08/02/2018

O despertar dos mágicos [4º Festival Intercéltico do Porto]


Pop Rock

31 MARÇO 1993

O DESPERTAR DOS MÁGICOS

Barzaz e Battlefield Band preenchem o cartaz musical do primeiro dia do festival. Vibrantes os primeiros, transportam consigo a força dos rochedos e das ondas do mar que esculpe as costas da Bretanha. Mais serenos os segundos, abrigados de momento na calma enseada de um lago escocês.
            Inseridos no movimento de renovação da tradição musical bretã encetada nos anos 70 por Alan Stivell, os Barzaz resultam da confluência de projetos anteriores dos seus membros, investidos da missão de levar a música da Bretanha aos círculos exteriores do mundo celta. Assim, na árvore genealógica do grupo descobrem-se os ramos Skolvan, Galorn, Kornog e La Mirlintantouille. Os Barzaz fazem da beleza, por vezes rude, da música bretã uma arma contra aqueles a quem a história da Bretanha, “secreta e controversa”, incomoda, os mesmos que “ocupam os lugares do poder” e que interpretam essa História “de forma a melhor poderem dispor das suas gentes e do seu tempo”.
            Os Battlefield Band são a instituição folk por excelência da Escócia. “Forward with Scotland’s Past” é o seu lema. Existem há décadas e passaram incólumes pelas tempestades. Da formação original resta o vocalista e teclista Alan Reid. O espírito, esse, manteve-se. Traçaram ao longo de uma vasta discografia os contornos da tradição escocesa sem nunca voltarem costas as problemas sociais do presente. Juntam o canto da tragédia à dança e aos ritos da terra. O novo álbum, “Quiet Days”, é mais intimista que os anteriores. Uma pausa e um segredo entre o clamor da batalha.

A voz e o fogo

            Sexta-feira é dia ibérico. Atuam Uxia e os Sétima Legião. Para a cantora galega Uxia significa o regresso ao Intercéltico, depois da sua aclamada participação, no ano passado, no projeto "Bailia das Flores” de Tentúgal. Uma voz, belíssima, com frequência desaproveitada. Esteve ligada ao grupo Na Lua onde a sua luz depressa começou a ofuscar os restantes músicos. Disse uma vez numa entrevista: “O importante nun cantor ou cantora é que prevaleza a voz; calquera instrumento que a oculte dificulta a sua comprénsion.” Não por acaso, o melhor trabalho dos Na Lua, “Estrela de Maio”, é aquele em que as vocalizações de Uxia surgem com maior proeminência. Abandonou entretanto o grupo para gravar um álbum algo incaracterístico, “Entre Cidades”, onde é sensível a falta de uma direção definida. Porque não reatar as maravilhas do seu primeiro trabalho a solo, “Foliada de Marzo”?
            Quanto aos Sétima Legião, cujo último álbum, “O Fogo”, foi mal recebido por alguma crítica, vão apresentar no Intercéltico um espetáculo especialmente concebido para o efeito que privilegiará as conotações célticas da sua música. Ao vivo, costumam criar um ambiente festivo, bastante diferente da melancolia que caracteriza os trabalhos discográficos da banda. Veremos se é desta que acendem o fogo.

