Pop
A
DISCOTECA
À MEDIDA DO GÉNIO
O argelino Hector Zazou, natural de Sidi-Bel
Abbés e marselhês nas horas vagas, apresenta, no próximo sábado em Lisboa, a
sua mais recente bizarria, “Les Nouvelles Polyphonies Corses”, fusão eletrónica
neobarroca das polifonias vocais daquela região com classicismo subversivo e
manipulações digitais.
Zazou começou por
tornar-se notado pelo tamanho um pouco exagerado dos apêndices auditivos,
também conhecidos por “orelhas”. Para disfarçar tal exagero, dedicou-se à
música, diga-se desde já que com ótimos resultados, sendo hoje considerado um
dos expoentes da nova música europeia, aliando um conhecimento profundo da
tradição clássica a uma visão descentrada e pluralista das correntes atuais.
Não é fácil encontrar nos anais recentes da história dos alguém que se
movimente com tamanha mestria e à-vontade em terrenos tão díspares como a
música africana, o “funky”, a eletrónica planante ou “pastiches” sintéticos do
romantismo ocidental. A sua obra reflete na perfeição um percurso acidentado
mas sempre coerente, de constante pesquisa e derrube de tabus estéticos mais
renitentes.
Barricadas
“Barricades” designa a formação de
perto de vinte músicos com que se iniciou nas lides musicais e,
simultaneamente, o primeiro longa-duração do duo ZNR, juntamente com Joseph
Racaille. “Barricades 3”, o disco, é uma misteriosa congregação de silêncios e rendilhados
pianísticos, homenagem a Satie, Poulenc, Debussy e Ravel, mestres do piano
longínquo e lunar, estilhaçados por solos convulsivos de saxofone e
sintetizadores humorísticos e circenses. Os ZNR gravaram um segundo álbum,
“Traité De Mécanique Populaire” (1977), ironicamente uma recolha de pequenas
peças de música de câmara, subtis miniaturas na veia mais esotérica e
subliminarmente esquizofrénica de Erik Satie.
De subliminar nada há no álbum “La
Perversita”, este sim declaradamente esquizoide, fruto do contacto americano
com as experiências demenciais dos Suicide e os repetitivismos obsessivos de
Philip Glass. O álbum , produzido pelos lunáticos da “Bazooka”, é um
repositório de sons “disco” minimalistas e textos pornográficos.
Preto e Branco
O ritmo passa a ser uma constante na
fase seguinte, através de uma associação com o cantor zairense Boni Bikaye.
“Noir Et Blanc”, de 1983, é o fruto primeiro desta associação, síntese
magistral do batuque e do canto africanos, filtrados e tratados pelo
computador, dançável e inteligente. Fred Frith e Marc Hollander deixaram-se
contagiar, trocando o intelectualismo conceptual pela alegria primitiva e
exaltante do transe rítmico. O mini “Mr. Manager” e o recente “Guilty” apontam
mais descaradamente para as pistas de dança, sem no entanto perder de vista uma
complexidade formal que faz parecer simples o que é complicado, apoiada em
notáveis e arrojadas técnicas de gravação.
Mas é com a entrada para a editora
belga Made To Measure que Zazou integra definitivamente a elite dos novos
compositores europeus. “Reivax Au Bongo”, feito à medida para uma fotonovela
imaginária, é a obra máxima da dupla Zazou-Bikaye. O primeiro lado parodia e
recria aquilo que poderíamos definir como uma espécie de psicadelismo pop
africano, com Boni na pele de “popstar” e Hector divertidíssimo a trocar as
voltas à lógica e truques do género. Ainda mais inesperado é o segundo lado:
quatro peças de cântico gregoriano hereticamente feminino e eletronicamente
sintetizado.
Geografias
“Géographies”, de 84, é mais sério
na forma aparente mas totalmente subversor dos códigos habituais. Música
híbrida e ambígua, falsamente clássica, flutuando num universo lírico movediço
e rico de sugestões oníricas (títulos de faixas como “Motel du Sud” ou “Denise
à Venise” são todo um programa de férias na região dos sonhos), permeável a
todos os parasitismos, à beira da dissolução e de difícil mas com compensadora
audição.
“Géologies” (89) culmina este
processo, sendo, por força da habituação e continuação dos pressupostos
anteriores, mais facilmente apreensível. A fascinação que Zazou nutre pela voz
humana, atinge o auge nestes dois discos, paradoxalmente, no tema final, com a
utilização da voz “samplada” de Bikaye, e cujo resultado se aproxima muito da
perfeição. Com as novas polifonias corsas, teremos oportunidade de verificar em
que ponto se encontra esta aproximação.
VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA,
9 MAIO 1990
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