28/05/2025

O império da ilusão [The Rolling Stones]

 

cultura TERÇA-FEIRA, 12 JUNHO 1990

 

Os Rolling Stones tocaram em Alvalade para cerca de 60 mil pessoas

 

O império da ilusão

 

Os Rolling Stones tocaram em Alvalade para cerca de 60.000 pessoas, cada uma vivendo à sua maneira a recriação fantasmática do mito que já foi outrora banda em carne e osso. Tudo se tornou supérfluo menos o poder finalmente dizer: Eu vi os Rolling Stones.”

 



Mas será que vimos realmente? Creio bem que sonhámos. Sobre um palco construído numa escala que de humana nada tinha, cinco figurinhas minúsculas movimentavam-se de um lado para o outro enquadradas por outras tantas que nem cara tinham. Era a perspetiva possível cá de trás. Mas ninguém parecia importar-se. Do ministro ao “freak” cambaleante vinham todos em busca de uma miragem. Cada um viu o que quis. Os Stones são hoje em dia uma imensa máquina gerindo na perfeição os fantasmas, ilusões e, porque não dizê-lo, as frustrações de pelo menos duas gerações. Diferentes para cada caso mas midiaticamente normalizados. Neste aspeto, o concerto português foi um acontecimento único. Sociologicamente falando, que a música era afinal o que menos importava. Uma terceira perspetiva incide no aspeto técnico do espetáculo. E aqui o único adjetivo possível é – “prodigioso”. Vamos então por partes.

 

Técnica

 

            Perfeita. Ninguém se pode queixar. Do princípio ao fim assistimos a uma sucessão de prodígios visuais sincronizados ao décimo de segundo por computador. Durante mais de duas horas nada se repetiu, tudo se transformou, juntando à ilusão central que é a própria banda, as alucinações elétricas metodicamente fabricadas de molde a induzir ao transe e à total recetividade da mensagem os muitos milhares de pagantes que vieram para ver sobretudo a materialização dos seus próprios sonhos. A imensa máquina cumpriu integralmente essa função. A descomunal estrutura em forma de navio foi o suporte feérico onde se desenrolaram mil e uma histórias de cor e luz. À iluminação do palco propriamente dito sobrepunha-se a presença avassaladora do gigante exterior. Em termos luminotécnicos assinalem-se dois momentos inesquecíveis: a criação de um inferno pulsantemente vermelho em “Sympathy For The Devil”; e a demencial cadência alucinatória de "Jumpin’ Jack Flash”. Oportunidade também de brilhar também para os (outros) bonecos, insufláveis. Duas matronas sensuais tornadas quase lúbricas pelos movimentos que o vento, malandro, lhes imprimia e ridículas pelo pormenor oportunista (mas há algo de não-oportunista nisto tudo?) de a pôr a dar toques em bolas de futebol (“Honky Tonk Women”) e umas feras de mandíbulas aguçadas, umas das quais chegou mesmo a devorar o cantor (“Street Fighting Man”). Ambos os truques resultaram divertidos. Os Rolling Stones reduzidos a figurantes de fancaria numa imensa tenda de milagres. O público adorou. Técnica ainda de manipulação de massas. “Terminada” a atuação, os músicos retiram-se sabendo de antemão que a assistência vai querer mais. Regressam com “(I Can’t Get No) Satisfaction”. Genial. As explosões e fogo-de-artifício finais atuando servem de escape de libertação para as últimas energias de um público embasbacado e artificialmente satisfeito.

 

Música

 

            Houve quem lhe prestasse atenção. Sobretudo os mais velhos, atentos e tensos sempre à espera de apanhar os músicos em falso, nas notas ou na traição à ideologia. Desistiram logo de início. Desde há muito que os Stones são traidores declarados. O que os cinco músicos (mais os metais, os samplers, o coro) fazem é aviar uma receita, de ingredientes sabiamente misturados, que sirva ao mesmo tempo de panaceia para a nostalgia mal curada dos quarentões hippies travestidos de yuppies e para a agressividade “seven-Up” dos putos ainda não nascidos no tempo em que Mick Jagger e os restantes Stones faziam a vida negra ao “establishment”. Curiosamente foram as canções de temática digamos mais dura, como “Sympathy For The Devil” ou “Brown Sugar” que mais entusiasmaram a camada “straight” do público que nelas projetou as suas impossíveis ânsias de transgressão. Quanto aos putos vibraram com tudo. “Ruby Tuesday” ou temas do recente “Steel Wheels” são tudo a mesma coisa, desde que dê, como deu, para curtir. Matam-se dois coelhos de uma só cajadada. Recauchuta-se o passado, embrulha-se nos discos novos, pinta-se o objeto com cores psicadélicas (“Paint It Black” – não – que é muito depressivo), ata-se com fitas “funky” e o presente está pronto, não para oferecer, que a vida não está para brincadeiras, mas para vender, que os Stones não andam cá para outra coisa. Ao todo foram mais de vinte temas tocados sem interrupção, correspondendo às várias fases da banda e que serviram indiscriminadamente de pretexto para os mais novos dançarem, pularem ou simplesmente tombarem na alcatifa do estádio, por força da energia destilada por Jagger sobre o palco (ele até correu mais de setenta metros de ponta a ponta do estrado) ou talvez (quem sabe?) devido à ingestão de, em média, cinco litros de cerveja por cabeça num curto espaço de tempo. Em suma, os Stones são outros. Como é que a música poderia permanecer a mesma? Os puristas, os saudosos, os ingénuos, os de Maio de 68, que foram aos milhares a Alvalade em busca do passado, saíram desiludidos, perdidos num mundo que se esqueceu ser afinal ainda o seu. Ou então mergulharam de cabeça na ilusão a até acenderam o isqueiro, como se fosse possível ignorar que o tempo passa e os “seus” Stones já não existem. Mas isso é já um tema de...

