25/11/2008

Raízes - Diabo Do Belho!...

Pop Rock

24 de Abril de 1996
Os melhores de sempre – música portuguesa

Raízes Diabo do Belho!...

Como foi

Firmino Neiva entrou para os Raízes pouco tempo antes da gravação de “Diabo do Belho!...”, o melhor disco do grupo e um clássico da música portuguesa de raiz tradicional. Para traz tinham ficado dez anos vividos na Dinamarca, onde começou a interessar-se pela música tradicional e tocou “com alguns irlandeses”. Por cá os Raízes tinham já gravado um primeiro álbum, concluído um período fértil em espectáculos e efectuado um trabalho de recolhas, “essencialmente no Baixo Minho, nas zonas de Ponta da Barca, Portela, Barroselas e Vila Verde”, que seria aproveitado para “Diabo do Belho!...”. Neste disco, porém, o grupo teve alguns pruridos em usar o termo “recolha”, já que nessa actividade depararam com situações problemáticas. “Chegámos a fazer recolhas de um mesmo tema, com um intervalo de quinze dias, num mesmo local, com as mesmas pessoas, e as coisas serem totalmente diferentes”. A escolha entre diferentes interpretações, quando não tentavam “conciliar as duas”, acabava por ser ditada pelo “gosto particular” dos elementos do grupo e pelo que achavam que “devia ser divulgado”. “Quando se fazem recolhas ou se apanham coisas em estado muito bruto ou então já muito alteradas e deterioradas. Mas também é isso que mantém a música tradicional viva, ir-se transformando todos os dias”.
Firmino Neiva cita a este propósito “muitos cantares minhotos que vêm da prática das pessoas cantarem na igreja, os romeirinhos ou as sachadas. A igreja influenciou a maneira de cantá-los”. “De repente”, conta, “nas recolhas que ouvíamos havia harmonizações que tinham mais a ver com música de igreja do que propriamente com música popular. Aí tentávamos recuperar a maneira tradicional, comos e canta no campo, numa sachada ou numa desfolhada”. Há ainda o caso, recorda, de “umas pessoas velhotas que cantavam uma coisa muito gira mas que não batia muito certo com aquela zona”. Mais tarde descobriu-se que era a “música de uma opereta que tinha passado por Lisboa em mil novecentos e vinte e tal”.
“Diabo do Belho” foi gravado em Fevereiro de 1985. “Em termos de facilidades técnicas não há comparação possível entre este e o primeiro disco. O primeiro foi gravado em sete horas, as pessoas numa sala, toca a tocar, quase uma gravação ao vivo, enquanto neste tivemos já três ou quatro dias de estúdio. Com outro cuidado com o som e a execução técnica”. No bolso ia já uma maqueta previamente preparada e gravada num pequeno estúdio pertencente à banda. “Já levávamos o disco feito para estúdio. Foi só chegar lá e tocá-lo, não houve praticamente produção”. Durante o tempo de gravações tudo correu sobre rodas, excepto para o próprio Firmino Neiva, quem sucedeu, segundo diz, “um desastre”. “O disco foi gravado naquele que é hoje o estúdio Namouche. Estava a meter umas braguesas. Estava de botas e a bater o pé ao ritmo da música. O Moreno Pinto, técnico de som, disse-me ‘Ou tiras as botas ou deixas de bater com o pé!’. Tirei as botas e fiquei em meias. Acabei o ‘take’, vou por ali acima a correr, até à ‘régie’. Aquilo tem três ou quatro degraus encerados. Escorreguei, fiz uma luxação no ombro. As gravações acabaram para mim, nesse momento. Felizmente já só faltava um dia e meio. Até aí tinha sido esplêndido”.
Para além dessa “tragédia” pessoal, não faltaram momentos de boa disposição. Como aquele proporcionado por Rão Kyao que, na altura, se encontrava a gravar, com António Chainho, no mesmo estúdio. “Andavam a tentar descobrir um nome para o disco. Acontece que o estúdio fica mesmo em frente ao Jardim Zoológico, ao lado dos pássaros. Houve até títulos provisórios, como ‘Papagaios’. Até que um dia, já desesperados, olharam para a rua. Estava lá o nome do disco. Mesmo em frente, leram uma placa a dizer ‘Estrada da Luz’”.
“Diabo do Belho”, por seu lado, deve o título a uma canção do mesmo nome para a qual o grupo fez um arranjo de cordas, retirada de um cancioneiro. “Normalmente são as pessoas idosas, com quem trabalhámos nas recolhas, que ainda se lembram das coisas. Por isso, nada melhor do que falar delas num dos temas”. Existe ainda outro elo de ligação, bem mais picaresco. “Posteriormente *a gravação, um amigo nosso, o Nuno Pignatelli, autor do texto que aparece na capa, escreveu uma pequena peça de teatro, onde nós participávamos musicalmente, encenada pela Companhia de Teatro Cena, à volta do tema dos velhos. Havia um narrador que ia falando sobre os velhos enquanto no palco iam passando várias cenas. O espectáculo dos Raízes começava com uma deixa, quando um velho apalpava o cu a uma mulher e esta gritava ‘Ai o diabo do velho!’”
Em termos comerciais, “Diabo do Belho!...” obteve uma resposta significativa. Pelo que sabemos, por linhas travessas, o disco vendeu bem. Passados três ou quatro meses, à volta de cinco mil exemplares”. A partir daí “perderam o controlo da situação”, uma vez que a editora faliu. Em relação á posterior reedição em compacto, pela Movieplay, Firmino Neiva apenas lamenta que esta tenha destruído o “design” original da capa. “A capa também faz parte da obra. Quando alteram a capa estão a alterar a obra”.
Apesar de tantos contratempos, os Raízes continuam na estrada, se bem que a sua carreira tenha entrado nos últimos anos na penumbra. Actuam em romarias, nas universidades, em congressos de professores. Ou então vão para a Galiza ou a vários festivais na Europa. Firmino Neiva espera que a situação dê uma volta de 180 graus. O grupo evoluiu, refinou-se, enquanto espera nova oportunidade. “Sem vaidade, acho que o caminho dos Raízes seria, à nossa maneira, idêntico ao que acabaram por fazer os Gaiteiros de Lisboa”.