Celebração

            Absolutamente a não perder, o terceiro e último dia do Intercéltico. Com dois grupos de passado diferente mas ambos de qualidade musical fora de série: Barabàn, de Itália, e Chieftains, os reis magos da folk irlandesa.
            Formados em Milão em 1982, os Barabàn dedicam-se ao estudo e interpretação da música do Norte de Itália, em particular da Lombardia e do Piemonte. Em disco, assemelham-se em sonoridade aos La Ciapa Rusa, seus vizinhos piemonteses. Baladas, canções de embalar, cantos satíricos e militares ou de protesto, cantigas de jograis e outros modos característicos da tradição (jigas, valsas, alessandrinas, monferrinas, curentas, sestrinas, “carmagnolas”, tuninas, “saltarellos”,…), recolhidos, na maioria, por Aurelio Citelli e Giuliano Grasso, compõem o reportório básico dos Barabàn, servido pela utilização de instrumentos típicos da região: o “organetto” diatónico, flautas, ocarinas, sanfona e, claro, o “piffero” e a “musa” (incluindo a variante solista, a “piva”), a gaita-de-foles do Piemonte. Vão ser decerto, a par dos Barzaz, uma das revelações do festival.
            Finalmente, os Chieftains encerram em glória o festival. Já não há palavras que cheguem para traduzir a importância desta banda lendária. Hoje, os Chieftains, como se tivessem uma varinha mágica, transformam em ouro tudo o que tocam. Depois de anos e anos a levarem ao mundo a música da Irlanda, passaram a trazer a música do mundo para a Irlanda. E a tranformá-la por dentro. Levaram os caminhos da Irlanda ao encontro da China (“The Chieftains in China”), da Bretanha (“Celtic Wedding”) e dos Estados Unidos (“Another Country”). Cumpriram o ciclo nesse ritual apolíneo de convergência dos povos celtas que é “Celebration”.
            Autêntica universidade da tradição onde lecionam alguns dos melhores instrumentistas da Irlanda, os Chieftains iluminaram diversos aspetos da cultura e da História desta nação onde ainda habitam as divindades antigas. O rock presta-lhes atualmente vassalagem. Eles retribuem e convidam músicos desta área para participar nos seus álbuns, mantendo intacta a originalidade e a magia. Mas acabam sempre por regressar ao altar verde da única religião que professam – a música da ilha que lhes é exterior e interior, a Irlanda. O novo álbum, “The Celtic Harp”, tem a participação da Belfast Harp Orchestra. Nesta segunda vinda dos Chieftains a Portugal, ouçam-nos com os sentidos alerta, mas também com o coração.
            Todos os espetáculos no Teatro Rivoli, com início às 21h30.


ATIVIDADES PARALELAS

CONFERÊNCIAS: “L’Art des Celtes”, 1 de Abril, no Institut Français do Porto, e “L’Europe des celtes, Véme-Ier siècle a. C.”, dia 2, na Faculdade de Letras do Porto, ambas por Venceslas Kruta.

EXPOSIÇÕES: “Instrumentos Populares Portugueses”, 26 de Março a 18 de Abril, na Rua da Reboleira, Ribeira.
“Suonatori e Strumanti Popolari de’ll Apenninni”, 30 de Março a 3 de Abril, no Teatro Rivoli.

ARTESANATO: “Pablo Leal – Um artesão galego”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

VIDEORAMA: “Imagens Musicais Intercélticas”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

DISCOS/REVISTAS: “A música celta e a folk europeia”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

TEMPO LIVRE: “Vidicuestla – o jogo de xadrez celta”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.


PEREGRINOS

O Festival Intercéltico do Porto, chegado à quarta edição, tornou-se uma instituição. Mais do que uma série de espetáculos musicais de música tradicional, o Intercéltico é um local de peregrinação onde, no princípio da Primavera, arribam os apreciadores e amantes destas músicas com raiz na eternidade.
São três dias de festa no verdadeiro sentido da palavra; de celebração, de “diálogo e convívio entre as diferentes músicas e tradições de povos com um passado comum”, como afirma a organização. Os concertos podem ser melhores ou piores, mas o ambiente é único. Come-se bem, bebe-se melhor, ouve-se música, mergulha-se no âmago de uma cultura que também é a nossa. “Celta”, ou “céltico”, o termo está hoje na moda. Mas por detrás do folclore e das imagens que vão formando o “puzzle” de uma Europa genuína, está o amor a uma causa e muito trabalho. Porque nem só de música vive um festival, a organização (desde a primeira hora da responsabilidade da equipa da MC-Mundo da Canção) compreendeu a necessidade de um enquadramento à altura. É assim que, uma vez mais, o Intercéltico apresenta uma lista de atividades paralelas, que neste anoo incluem conferências, exposições, videorama, artesanato, banca de discos e revistas e a iniciação ao vidicuestla, o antigo jogo de xadrez celta.
Para completar o círculo (ou a espiral…), refira-se ainda a publicação, à semelhança do que aconteceu nos anos transatos, de um livro-programa de 160 páginas sobre o festival, com informação detalhada sobre toda a programação, incluindo textos e discografias dos artistas presentes, uma “bibliografia céltica”, uma compilação das leis (delirantes) dos Brehons, ou seja, as leis antigas da Irlanda, e até esquemas pormenorizados de algumas jogadas de vidicuestla… Um elogio especial para Mário Correia, d organização, pelo notável trabalho de investigação e divulgação levado a cabo.
Agora é tempo de fazer as malas, rumar ao Porto e viver um fim-de-semana diferente. Num tempo e num local que parecem ter sido tocados pela magia de Merlin. Na companhia das fadas, duendes e elfos que existem, porque a imaginação os materializa. O Festival Intercéltico é essa teia cruzada do mito com a atualidade, do ancestral com o moderno. Ritual de comunhão com a nossa identidade mais profunda.

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