 

...Sociologia

 

            Neste aspeto o espetáculo dos Rolling Stones em Portugal fez as delícias do observador descomprometido. Delicioso, realmente, observar famílias inteiras adiando durante duas horas o irresolúvel e tradicional conflito de gerações. Pais e filhos enganados por uma impossível média entre os dois extremos de três décadas em que os Rolling Stones funcionaram como catalizadores, reais ou “clonados” pelos “media”, de atitudes, culturas e modas em constante e acelerada mutação. Por outro lado, a banda funciona também no registo oposto, isto é, ao atravessar, mais ou menos incólume, esses 30 anos de História, simboliza a permanência no centro da voragem, a segurança no meio da vertigem do final de século. Emblemas de rebeldia e inconformismo, nos primórdios, os Stones são atualmente depositários de valores, se não conservadores, pelo menos conotados com uma época irrepetível. A transgressão e a hipocrisia bem comportada funcionam simultaneamente e na mesma canção. Durante a prestação de “Brown Sugar” os putos veem nela a apologia da heroína ou então julgam que, por serem hoje vegetarianos, Mick Jagger e Keith Richards defendem as virtudes do consumo de açúcar amarelo. Keith Richards, “junkie” arrependido, começa por estar solitariamente arredado num dos extremos do palco. Mick corre ao seu encontro e trá-lo de volta para o convívio das mentes sãs em corpo são, vestindo a pele do salvador. Para uns isto é espetáculo. Para outros é confrangedor assistir ao patético de uma banda que faz da mentira o motor da sua sobrevivência.

            Apagadas as luzes, a última imagem fixada na retina é a dos cinco Rolling Stones, abraçados e iluminados apenas por um foco de luz branca. Imagem a um tempo terrível e sublime em que o real se confunde com a ilusão.

            “It’s Only Rock’n’Roll, But I Like It” – Mick Jagger.

A década ao contrário [The Rolling Stones]

 

SEXTA-FEIRA, 8 JUNHO 1990 cultura

 

A década ao contrário
 


NO INÍCIO eram apenas uma entre muitas bandas brancas a brincar ao “rhythm‘n’blues”. Depois foram crescendo até se tornarem na maior banda de “rock and roll” do mundo. Hoje são um fantasma sorvedor de divisas e recordações de rebeldia.
            Mick Jagger e Keith Richards andaram juntos na mesma escola primária. Perderam-se de vista. Anos mais tarde encontraram-se num comboio. Dois rapazinhos ansiosos por dar nas vistas, ambos apreciadores do “rhythm‘n’blues”. Corria o ano de 1960, primeiro de uma década que viria a dar que falar. Brian Jones conhece Jagger numa das suas visitas a Londres. No “Korner’s Club”, onde este atuava com Long John Baldry. O destino juntava o trio mágico Jagger/Richards/Jones, mal sabendo a confusão que iria causar. Em 63, Charlie Watts e Bill Wyman completam a lendária formação. Escolhido o nome (baseado na canção “Rollin’ Stones”, de Muddy Waters) só faltava dar o sinal de partida.
 
Os blues
 
            As primeiras gravações de estúdio são “Soon Forgotten”, “Close Together” e “You Can’t Judge A Book (By Looking At The Cover)”. Nenhuma editora lhes pega. Tornava-se necessário criar urgentemente uma imagem. Sobretudo que vendesse. Andrew Oldham (que já trabalhara com os Beatles), na altura com apenas 19 anos, encontrou-a. Se os “fabulous four” eram os meninos bonitos da pop, havia que lhes arranjar adversário à altura. Os Stones eram o ideal para representar o papel de maus.
            Finalmente, em Junho de 63 a Decca edita o single “Come On”, versão do tema original de Chuck Berry, com um dos versos alterado não fosse ferir a sensibilidade dos homens da rádio. Perversão ou não, os Stones agarram num original dos rivais Lennon/McCartney e editam-no sob a forma de um “R&B”. É o clássico “I Wanna Be Your Man” e torna-se o primeiro hit da banda. Graças aos Beatles...
 
A imagem
 
            Enquanto os de Liverpool provocam gritinhos histéricos e desmaios, Jagger e os outros desencadeiam súbitas e assustadoras descargas de adrenalina e agressividade. Fans para o hospital, destruições várias e um cheirinho a droga, faziam então parte da imagem de marca do grupo. Pior ainda, usavam cabelos ainda mais compridos do que os Beatles. Às vezes chegavam mesmo ao ponto de não usar gravata. Eram provocações a mais. Brian Jones, esse então, abusava, sobretudo da droga. Mas perdoavam-lhe facilmente – era fino, engraçado e além do mais inofensivo – Jones era um dandy, um aristocrata mais preocupado em destruir-se do modo mais elegante possível. Conseguiu-o, sem muito esforço, em apenas cinco anos. Com Brian Jones os Stones gravaram sete álbuns. Após a sua morte, Mick Jagger tinha o caminho livre à sua frente.
            “The Rolling Stones” (64) e “The Rolling Stones no.2” (65, o mesmo de “Satisfaction”) são inspiradas rendições do som negro dos blues, acrescentado do frenesim típico do “rock‘n’roll”. O som vai progressivamente endurecendo à mesma velocidade que a violência suscitada nos fans. Aumentam as histórias e os escândalos. Os adultos tremem enquanto os jovens deliram. “(I Can’t Get No) Satisfaction” é número um em ambos os lados do Atlântico e torna-se hino de uma geração frustrada e à beira da grande explosão. “Out Of Our Hands” (65, com temas “soul”) e “Aftermath” (66, o 1º álbum exclusivamente assinado pela dupla Jagger/Richards) fecham a fase inicial da banda.
            A explosão eclode afinal pacificamente. Com flores no cabelo, flores na camisa, flores no cérebro acionado a LSD. Os Stones são apanhados de surpresa mas recompõem-se depressa. Ao mesmo tempo que hippies anestesiados atingem o nirvana lisérgico e a contemplação das grandes verdades cósmicas, o quinteto terrível lança “19th Nervous Breakdown” e “Paint It Black”. A compilação “Flowers” e o single “We Love You” são, pelo menos no título, cedências provisórias ao “Flower Power”. O golpe de misericórdia (depois do álbum pop “Between The Buttons”, de 67) dá-se com “Their Satanic Majesties Request”.
            Em plena época de propagação de valores positivos, como a paz e o amor, os Stones invertem o processo, utilizando as mesmas armas. Por detrás das imagens coloridas e em 3D da capa e de canções psicadélicas como “She’s A Rainbow” ou “2000 Light Years From Home”, revela-se o lado negro e diabólico oculto na sombra das alucinações. “Their Satanic Majesties Request” é a genial inversão, o negativo de “Sgt. Peppers” e do espírito da época. Símbolo da raiz demoníaca subjacente a toda a música rock, por mais que a queiram disfarçar com os trajos grotescos da boa consciência e das boas intenções.
            Anos mais tarde, Dezembro de 69, último de uma era, em Altamont, durante a atuação dos Stones, uma jovem negra, Meredith Hunter, é assassinada pelos Hell’s Angels. A década dos sonhos terminava, com os Rolling Stones em pesadelo.

