17/01/2017

Eletrónica do terceiro sexo [Terre Thaemlitz]

cultura DOMINGO, 24 OUTUBRO 1999

Terre Thaemlitz abre festival Reset!

Eletrónica do terceiro sexo

Veste-se e maquilha-se como uma mulher e assume-se como "queer". Esquisito, diferente, indefinido. Subvertor das políticas e estéticas da sexualidade, o compositor de música eletrónica Terre Thaemlitz difunde na sua obra valores onde a ambiguidade constitui um permanente desafio. Com ele tem hoje início o ciclo de novas músicas Reset!, no âmbito do Festival Atlântico.

Para este músico norte-americano, que gravou versões para piano da pop sintética dos Tubeway Army e dos Kraftwerk, a ambiguidade é a arma com que desafia os géneros musicais e sexuais propagandeados pela cultura dominante. Assumindo-se como "queer" – o que, segundo diz, não é bem a mesma coisa que "gay" –, Terre Thaemlitz explicou ao PÚBLICO as suas teorias. Que apresentará esta noite, pelas 22h30, ao público português, no edifício de "A Capital", ao Bairro Alto, em Lisboa, no concerto de abertura do festival Reset!. Um programa que também inclui os alemães Monolake e os austríacos Radian.
         PÚBLICO – Existe na sua obra a intenção explícita de transpor o discurso da homossexualidade para o discurso musical? Em que medida a eletrônica é o “media” mais adequado para o fazer?
            TERRE THAEMLITZ – Considero-me homossexual, "queer", pansexual. Acho importante definir a minha sexualidade de uma forma mais complexa do que pela simples divisão entre "gay" e "normal". Evito igualmente o termo "bissexual", na medida em que também se limita à dualidade hetero e homossexualidade. Evidentemente, o facto de abordar na minha música assuntos "gay" é intencional. A música é um meio de comunicação, daí tentar dar-lhe um conteúdo explícito. Sem este conteúdo, ouvir música é como escutar um bêbedo numa festa. Uma perda de tempo que acaba por ser no fundo uma capitulação perante os valores defendidos pela indústria. Nas minhas edições procuro, precisamente, desafiar as regras do mercado. A música electrónica, enquanto categoria relativamente marginal (em particular nos EUA) é uma boa metáfora para a tentativa de dar voz a temáticas historicamente minoritárias como a homossexualidade e, em geral, as políticas acerca da identidade.
         P. – O caso Walter/Wendy Carlos [autor da banda sonora de “Laranja Mecânica”] será paradigmático da relação identidade sexual/música? A música de Walter Carlos é diferente da música de Wendy Carlos?
            R. – Podem fazer-se leituras interessantes sobre a mudança de sexo de Wendy através da tecnologia e traçar um paralelo com a transformação da música clássica através dos sintetizadores a que ele se dedicou na série “Switched on...” [Adaptações da obra de compositores clássicos para sintetizador como “Switched on Bach”]. Mas o problema, em qualquer dos casos, é o seu desejo de preservar a todo o custo um sentido de pureza, em termos ideológicos, das fontes musicais. Para ela uma música só é genuína na medida em que se enquadra num género específico, puro. Foi uma coisa bastante chata, o processo que ele moveu contra [o cantor pop] Momus por este ter usado a canção “Walter Carlos” num disco de homenagem, sem a sua autorização. Que idiota!

