17/01/2017

Jorge Reyes nas asas do peyote

SÁBADO, 16 OUTUBRO 1999 cultura

Música pré-hispânica no Paradise Garage

Jorge Reyes nas asas do peyote

LUA CHEIA sobre um lago na montanha. Silêncio. Paragem do tempo. Sobre as águas ergue-se o som de um tambor. Uma flauta de porcelana desliza para o mar. Uma concha abre as mandíbulas e canta. Sobressalto: sobre a quietude da noite, assalta-nos o batimento cardíaco de um índio. Digitalizado e processado em computador.
            Imagens sugeridas pela música do mexicano Jorge Reyes que esta noite transformará o Paradise Garage, em Lisboa, no templo de uma misteriosa civilização pré-hispânica. O concerto, organizado pela Symbiose, conta ainda com a presença de dois bailarinos índios o que, decerto, acrescentará uma dimensão teatral a uma música umbilicalmente ligada ao imaginário do peyote (cato com propriedades alucinogénicas) e aos rituais religiosos dos povos que habitaram o México no período anterior à colonização espanhola.
            A este envolvimento onírico-naturalista (totalmente arredado das preocupações pseudo-humanistas na new age, diga-se desde já) confere Jorge Reyes uma dinâmica descontextualizadora do material étnico através do recurso aos computadores e sintetizadores digitais. O resultado é um território inexplorado no qual o referente mexicano acaba por funcionar a nível subliminar, equidistante das "músicas possíveis do quarto mundo" de Jon Hassell e da "sombient" apocalíptica de Steve Roach (parceiro de Reyes, com o guitarrista espanhol Suso Saiz, nos Suspended Memories).
            Jorge Reyes nasceu em Uruapan, no Michoacan, México, tendo iniciado estudos clássicos na década de 70. Viajou pela Turquia, Afeganistão, Paquistão e Sri Lanka, onde estudou percussão e música tradicional indiana. Em paralelo, desenhou o mapa interior das suas navegações psico-musicais, ensaiando formas de contacto entre os instrumentos tradicionais e objetos da natureza (conchas, troncos, ossos) com a eletrónica (incluindo a amplificação de sons produzidos pelo corpo humano) e a manipulação vídeo, em ambos os casos procedendo à adição de elementos étnicos e digitais.

Da contemplação ao terror

            "Ek-Tunkul", de 1985, assinala a estreia discográfica de Jorge Reyes, um álbum onde eram notórios resquícios do rock progressivo e da "kosmische musik" (música cósmica) de Klaus Schulze e dos Tangerine Dream. "A la Izquierda del Colibri", editado no ano seguinte, faz a transição de uma música solar colorida com as cores do arco-íris para um céu iluminado pela lua e pelas alucinações noturnas de fantasmas índios vagueando pelas regiões astrais. "Comala" (1987) e "Niérika" (1990) são álbuns de música eletrónica inovadora capazes de provocar em quem a ouve estados anímicos que vão da contemplação ao terror.
            Mas é a partir do álbum "Mexican Music Pre-Hispanic", de 1990 (primeira parte de uma trilogia que se completaria com "Music for the Forgotten Spirits", de 1994, e "Mystic Rites", do mesmo ano), que a música de Jorge Reyes atinge uma intensidade e um grau de envolvimento com as vozes e mitos do inconsciente que fazem dela uma ponte para o desconhecido. Reyes contactara na década de 80 com as tribos índias mexicanas o que o levou, a par da consciência da "decadência da música pop", a interrogar-se sobre as tradições e os objetivos que norteariam, de futuro, a sua música.
            Em "Cronica de Castas" (1991, álbum conceptual sobre a genealogia das castas índias primitivas, com Suso Saiz), "Bajo el Sol Jaguar", de 1992, e "El Costumbre", de 1993, Jorge Reyes levanta o véu a uma realidade alternativa nascida no fundo dos tempos, de criaturas sem nome e lances de magia, equivalente à literatura mágica do seu compatriota Carlos Castañeda. Um novo tipo de psicadelismo sobre o qual é o próprio a teorizar: "O som é energia e é preciso saber lidar com isto. Apercebemo-nos não só da realidade do mundo como de outros mundos misteriosos que apenas se podem ver e tocar através da música. É preciso desenvolver diferentes maneiras de trabalhar o som e é por essa razão que comecei a utilizar pedras, a tocar com os ritmos do corpo, para fazer aparecer esses sons arcaicos. Um retorno ao inconsciente coletivo, não só de uma cultura, a mexicana, com muitos milhares de anos, mas muito mais para trás."
            Alquimista da fusão do novo com o milenar, Jorge Reyes justifica ainda o recurso ao minimalismo: "A repetição é a única maneira de aceder ao sobrenatural, estamos a falar de tempo que é uma entidade linear. Só pela repetição se pode escapar a esta realidade, do dia-a-dia, tornando-a elástica, fazendo dela um espaço sagrado.
            "É este espaço sagrado – que o êxtase do corpo pode ajudar a alcançar mas que apenas o espírito consegue vislumbrar – que Jorge Reyes dará a ver e a ouvir hoje à noite numa discoteca de Lisboa. Boas viagens astrais.

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