História pouco natural [Talk Talk]

 
Pop

A DISCOTECA
 
HISTÓRIA POUCO NATURAL
 
Mark Hollis é um psicólogo com pretensões de mudar o mundo por força e graça de melodias pop. Até agora o melhor que conseguiu foi transformar a própria num mundo de pretensões. A coletânea “Natural History” dá conta de um dos casos mais interessantes de megalomania atualmente em curso no universo de egos inchados da música popular.
 

Com efeito, a psicologia não era propriamente o veículo ideal para Mark se alcandorar ao estatuto de “imortal”. Na música também não é fácil, mas sempre se vai ganhando qualquer coisita no entretanto. A primeira etapa chama-se “The Reaction” e coincide com a euforia destrutiva dos rapazes de alfinete no lábio, da geração “No Future”, isto é, no ano de 1977. O rapaz, Hollis, navegava nitidamente contra a corrente. A Beggars Banquet, confusa, pega em “Talk Talk” (a canção) e inclui-a na coletânea “punk”, “Streets”. Para já estava encontrada a nova designação para futuros investimentos e cometimentos. O principal era então conquistar o mundo.
 
Talk Contra Duran
 
            Foi através de Ed Hollis, empresário e irmão de Mark, que este conheceu e convidou o baterista Lee Harris e o baixista Paul Webb para integrarem o seu novo projeto. O convite foi aceite. Nasciam os Talk Talk, sempre com esta formação, já lá vão dez anos. Neste período de tempo gravaram apenas quatro álbuns. Para tristeza de muita gente e alívio de outra tanta. Para criar uma obra-de-arte é preciso tempo. Os Talk Talk deviam ter esperado ainda mais, antes de entrarem em estúdio, mas enfim, lá gravaram o álbum-estreia em 82. Chama-se “The Party’s Over” e é uma mistura estranha e desconfortável de título e maneirismos vocais, inspirados em Bryan Ferry, e atraentes melodias não muito distantes dos parentes próximos, Duran Duran, com os quais, aliás partilharam uma “tournée” na qualidade de banda de suporte. O drama dos Talk Talk é que, por mais que se esforcem, não conseguem produzir uma linha melódica com o “charme”, a fluidez e a facilidade das que os Duran Duran são capazes, como se isso não lhes custasse mais que meia hora de intervalo entre um “clip” nas Bahamas e outro na Martinica. O que separa as duas bandas é a “star quality” e carisma dos meninos bonitos Duran e a total ausência de imagem dos feiosos Talk. Uns têm, outros... não. Já para não falar da diferença abissal entre a voz “catchy” de Simon Le Bom e o falsete esganiçado de Mark Hollis, que, por sinal, até nem é mau compositor. A Psicologia explica como um complexo de superioridade quase sempre encobre um sentimento de inferioridade.
 
Finalmente o Paraíso
 
            “It’s My Life” (84) é a segunda tentativa em álbum, após um atraente “single”, “My Foolish Friend”, apelando para o reconhecimento do génio de Hollis. Poucos são sensíveis ao apelo. Dois anos mais tarde, “The Colour of Spring” assinala a primeira alteração estratégica. Já que o êxito e a fama lhes é, sistematicamente, negado por via da canção pop (só a Europa parece dar por eles, proporcionando-lhes um disco de ouro pelas vendas de “The Party’s Over”), porque não investir no campo mais sério do “conceptual”? Dito e feito. Pegue-se em Steve Winwood, Robbie McIntosh e Danny Thompson, em coros e secções de cordas, e está encontrado o conveniente tom “blasé”, permitindo afirmações do tipo “a nossa música não é comercial. Apenas nos interessa a qualidade. As massas não entendem”. Com “The Spirit of Eden” acertam finalmente no alvo. A crítica dispensa-lhes rasgados elogios. O disco, embora “não comercial”, vende e todos ficam contentes. São seis longos temas de sumptuoso recorte instrumental, em que Hollis descobre finalmente um registo vocal mais grave, sereno e, sobretudo, menos irritante, adaptando-se convenientemente ao tom “soft” e orquestral de todo o disco. É o triunfo e a glória, tenazmente perseguidos ao longo de anos de penoso caminhar. Mark Hollis não conseguiu, por enquanto, mudar o mundo. Mudou ele. Quando não os podes vencer...
 

VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 6 JUNHO 1990

Mler Ife Dada - Música do Homem que Anda (Walkman Music)

 

Pop

 

MLER IFE DADA
Música do Homem que Anda (Walkman Music)
Máxi, edição Polygram

            Sofia rendeu Anabela. Sofia Amendoeira aprendeu bem e rapidamente a matéria dada. Os quatro temas que integram este 45 rotações, para além de “Walkman”, ainda “Erro de Cálculo”, “Choro do Vento e das Nuvens” e “À Chuva”, fazem parte do recente álbum, “Espírito Invisível”, mas agora com novas misturas destinadas a servir a voz grave e descontraída da nova vocalista, em vez das piruetas nervosas e do exotismo garrido da Anabela Duarte. É ainda demasiado cedo para se emitir qualquer juízo sobre eventuais ganhos ou perdas suscitados pela troca. Se por um lado o timbre e colocação da novata parecem adequar-se mais harmoniosa e naturalmente às complexidades da música de Nuno Rebelo, por outro perde-se (pelo menos por enquanto) um certo diálogo (por vezes difícil e amiúde pouco pacífico) entre a voz e o suporte instrumental que era um dos polos de atração do estilo da banda, determinado pelo modo de cantar de Anabela. Enquanto não surge novo álbum, este disco fica como uma apresentação de Sofia, lembrando-nos que os Mler Ife Dada são, até à data, uma das formações mais originais e interessantes da música que por cá se vai fazendo.

 

VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 30 MAIO 1990

Madredeus - Existir

 

Pop

 

ALMA, TRADIÇÃO E FADO

 

MADREDEUS
Existir
LP, EMI – edição Valentim de Carvalho


       







 

  Sociologia, Semiótica, Psicopatologia, Otorrinolaringologia e por vezes até Música, são algumas das ciências tratadas, com mais ou menos profundidade, a propósito da nova música portuguesa. Não querendo competir com as sumidades em cada uma destas disciplinas, gostaria entretanto de contribuir com algumas achegas para o debate alargado que se vai desenrolando em volta de tão apaixonante matéria. Então é assim: a nova música portuguesa não é nova e muito menos portuguesa. Não é nova porque não inova, não arrisca e se compraz numa mediocridade satisfeita com o “para português não está mal”, sinal de menoridade mental e cultural que parece afetar grande parte da nossa “inteligenzia” que, no caso lusitano, se trata mais de uma “estupidenzia”, para sermos rigorosos. Não é portuguesa porque se limita, na maioria das vezes, a decalcar, melhor ou pior, modelos estrangeiros. Há exceções. Felizmente. Músicos por acaso nascidos e apertados contra a falta de visão e mercantilismo imperantes nesta quase ruína cultural em que vivemos, orgulho da casta vendida e saloia que finge governar-nos, lutando ingloriamente contra os Adamastores de gravata que, pululando nos templos ministeriais de acrópoles e “negrecer”, vão metodicamente redigindo os decretos de morte das nossas vidas, dos nossos sonhos maiores que todos os impérios.

            Os Madredeus são uma das exceções. São novos porque são eternos. São novos e eternos como a Alma, a Tradição, o Fado, a visão que vê o centro, fundo e ao longe, a Paixão e a loucura que transportam todos os tempos pelo futuro adentro. “Existir” é verbo difuso e rigoroso que exprime na perfeição o modo de ser verdadeiramente português – estar, ir sendo, não existir concretamente como coisa definitiva e dura, antes como rio que vai fluindo pelos infinitos leitos do Amor.

            Rodrigo Leão, Pedro Ayres, Francisco Ribeiro, Gabriel Gomes e Teresa Salgueiro foram ainda mais longe que nos seus dias de “antanho”. Nos seus sons e versos escutamos a voz dorida do Infante Portugal. Música una e única, singela por vezes, solar, sombria, elitista e popular. Catedral de luz, refúgio de olhares ardentes e silentes orações. Religião significa religação. “Existir” religa-nos ao gosto de ouvir música genuinamente portuguesa e, porque portuguesa, genuinamente universal. Liturgia iniciada com as vozes de Teresa e Francisco, no cântico luminoso e ascético de “Matinal” e culminando no ato de fé final de “Vontade de Mudar”, passando pela extroversão de “O Ladrão” (um dos temas que todos irão trautear nos próximos tempos), o instrumental etéreo e saudoso de “As Ilhas dos Açores” ou “O Menino Jesus”, Espada, Taça e Vitral da Nau em que eternamente partem os filhos diletos da nação. Ao todo, doze temas, doze arquétipos da real arte de ser português.

 

VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 30 MAIO 1990

04/05/2025

Steven Brown + Steven Brown & Delphine Seyrig

 

Pop

 

LABIRINTO E GRAÇA      

 

STEVEN BROWN
La Grâce Du Tombeur
LP e CD Les Temps Modernes
STEVEN BROWN & DELPHINE SEYRIG
De Doute Et De Grace
LP e CD Made To Measure, distri. Contraverso
 

            Steven Brown representa o lado intelectual e sério dos americanos-que-gostariam-de-ter-nascido-europeus, Tuxedomoon. Blaine Reininger é o lúdico do bigode que toca violino, conta anedotas, veste casacos aos quadradinhos e, de vez em quando, se distrai e esquece de imitar David Bowie, produzindo álbuns dignos de registo. Peter Principle, o esquisito dos barulhos, ultimamente dado a ambientalismos suspeitos e obscuridades sonoras sempre bem acolhidas e gravadas “por medida” na editora belga, Made To Measure. Steven Brown marcha mais certinho. Dele não se conhecem passos em falso. Mantém invariavelmente um superior nível qualitativo, quer no campo das canções (“Searching For Contact”) quer no terreno mais ambíguo dos experimentalismos conceptuais (“Music For Solo Piano” ou as experiências partilhadas com Benjamin Lew, “Douzième Journée...” e “À Propos D’un Paysage”) e, ultimamente, também poéticos (o disco dedicado à poesia de John Keats).

            “La Grâce Du Tombeur” inscreve-se simultaneamente nesta e numa terceira tendência, a de composição para filmes ou outras formas artísticas cúmplices da dos sons. Neste caso, um espetáculo teatral de Thierry Smits e Antoine Pickels, pretexto para Brown passar para o vinilo três longas peças instrumentais de extrema complexidade constituindo-se num todo de múltiplas leituras e no álbum mais experimental de toda a sua carreira: “The Labirynth”, “The Fall” e “The Flight”. Sequências de lógicas oblíquas sobrepostas, sonoridades sombrias e ocasionais cintilações, iluminando fugazmente a massa sonora angustiante que domina todo o álbum. Curiosamente, os maquinismos rítmicos obsessivos e monstruosos de “Labirynth” ou as vozes parasitárias e certas desfocagens estruturais de “Fall” lembram operações semelhantes às obradas pelos Nurse With Wound, em “Spiral Insana” Do outro lado, “Flight” eleva-se num tom mais ligeiro, com a eletrónica predominante em todo o disco, servindo de pano de fundo aos arabescos do saxofone de Brown.

