12/05/2009

"Um tipo a bater numas cordas, a fazer um som e a cantar" [Carlos Martins & Vasco Martins]

Sons

10 de Outubro 1997

Carlos e Vasco Martins lançam “Outras Índias”

“Um tipo a bater numas cordas, a fazer um som e a cantar”

Carlos e Vasco Martins partilham uma filosofia comum, com raízes no zen. Recusam as etiquetas. Cabo Verde é o mundo. E o jazz um ponto – ou uma ponte – de partida para o caminho do Oriente que ambos perseguem. Em “Outras Índias”, tudo se prende a algo ancestral: “Um tipo a bater numas cordas, a fazer um som e a cantar.”

Em “Outras Índias” Carlos Martins e Vasco Martins fizeram, com sucesso, a fusão das raízes musicais de Cabo Verde com um discurso contemplativo que não hesitou em voltar as costas ao jazz. Para Carlos Martins, é a concretização do seu ideal de uma lusofonia verdadeiramente universal. Para Vasco Martins, uma abertura no seu refúgio “new age” com sede no Atlântico. Uma descoberta a dois.

PÚBLICO – Quando é que se encontraram e como surgiu a ideia de fazer este disco?
CARLOS MARTINS
– Conhecemo-nos há uns anos através de um amigo comum, o João Freire, uma pessoa que sempre se interessou por Cabo Verde. Numa ocasião em que ele e o Vasco estiveram em Portugal, andaram à minha procura, só que o encontro não se proporcionou. Nessa altura eu tocava com a Constança Capdeville e com a Olga Pratts, que também me disse que o Vasco era de Cabo Verde e compunha. Fiquei com curiosidade em saber quem era, ainda por cima alguém com o mesmo apelido que eu... Até que nos encontrámos finalmente em Roterdão, numa conferência sobre a diáspora cabo-verdiana. Eu ia falar sobre o que os emigrantes podem fazer fora do seu país, em termos culturais. O Vasco ia falar da música de Cabo Verde. Desse primeiro encontro resultou uma ida a Amesterdão, durante um dia inteiro. Esse dia inteiro fez este disco. Desde a visita ao museu Van Gogh até às conversas que tivemos. Chegámos ao hotel e tocámos um bocado. Vimos que as coisas funcionavam.
VASCO MARTINS – Eu tinha levado apenas uma guitarra para fazer uma demonstração da música de Cabo Verde.
P. – Já conhecia a trilogia atlântica, “Southbound Music”, do Vasco Martins?
C.M.
– Já tinha ouvido algumas coisas e não era o tipo de música que eu queria fazer.
P. – E o Vasco, já tinha ouvido antes a música do Carlos?
V.M.
– Era um desconhecido, só sabia que era um músico de jazz com talento.
P. – Como é que os universos de ambos se ligaram? Esse passeio de que falaram deve ter sido bonito, mas depois como é que a coisa funcionou no estúdio?
C.M.
– A vantagem é que tudo foi articulado em Cabo Verde. Estive lá cinco dias antes de vir para cá. Esses cinco dias é que fizeram com que o som se consolidasse. O que se passa é que há uma alma dentro de cada um de nós que junta, que roça numa extremidade do mesmo universo. Um universo de gostos comuns, apetências comuns e sonoridades comuns. Depois sobressaiu ainda uma certa visão zen da música, uma certa orientalidade.
P. – Os discos do Vasco não chegam ao Continente...
V.M.
– Gravo pela Celluloїd francesa, mas os discos são mal distribuídos em Portugal. Saem em Espanha, nos Estados Unidos, na Alemanha. Continuo a fazer música electrónica, mas também sinfónica e outras coisas.
P. – A música da sua trilogia é bastante universalista. De que forma trabalhou nela a influência da música de Cabo Verde?
V.M.
– Há duas formas de ver a questão. Uma é a intuição do ambiente onde o artista vive. A outra é o aproveitamento das raízes, das tradições. Eu utilizo ambas. Na música da trilogia, está presente a temática de Cabo Verde, mas não a utilizo de uma maneira objectiva, dou pinceladas, sou mais um impressionista.
P. – “Outras Índias” é um disco de uma grande serenidade, bastante diferente do seu discurso mais jazzístico...
C.M.
– Uma das coisas que mais gostei de discutir a propósito deste disco é o facto de existir uma poesia do mundo, ligada a uma certa dramaticidade da vida, que é algo constante em mim. Escrevo desde miúdo. Quando andava na quarta classe, a minha alcunha era o “Camões”, porque escrevia versos. E continuo a escrever, só que agora mais música do que texto. Mas há a presença constante da poesia. Logo, não sou um único Carlos Martins, nem quero sê-lo. Não tenho a mínima culpa de que as pessoas precisem mais de um único Carlos Martins, para se equilibrarem na sua crítica.
P. – O Vasco Martins funcionou como um catalisador dessa sua visão poética?
C.M.
– Este disco só foi possível de fazer entre mim e o Vasco. Por isso é que arranjámos um nome, “Outras Índias”, que quer dizer exactamente “outras coisas”, não digo quais, nem interessa explicar.
P. – A filosofia inerente a este disco não anda longe da partilhada por Rão Kyao, ou anda?
C.M.
– A orientalidade não é um factor que me inspire musicalmente, linearmente, do tipo “eu penso oriental, a música é oriental”. A orientalidade está em mim como sensibilidade. O que se passa aqui é que ando à procura de outro caminho, do Caminho do Oriente. À procura do fado, da morna e do choro lento. Mas sem tudo o que o Vasco tem de Cabo Verde eu não tocaria desta maneira. É uma relação interactiva.
P. – Este projecto enquadra-se na estética geral da “new age”?
V.M.
– A “new age” é muito contestada na Europa porque é tida como um apêndice de filosofias orientalistas americanas. Hoje em dia, a “new age” já não é isso. Há bons músicos de “new age” a fazerem bons trabalhos, alguns deles músicos de jazz.
P. – Precisamente, há, sobretudo da parte dos puristas, quem não veja com bons olhos essa “fuga” de muitos músicos de jazz para essa outra área musical...
C.M.
– Não sou preto, não sou americano, não vivo em Nova Iorque, não tenho que representar coisa nenhuma do jazz, tenho é que adaptar à minha música e à minha tradição tudo aquilo que aprendi do jazz, que é uma das linguagens mais belas deste século e que se tornou universal pela capacidade de improvisar e sair do seu próprio mundo e de elaborar mundos novos a uma velocidade vertiginosa. Para mim este disco é um descanso. É uma atitude assumida. Há quanto tempo é que existem uma guitarra e uma voz a cantar? É ancestral. Antes da “new age”, antes do jazz, existiu sempre um tipo a bater numas cordas, a fazer um som e a cantar. É isso que se passa neste disco, estou-me perfeitamente nas tintas para o resto. Isto para mim representa um tipo a cantar sobre as harmonias de umas cordas. É antigo, é o que eu sinto e é o que praticava quando era miúdo, com uma flautazinha no jardim.

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