Replicantes e robôs

         P. – Subscreve as teorias da relação sexualidade/magia/poder do grupo experimental Coil, nas quais a homossexualidade funciona como uma alquimia invertida?
            R. – Não estou familiarizado com as teorias dos Coil mas, pelo teor da pergunta, posso adivinhar o que sejam. Não estou interessado em envolver-me com a magia negra ou com demónios ancestrais enquanto técnicas de religação à sexualidade, como Kenneth Anger refere no seu livro “Lucifer Rising”. Vejo tudo isto mais como indulgência do que como uma forma produtiva de organização do indivíduo.
         P. – Que motivos o levaram a gravar o álbum “Die Roboter Rubato” com versões de piano de temas dos Kraftwerk, um caso típico de superação da dualidade sexual masculino/feminino? Os “homens-máquina” dos Kraftwerk são robôs assexuados...
            R. – Mas os “homens-máquina” dos Kraftwerk são completamente homens! Como é que se pode dizer que não têm sexo? O que procurei pôr em prática na série “Rubato”, nesse disco e em “Replicas Rubato”, foi um recuo até às influências-chave da minha vida e analisar até que ponto fui afetado quer pelas suas limitações quer pelas suas temáticas. Como o erro de lógica contido na sua pergunta. Grande parte da música eletrônica joga com esta contradição entre o desejo de androginia e as implicações masculinas da tecnologia. Gosto de explorar esta contradição como forma de provocar a discussão entre as questões relacionadas com os géneros.
         P. – O caso de “Replicas Rubato”, também versões de piano mas de temas dos Tubeway Army, é diferente. Aparece retratado como um clone feminino de Gary Numan na capa que, por sua vez, é uma reprodução da edição original de “Replicas”. Identifica-se com a personagem/personalidade (persona = máscara) deste músico?
            R. – Não conheço Numan pessoalmente, mas passei grande parte da minha vida a identificar-me com as suas noções sobre a identidade como uma estratégia de mentira que pode ser alterada conforme as situações. Mas Numan conclui que todas as mentiras são, em última análise, trágicas, do que eu discordo!
         P. – Nestes dois discos transformou uma música cem por cento sintética em formas pianísticas. Contudo, a presença oculta do computador subverte esta aparente conversão de 180 graus em algo mais ambíguo, não é verdade?
            R. – Sim, é isso mesmo.
         P. – Até que ponto a homossexualidade, no sentido da música popular, é ainda sinónimo de transgressão/escândalo ou, pelo contrário, um derivativo festivo/folclórico do culto da aparência e de hedonismo cultivados pelas “estrelas rock”?
            R. – É verdade. De Prince a Marilyn Monroe, ou na imagética sexual “freak” usada por Aphex Twin, existem semelhanças com a cena “glam”. A diferença está em que hoje é tudo mediatizado e diluído na cultura dominante. O que, à primeira vista, pode parecer um ato de transgressão não passa, afinal, de um gesto oco e sem consequências. E inofensivo, daí a atração que todo este folclore exerce nas pessoas e o seu sucesso comercial.
         P. – Viu o filme “Velvet Goldmine”, de Todd Haynes? Qual a sua opinião? Faz sentido falar, a propósito dele (e da banda sonora), de “mistificação”, enquanto processo de sabotagem/desmontagem/inversão da memória, dos seus mitos e preconceitos?
            R. – Gostei do filme. Sobretudo achei interessante a ideia de ultra-identificação através dos objetos, como forma de consumo da sexualidade através da música. Um tema que trabalhei tanto em “Replicas Rubato” como em “Love for Sale”. Acho estúpido interpretar o filme à luz de uma exatidão histórica. As pessoas que ficaram desiludidas com a forma como foi recuperada a “verdade” dessa época esquecem-se de que a noção “drag” do “glam” se relaciona com a apropriação de signos culturais e com o baralhar do conceito de “verdade” acerca dos géneros masculino e feminino.

O poder homossexual

         P. – O que são as “Queer Media Series” da editora Mille Plateaux, para onde gravou o novo álbum “Love for Sale – Taking Stock in our Pride”? No livrete afirma-se que “estas séries não existem”...
            R. – Toda a embalagem de “Love for Sale” tem como objetivo desencadear no comprador um tipo de impulso relativo ao “poder homossexual”. Claro que depois de se levar o disco para casa, há o texto interior que pretende complicar e desconstruir todas essas noções propagandeadas pelo mercado acerca da identidade.
         P. – Um texto onde também se lê: “Procuro delinear o modelo, e uma tese sobre um som ‘queer’, submetendo os materiais sonoros a sucessivos processos de deslocação”. O que são esses “processos de deslocação”?
            R. – Trata-se, literalmente, do processamento sonoro através do computador, moldando os materiais de origem até os tornar inidentificáveis. Enquanto metáfora sobre a sexualidade, as teorias “queer” giram ainda em torna da desmistificação da hetero e da homossexualidade como “verdades naturais” e falam dos nossos modos de percepção da sexualidade, através dos processos sociais.
         P. – Há um comentário seu bastante interessante: “A atuação da comunidade ‘queer’ não representa um esforço para contrariar a cultura dominante, mas a tentativa de conseguir o mesmo direito à alienação da classe burguesa sob um regime capitalista”. Quer comentar?
            R. – Por exemplo, o combate a favor do casamento entre “gays” ou entre lésbicas, tendo como único objetivo garantir seguros de saúde ou regalias fiscais, não contribui em nada para lutar contra os privilégios da classe heterossexual dominante e opressora dos indivíduos homossexuais. Não passa de uma tentativa de integração a curto prazo no sistema de exploração e de lucrar com o sofrimento dos outros.
         P. – Abstraindo-nos dos aspetos políticos e sociológicos da sua música, “Love for Sale” é um álbum musicalmente estimulante. Quais são as suas referências/influências no campo da música eletrónica?
            R. – Toneladas... Sou sem dúvida influenciado pela ação direta dos Ultra-Red [grupo de intervenção político-musical composto por Dont Rhine e Marco Larsen], de Los Angeles. Aliás, na Alemanha, pensam que eu falo parte do grupo, o que não é verdade. Os Ultra-Red têm uma história longa em Los Angeles e temos agendas diferentes. Eles dedicam-se à ação direta, enquanto eu me limito a criticar as regras de funcionamento do mercado, o que é muito mais cómodo...

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