            “De Doute Et De Grace”, composto para um filme da Wonder Products, com textos retirados do livro “Cité Du Sang”, de Carole Naggar, prossegue a via iniciada com o disco de Keats. Mais ainda do que neste, a música é a das próprias palavras, ditas por Delphine Seyrig, atriz no “Marienbad” de Resnais, presença e voz encantatórias dos fantasmas de Duras em “India Song”: Calcutta, o Ganges, Hotel Astor... Música e poesia confundidos num instante mágico, a memória reinventada em jogos literários e labirintos de sonhada nostalgia.

 

QUARTA-FEIRA, 23 MAIO 1990 VIDEODISCOS

03/05/2025

Peter Scherer & Arto Lindsay - Pretty Ugly

 

Pop

 

PETER SCHERER & ARTO LINDSAY
Pretty Ugly
LP e CD Made to Measure, distri. Contraverso

            Todos aqueles cuja relação com Lindsay se reduz ao conhecimento dos exercícios funky perpetrados no seio dos Ambitious Lovers ou às brasileiradas espalhadas um pouco por todo o lado, incluindo a aventura a solo “Envy” ou a colaboração no fabuloso e heterodoxo “Homem no Elevador” (“Der Mann Im Fahrstuhl”), da dupla Heiner Goebbels-Heiner Muller, gravado para a ECM, ficam desde já informados que o disco agora em questão não rigorosamente nada em comum com as características citadas. Lindsay, juntamente com o produtor e músico Peter Scherer, este último responsável por alguns dos mais excitantes trabalhos na área das músicas de fusão nova-iorquinas (lembremos, por exemplo, os dois volumes de “Comme Des Garçons”, com a assinatura de Seigen Ono), propuseram-se desta feita investir direta e descomplexadamente nos territórios frequentemente minados do experimentalismo. Com efeito, “Pretty Ugly”, título simultâneo do álbum e da faixa de 26 minutos que ocupa a totalidade do primeiro lado, é uma teia complexo de sonoridades eletrónicas, entre o ambiental e atonalidade próximas da música concreta, não dispensando os dois minutos cantados em português sub-repticiamente intercalados, por Lindsay, no meio da peça. A estrutura é suportada por alicerces rítmicos computorizados ou pelas percussões tradicionais do brasileiro Cyro Baptista. Nana Vasconcelos também é mencionado na ficha técnica, limitando-se a dar palmas e a assobiar. Jill Jaffe toca violino e viola de arco. O disco, como acontece na maioria das gravações da série Made To Measure, engloba-se na categoria das “músicas de circunstância”, neste caso tratando-se de uma composição comissionada para o ballet do mesmo nome coreografado por Amanda Miller. Brilhante, como a quase totalidade das obras deste catálogo.

 

QUARTA-FEIRA, 16 MAIO 1990 VIDEODISCOS

02/05/2025

À medida do génio [Hector Zazou]

 

Pop

A DISCOTECA

 

À MEDIDA DO GÉNIO

 

O argelino Hector Zazou, natural de Sidi-Bel Abbés e marselhês nas horas vagas, apresenta, no próximo sábado em Lisboa, a sua mais recente bizarria, “Les Nouvelles Polyphonies Corses”, fusão eletrónica neobarroca das polifonias vocais daquela região com classicismo subversivo e manipulações digitais.

 


Zazou começou por tornar-se notado pelo tamanho um pouco exagerado dos apêndices auditivos, também conhecidos por “orelhas”. Para disfarçar tal exagero, dedicou-se à música, diga-se desde já que com ótimos resultados, sendo hoje considerado um dos expoentes da nova música europeia, aliando um conhecimento profundo da tradição clássica a uma visão descentrada e pluralista das correntes atuais. Não é fácil encontrar nos anais recentes da história dos alguém que se movimente com tamanha mestria e à-vontade em terrenos tão díspares como a música africana, o “funky”, a eletrónica planante ou “pastiches” sintéticos do romantismo ocidental. A sua obra reflete na perfeição um percurso acidentado mas sempre coerente, de constante pesquisa e derrube de tabus estéticos mais renitentes.

           

Barricadas

 

            “Barricades” designa a formação de perto de vinte músicos com que se iniciou nas lides musicais e, simultaneamente, o primeiro longa-duração do duo ZNR, juntamente com Joseph Racaille. “Barricades 3”, o disco, é uma misteriosa congregação de silêncios e rendilhados pianísticos, homenagem a Satie, Poulenc, Debussy e Ravel, mestres do piano longínquo e lunar, estilhaçados por solos convulsivos de saxofone e sintetizadores humorísticos e circenses. Os ZNR gravaram um segundo álbum, “Traité De Mécanique Populaire” (1977), ironicamente uma recolha de pequenas peças de música de câmara, subtis miniaturas na veia mais esotérica e subliminarmente esquizofrénica de Erik Satie.

            De subliminar nada há no álbum “La Perversita”, este sim declaradamente esquizoide, fruto do contacto americano com as experiências demenciais dos Suicide e os repetitivismos obsessivos de Philip Glass. O álbum , produzido pelos lunáticos da “Bazooka”, é um repositório de sons “disco” minimalistas e textos pornográficos.

