religiosidade?
R. – Absolutamente. É uma característica, para mim, básica. No entanto, não é assim tão óbvio que a arte entre em linha de conta com ela.
P. – Essa religiosidade não está a transformar-se, nos dias que correm, num mero amontoado de ícones e imagens, esvaziadas do seu verdadeiro significado?
R. – Todo o fenómeno de profetas com pés de barro, ou aproveitamentos comercialóides do fenómeno “new age”, mais as seitas, tudo isso e a “astrologite”. Se religião significar religar, e é daí que vem a palavra, aí sim, sou uma pessoa profundamente religiosa. Religar à vida, sendo que esta, em si, é a transcendência.
P. – É engraçado estar a falar sobre estas questões. As pessoas estavam habituadas a ter de si outra imagem...
R. – Eu sei. Deixei de cantar e de aparecer há muitos anos, nove anos. É curioso verificar como uma imagem pode ficar cristalizada no tempo. Há dez anos, vestia de preto, pintava os lábios de vermelho e usava os cabelos muito compridos. Uma imagem que ficou ligada a uma noção de estilo e à sedução, ao risco e à ousadia. Hoje, nem a minha cara é igual. Nem o meu ser interior.
P. – O que aprendeu nestes últimos dez anos?
R. – Fui crescendo. A opção, neste período de tempo, de não cantar e de não manter uma actividade pública deriva da minha necessidade de ouvir primeiro o que estava cá dentro e ver se tinha alguma coisa para dizer. Uma das coisas que aprendi nestes dez anos foi o valor do silêncio. O valor do quietar. Do respirar, do fruir de tudo o que a vida tem para nos dar, em vez de querermos que as coisas correspondam aos nossos desejos.
P. – Essa filosofia de vida, transferiu-a para a feitura do seu disco?
R. – Este disco não é fruto de um trabalho pessoal meu, mas de um trabalho de equipa. O que pediu uma abertura e uma aprendizagem do que é “criar com” outras pessoas, algo que eu não conhecia assim tão bem. Nos outros discos trabalhei com muita gente, mas o conceito e o ponto de partida eram definidos por mim. Neste caso, não, fui obrigada a uma disciplina.
P. – Quer dizer que o seu ego se suavizou?
R. – Tendo um ego, como toda a gente, há partes desconhecidas de mim própria em relação às quais faço questão de estar especialmente atenta, de maneira a estar em sintonia com elas. Quanto mais fundo se vai dentro de nós, menos se faz questão de ter ou não ego, de ser isto ou aquilo.
P. – Como é que se processaram as gravações?
R. – O disco foi gravado quase como um disco ao vivo, em tempo real, o que quer dizer que houve muitas repetições, que aproveitei para fazer apuramentos, ao nível de questões técnicas. Foi exigida uma concentração muito grande, havendo necessidade de se estar tranquilo para que as coisas fluíssem. Ao todo foram três semanas ao longo das quais gravámos 21 canções e... uma brincadeira.
P. – Que brincadeira?
R. – Numa ocasião o Joaquim d’Azurém estava a tocar guitarra portuguesa num teste de som e eu comecei a cantar por cima. Ou a leitura de um texto sobre uma banda-sonora composta pelo André Louro de Almeida.
P. – Falou, há pouco, do fado, que também corre o risco de se desvirtuar. De que forma é que sente este tipo de música?
R. – O fado é um código e uma porta de acesso directo à alma, como os “blues” ou o “gospel”. Do ponto de vista cultural, cristalizou no tempo. Lembro-me de quando era miúda e cantar “A canção do mar”, da Amália, ser um escândalo. Mas a própria Amália gostou muito do tema.
P. – A maneira de se exprimir sugere elegância, mesmo quando se trata de espiritualidade...
R. – Entendo que uma das qualidades da espiritualidade é precisamente a elegância. Não há espírito sem beleza. Há uma tentativa da minha parte de tratar a vida com elegância. Não há harmonia sem ela, todos os pontos de vista radicais ou separatistas, que só tendem para um lado da realidade, não me satisfazem. A vida não é separada, tal como a visão das coisas não deverá ser separada. A elegância é uma característica da verdadeira complementaridade de elementos.
P. – Quais são os seus elementos?
R. – Água e fogo. Embora talvez o mais importante seja o éter, o quinto elemento... A água identifica-se com os sentimentos e as emoções, com o fundo da alma e o poder de aplicar o coração na vida. O fogo equivale a uma verticalidade, a um amor pela verdade, a uma expansão, a uma inspiração, à criatividade em si, aquilo que faz com que um átomo e outro se juntem dando origem a uma coisa. Por isso tento articular a expressão, própria do fogo, com a interiorização, própria da água. Um casamento que é dos trabalhos aos quais me tenho dedicado. É como uma cafeteira com água a ferver. É bom que a água fervente esteja em total correspondência com a intensidade da chama. Se ferve demais, apaga a chama. Se a chama estiver demasiado alta, evapora a água.
P. – Está a falar como uma alquimista...
R. – A alquimia é um código de profundidade... mas na verdade é a própria simplicidade da vida. A harmonia é a forma mais simples, mas também a que requer mais trabalho.
P. – Assusta-a o envelhecimento, a decadência da beleza física?
R. – Assusta-me o envelhecimento, por estagnação. O envelhecimento interior. Assusta-me a morte interior, não em mim, e digo não em mim, porque não há receio que em mim, por dentro, morra aquilo que me anima, senão não estava viva. Sou a típica sobrevivente. Acredito que existe uma relação entre o envelhecimento da matéria e a sabedoria interior. Através do tempo, o homem tem acesso a ser, cada vez mais, ele próprio, a ser sábio. O envelhecimento físico acaba por ser o preço a pagar pela experiência vivida. Mas também acredito que o corpo físico é condicionado pela energia interior, nomeadamente, a psíquica. Daí não saber se as pessoas forem cada vez mais psiquicamente saudáveis se não serão também cada vez mais fisicamente vitais.
Já agora, também me assusta a paranóia de que todo a gente queira ser como a Claudia Schiffer até aos 80 anos!... É a prioridade dada à plástica, ditada pela moda, uma ditadura de formatação de mentalidades, responsável pela morte interior de muitas pessoas.
P. – Vivemos uma época de morte e de apodrecimento. O Apocalipse?
R. – Talvez uma época de altos preços a pagar por tantas cristalizações. Há uma coisa que me faz muita impressão. Habitualmente, a informação que chega às pessoas é sempre sobre o lado negro dos sinais, nos telejornais e nos jornais. Parece que há uma publicação num país, não sei bem qual, que se dedica só a divulgar aquilo que de bom acontece no mundo e que tem tido um público tremendo. Estamos numa fase crítica e, por isso, privilegiada. Considerando que o preço é alto, porque a tal formatação da cabeça e do “modus vivendi” das pessoas chegou a um limite de dissenção com o seu próprio interior, por outro lado existe a oportunidade de ver de caras, a um nível extremo, o que não dá, que não funciona, que não traz felicidade. Nesse sentido, quanto mais claro se vê o inimigo, mais fácil é o entendimento do que poderá ser mais criativo.
P. – Quem ou o que é o inimigo?
R. – O medo.
P. – Como é que se pode vencê-lo?
R. – Através da emergência da tomada de consciência de quem se é e do que se está a fazer. É a única saída. O homem meteu-se numa camisa de forças e, de alguma maneira, está a ser encostado à parede na pressão máxima. Ou descobre como é que sai lá de dentro ou então morre. Acabou o problema, estoira tudo. Acredito, ou melhor, sei internamente que o futuro das coisas é sempre e tendencialmente luz.

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