Como é

Não fez a revolução. Mas trouxe algo de novo para a música de raiz. “Diabo do Belho” exala uma frescura que não se sente com a mesma intensidade, por exemplo, nos Almanaque ou no primeiro Vai de Roda, sem que tal significasse uma menos ligação com as… raízes. Depois, o grupo conseguiu um feito notável, que foi o de recriar a tradição do Minho sem resvalar para o estereótipo da chula. Exemplar é, neste particular, o trabalho levado a efeito sobre os ritmos, que empresta a “Diabo do Belho” uma variedade e riqueza que apenas encontramos, na primeira geração de grupos de música de raiz tradicional, na Ronda dos Quatro Caminhos. Repare-se em temas como “Ribeira (ribeira qu’és tamanha)”, “A caminho da romaria” ou “Ó Ana ó que linda Ana”, onde a batida, ritual, dispensa os habituais pontapés dos bombos nos rins da subtileza (os do “Malhão do Souto” final suportam-se bem, já que as vocalizações desviam convenientemente a atenção…). A consequência – e bênção para os ouvidos – repousa no acento posto nas polifonias vocais – tratadas em estúdio com toda a sofisticação possível – e na gaita-de-foles que, sempre que chamada a pronunciar-se, o faz com uma desenvoltura e clareza tímbrica de fazer inveja a muita gente. Duas canções entram na selecção das mais belas de sempre gravadas e tratadas por um grupo urbano: ““Diabo do Belho”, exemplo de que o mal não está nas violas e nas braguesas, mas na falta de criatividade com que na generalidade são utilizadas, e a espantosa versão de “Rosa tirana”, com lugar de destaque no “top ten” das “interpretações em estado de graça”. Três instrumentais, a fuga aos lugares-comuns e o único senão de ter apenas 29 minutos de duração (mas talvez resida nesta contenção o segredo das virtudes até aqui apontadas) contribuem para fazer de “Diabo do Belho” um oásis bastante mal tratado na posterior reconversão para compacto.

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