 

Preto e Branco

 

            O ritmo passa a ser uma constante na fase seguinte, através de uma associação com o cantor zairense Boni Bikaye. “Noir Et Blanc”, de 1983, é o fruto primeiro desta associação, síntese magistral do batuque e do canto africanos, filtrados e tratados pelo computador, dançável e inteligente. Fred Frith e Marc Hollander deixaram-se contagiar, trocando o intelectualismo conceptual pela alegria primitiva e exaltante do transe rítmico. O mini “Mr. Manager” e o recente “Guilty” apontam mais descaradamente para as pistas de dança, sem no entanto perder de vista uma complexidade formal que faz parecer simples o que é complicado, apoiada em notáveis e arrojadas técnicas de gravação.

            Mas é com a entrada para a editora belga Made To Measure que Zazou integra definitivamente a elite dos novos compositores europeus. “Reivax Au Bongo”, feito à medida para uma fotonovela imaginária, é a obra máxima da dupla Zazou-Bikaye. O primeiro lado parodia e recria aquilo que poderíamos definir como uma espécie de psicadelismo pop africano, com Boni na pele de “popstar” e Hector divertidíssimo a trocar as voltas à lógica e truques do género. Ainda mais inesperado é o segundo lado: quatro peças de cântico gregoriano hereticamente feminino e eletronicamente sintetizado.

 

Geografias

 

            “Géographies”, de 84, é mais sério na forma aparente mas totalmente subversor dos códigos habituais. Música híbrida e ambígua, falsamente clássica, flutuando num universo lírico movediço e rico de sugestões oníricas (títulos de faixas como “Motel du Sud” ou “Denise à Venise” são todo um programa de férias na região dos sonhos), permeável a todos os parasitismos, à beira da dissolução e de difícil mas com compensadora audição.

            “Géologies” (89) culmina este processo, sendo, por força da habituação e continuação dos pressupostos anteriores, mais facilmente apreensível. A fascinação que Zazou nutre pela voz humana, atinge o auge nestes dois discos, paradoxalmente, no tema final, com a utilização da voz “samplada” de Bikaye, e cujo resultado se aproxima muito da perfeição. Com as novas polifonias corsas, teremos oportunidade de verificar em que ponto se encontra esta aproximação.

 

VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 9 MAIO 1990

O cinema cósmico

Pop

A VIDEOTECA

 

O CINEMA CÓSMICO

 

A alucinação e os sonhos, produzidos pela escola alemã da Kosmisch Muzik, na transição dos anos 60 para a década seguinte, transformaram-se quase todos em doses soporíficas de pseudo-contemplação New Age. O LSD foi trocado pelo Valium, o cérebro pelo umbigo, o sonho pelo sono. Alguns dos nomes importantes encontraram a porta de salvação no cinema. Os filmes interiores foram substituídos pelos de celuloide. O Cosmos, além de tudo, também podia ser rentável.

 


O exemplo foi dado, desde logo, por dois dos “progenitores”, oficialmente reconhecidos, do movimento, o místico minimalista Terry Riley e os psicadélicos Pink Floyd. O primeiro compôs música para o obscuro “Happy Endings” e “No Man’s Land”, de Alain Tanner, exemplo deplorável de minimalismo embonecado para turista ouvir. Quanto aos Floyd, tornaram-se famosas bandas sonoras como as de “Zabriskie Point”, de Antonioni, ou “La Valée”, na mais pura veia “hippie”. Os alemães tomaram-lhe o gosto e, a partir do exemplo dos “paizinhos”, foi um vê-se-te-avias. Dos que não perderam o tino, destacam-se três grandes bandas, todas elas ainda no ativo e a fazer das suas: Can, Tangerine Dream e Popol Vuh.

           

Filmes hipnóticos

 

            Enquanto a maioria das bandas planantes da época só tardiamente e na fase decadente se preocupou em fazer música para filmes, de acordo com o falso argumento de que é mais fácil compor por medida, os Can deram logo de início a entender que consideravam a música e o cinema inseparáveis. O álbum de estreia, de 1970, intitula-se “Monster Movie” e, no mesmo ano, foi editado “Soundtracks”, que reunia temas de bandas sonoras como “Deadlock”, de Lamont Johnson, e “Deep End”, de Jerzy Skolimowski. “Movies” é também o título sintomático da obra-prima do baixista dos Holger Czukay. O longo tema “Hollywood Symphony” merece ser apelidado de “música imagética”, a rítmica hipnótica típica dos Can, que sustenta uma sequência de colagens acústicas, efetuadas como se de uma montagem cinematográfica se tratasse.

            No caso particular do teclista Irmin Schmidt, cuja fase inicial tem a designação genérica de “Filmmuzik”, dividida por diversos volumes, é já patente a total submissão da feitura musical aos imperativos do argumento. Os quatro volumes da série valem essencialmente como demonstração da faceta mais romântica e pianística de Schmidt, que parece ter seduzido cineastas como Hajo Gies (“Ruhe Sanft, Bruno”), Klaus Emmerich (“Leben Gundlings Friedrich Von Preussen Lessings Schlaf Traum Schrei” – título curto, este...), Reinhard Hauff (“Der Mann Auf Der Mauer”) ou Herbert Wolfertz (“Es Ist Nicht Aller Tage Abend”). Mais fácil é “Flight to Berlin” de Christopher Petit, o mesmo do “Cult Movie”, “Radio On”, por sinal com música, via rádio, dos Kraftwerk e de Robert Fripp. Os Can cumpriam assim a preceito a sua missão de cinéfilos, compondo excelentes bandas sonoras para filmes talvez nem sempre à sua altura.

           

Tangerinas de serviço

 

            Os Tangerine Dream, tal como o grego Vangelis, são sócios vitalícios do clube dos “compositores de música para filmes”. Três em casa duas bandas sonoras trazem a sua assinatura. Os Dream, depois de um período áureo, encerrado com os compêndios de música eletrônica “Phaedra” e “Rubycon”, passaram os últimos quinze anos entretidos com ninharias, decidindo a dada altura que o negócio das “fitas” era capaz de ser bem mais rentável que o das “músicas vanguardistas”. Depois de “The Sorcerer”, de William Friedkin, nunca mais pararam, tornando-se funcionários, em serviço permanente, das repartições da Sétima Arte.

            A maioria dos filmes em que colaboraram são medíocres e os seus realizadores ainda mais. Alguém já ouviu falar de Mike Gray, William Tannen, Kathryn Bigelow (!) ou Phil Joanou (!!), todos realizadores encartados? Os Tangerine Dream já e é deles a música dos filmes “Wavelength”, “Flashpoint”, “Near Dark” e “Three o’clock High”. Mais conhecidos são “Thief”, de Michael Mann, “Firestarter”, de Frank Capra Jr., “Risky Business”, de Paul Brickman, e “Shy People”, de Andrei Konchalovsky. Com os Tangerine Dream é caso para dizer que os Cosmos inicial foi encolhendo até atingir as dimensões de uma fita da série Z.

 

O piano de Herzog

 

            Com os Popol Vuh dá-se o inverso do vai-a-todas dos Tangerine Dream, tendo a banda do pianista Florian Fricke colaborado exclusivamente com o realizador Werner Herzog.

            Os Popol Vuh começaram por alinhar ao lado dos exploradores eletrónicos, sendo Florian Fricke um dos pioneiros na utilização do sintetizador Moog, em discos como o clássico “In Der Garten Pharaos”. Cedo, porém, Fricke enveredou por outras vias e trocou de vez a eletrônica pelo piano e por sonoridades mais intimistas, dando voz às suas preocupações religiosas. O silêncio e o progressivo despojamento formal da música dos Popol Vuh, bem patentes em obras magníficas como “Hosianna Mantra”, “Das Hohelied Salomos” ou os mais recentes “Tantric Songs” e “Spirit of Peace”, só encontram paralelo na fase atual de Terry Riley (as mesmas conceções e idêntica abordagem pianística no duplo “The Harp of New Albion”) e no músico e teórico alemão Peter Michael Hamel.

            A associação com Herzog começou com “Aguirre” e tem prosseguido com regularidade em obras como “Coeur de Verre”, “Nosferatu”, “Fitzcarraldo” e “Cobra Verde”. Hoje, os nomes de Fricke e Herzog são por assim dizer inseparáveis, funcionando a música e as imagens como um todo, o que infelizmente, noutros casos, sem sempre acontece.

            Uma última referência para um filme, sem diálogos, em que a música ocupa o lugar principal no desenvolvimento dramático. Trata-se de “Le Berceau de Cristal”, realizado por um senhor chamado Philippe Garrel, que afirma fazer filmes para não se suicidar. A música foi composta por Manuel Gottsching (outro nome importante da escola eletrónica alemã) e tem como única personagem a cantora Nico, deusa da Lua. Nico, que também compôs música para um filme, “La Cicatrice Intérieure”; Nico morreu e poucos deram por isso. Em “Le Berceau de Cristal” a única voz é a da deusa, lendo um poema. O filme termina com o som de um disparo de pistola.

 

QUARTA-FEIRA, 28 MARÇO 1990 VIDEODISCOS 

01/05/2025

Savage Republic - Customs

Pop

 

SAVAGE REPUBLIC
Customs
LP e CD Fundamental, import. Contraverso

Customs (album) - Wikipedia

A banda de Jackson Del Rey e Bruce Licher é deveras curiosa. Movendo-se aparentemente no território bem demarcado das “noise bands”, as suas motivações assentam em pressupostos bem mais perturbantes e interessantes do que o mero acumular de decibéis e ruídos sortidos. A música dos Savage Republic é orgiástica, não no sentido decaído de “grande farra” ou “pouca vergonha”, mas naquele outra que radica diretamente no hedonismo da Grécia Antiga. A orgia é aqui um cerimonial religioso em que o desregramento dos sentidos visa, não a sua satisfação, mas uma pretensa libertação espiritual. A via dionísica, por oposição à apolínea. “Ceremonial”, gravado originalmente na Grécia (aliás, como “Tragic Figures” e “Trudge”), é paradigmático desta atitude em faixas como “Dionysius” ou “Mediterranea”. Em “Customs” prosseguem na mesma via. “Song for Adonis” refere-se diretamente à mitologia e música gregas e é tocada num dos seus instrumentos tradicionais, o “saz”. O álbum baseia-se essencialmente, como era de esperar dados os antecedentes, em longas sequências de guitarra, por vezes acompanhadas de gritaria, como em “Mapia”, “Sucker punch” ou “Rapeman’n 1st EP”. A influência ou mera sintonia com os Sonic Youth é notória. Ambas as bandas andaram na mesma escola e o professor foi, como não podia deixar de ser, Glenn Branca. Mas, mais importante, souberam assimilar as lições e dar-lhes um cunho pessoal.

 

QUARTA-FEIRA, 21 MARÇO 1990 VIDEODISCOS 

OS ANJOS DO BIZARRO (The Residents)


Pop

DISCOTECA

 

OS ANJOS DO BIZARRO

 

Ninguém sabe quem são. Já passaram mais de quinze anos sobre a sua formação e continuamos privados das verdadeiras identidades destes senhores que, em princípio, se julga serem humanos. Vão em vinte e cinco álbuns gravados, uns simplesmente geniais, outros impenetráveis, todos diferentes e situados na galáxia ao lado da pop. O seu percurso é um constante ziguezaguear por entre todas as convenções da música das duas últimas décadas, desembocando em lugar nenhum. Pelo menos, que seja conhecido.

 

The King & Eye - Wikipedia

 

Diz-se que são americanos e, por conveniência e comodidade, é melhor acreditar. Começam por colecionar gravações esquisitas, com incidência em obscuros “hits” dos anos cinquenta e sessenta e em excertos de jazz e “blues” de Nova Orleães. Algures numa floresta da Baviera, conhecem um tal N. Senada, personagem misteriosa que lhes ensina um complicado sistema fonético, aplicado em inúmeros discos da banda.

Cultivam, nos primórdios, a Teoria da Obscuridade, que, em poucas palavras, se pode explicar do seguinte modo: publicar cada trabalho apenas depois dos seus autores o terem esquecido. Assim, por exemplo, o álbum “Not Available”, gravado originalmente em 1974, só é editado quatro anos depois, ficando a figurar como quinto da discografia. Confusos? Não é caso para menos.

 

Teoria da Obscuridade

 

            Os Residents cultivaram cuidadosamente, ao longo dos anos, uma imagem de bizarria e subversão, evidenciadas de forma exemplar logo no primeiro álbum, “Meet The Residents”, cujos títulos e fotografia da capa parodiam o célebre quarteto de Liverpool. De resto, uma das preocupações do, também, quarteto incógnito parece ser a demolição sistemática dos alicerces em que assenta a música popular ocidental. Os Residents introduzem-se no sistema utilizando os seus códigos e canais de divulgação, para melhor o sabotar do interior. A razão de tal atitude, sistemática, permanece um mistério. Como tudo o mais, aliás.

            “Meet The Residents” atira-nos à cara uma massa distorcida de sons e referências desencontradas, desde a ópera e a canção pop imbecil, ao “free jazz” e à música concreta. O rock encontrou um inimigo à altura.

            “The Third Reich ‘n’ Roll” vai ainda mais longe. No primeiro lado, o tema “Swatikas on parade”, uma colagem vertiginosa de vozes distorcidas, a par do soletrar fonético típico da banda, sons eletrónicos e a trituração dos géneros musicais mais díspares tornam a audição a um tempo aterradora e fascinante. Antes dos Residents, só os Faust se atreveram a tanto. Depois dos Residents outros se aventuram por tão incertos caminhos. Os Biota e os Negativland são os que mais inteligentemente o fazem. Do outro lado do disco, “Hitler was a vegetarian”, outra colagem insana, desta vez de êxitos da pop, de bandas como os Beatles ou os Stones. “Interpretações semifonéticas de ‘hits’ do Top dos anos sessenta”, segundo os próprios beligerantes. As toupeiras prosseguem o seu trabalho de sapa.

 

Esquimós e Toupeiras

 

            “Fingerprince”, de 1979, inclui a longa “suite” para bailado “Six things to a cycle”, numa faceta mais clássica, mas não menos original. Um dos convidados é o guitarrista inglês Snakefinger, amigo de sempre da banda, infelizmente já falecido. A cantora Zeibak é outra das presenças assíduas na fase inicial da banda.

            “Duckstab/Buster and Glen” é “vintage” Residents, a estranheza tornada habitual. E chegamos a “Not Available”, o tal que deveria ser segundo e é, afinal, quinto. Sombras, naufrágios iminentes, um tom geral de tragédia e abandono. O disco mais triste de todos. Incontornável.

            “Eskimo” é um tratado sociológico sobre a vida dos esquimós, outra das muitas – algumas inconfessadas – paixões deste bando de lunáticos. Os rituais do nascimento e da morte, acompanhados do princípio ao fim do disco pelo ruído de vento, numa perspetiva muito especial, como não poderia deixar de ser. “Diskomo” é a versão “disco” de “Eskimo”. A partir daqui, os Residents enveredam definitivamente por uma via quase só eletrónica, perdendo-se o humor e o caos sonoro dos álbuns anteriores.

            “Commercial Album” parte de uma ideia original: quarenta temas, com um minuto certo cada, para servir de “jingles” comerciais. Participam no disco Chris Cutler e Fred Frith, e este ainda tem tempo para um solo de guitarra. A versão original apresenta o bónus de um single com mais dois temas-minuto (!). As companhias publicitárias não parecem ter compreendido bem o gesto e as intenções.

            Depois, é a fase da trilogia inacabada, constituída por “Mark of the Mole” e “The Tunes of Two Cities”, que narram a história dos conflitos entre duas sociedades, a das toupeiras e a de outros seres mais esquisitos e de intenções suspeitas. O segundo alterna faixas representantes das conceções musicais de cada uma das sociedades.

            Seguem-se “Intermission”, “Residue” (este com material antigo inédito) e “The Mole Show”, primeiro “ao vivo” da banda.

 

Compositores Americanos

 

            “George and James” inaugura uma série dedicada aos modernos compositores americanos, programada para continuar até ao ano 2000. Os primeiros contemplados foram George Gershwin e James Brown.

            Em 1984, gravam música para o vídeo “Whatever Happened do Vileness Fats?”. Logo de seguida, a banda sonora de “The Census Taker” e o espetáculo para a televisão “Pal TV LP”. “The Big Bubble” (1985) é uma quarta parte para a já citada “trilogia”, sem que tenha havido uma terceira. Big Bubble é também o nome da banda cujos membros descendem do cruzamento entre as duas raças rivais, com êxitos como “Cry for the fire” e o hino “Kula Bocca says so”. O álbum, sem dúvida divertido, permite algumas leituras perversas acerca de entusiasmos nacionalistas e formas de propaganda totalitárias. Mais dois registos “ao vivo”, “The Eyeball Show – Live in Japan” (uma referência ao facto de os Residents terem uma especial predileção por se disfarçarem de globos oculares humanos, depois de já se terem mascarado de camarões...) e “The Residents 13th Anniversary Show”.

            “Stars and Hank Forever” é o segunda da série “Novos compositores americanos”. John Philip Sousa e Hank Williams são, desta vez, os escolhidos. Discos recentes, como “Dark Star” e “God in Three Persons”, não adiantam grande coisa à lenda. O mais recente é uma homenagem (ou sacrilégio) a Elvis Presley, intitulada “The King and Eye” (jogando com o trocadilho entre “eye” e “I”), com clássicos como “Blue suede shoes”, “Heartbreak Hotel” ou “Love me tender” metodicamente trucidados, e a figura do “rei” representada com o inevitável olho no lugar da cabeça.

            Não se sabe ao certo se existe um disco com o título, que muito nos diz respeito, “The Third Secret of Fatima”, mas com os Residents tudo é possível.

 

QUARTA-FEIRA, 21 MARÇO 1990 VIDEODISCOS