14/11/2008

Fausto - Por Este Rio Acima

Pop Rock

8 de Fevereiro de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

Fausto Por Este Rio Acima

Como foi

Nasceu no teatro um dos discos que marcam a história da música popular feita em Portugal neste século. Mais concretamente no teatro de A Barraca, que há mais de uma dúzia de anos tinha em cena a peça “Peregrinação”, baseada nas crónicas de Fernão Mendes Pinto, as mesmas que serviriam de inspiração ao disco. Os autores da música eram Fausto e Zeca Afonso. Para Júlio Pereira, músico convidado em “Por Este Rio Acima” e que então fazia parte da companhia, “a própria vivacidade do disco, onde se encontra algum teatro, entre aspas, como nos coros, advém de a música já ter tido uma grande rodagem no grupo de teatro”. Ele e Fausto costumavam encontrar-se num restaurante situado no prédio ao lado. “Era aí que cantávamos e tocávamos temas que viriam a fazer parte do disco”. “A maioria, senão mesmo todos os temas da ‘Peregrinação’”, diz Júlio Pereira, “entram no álbum”.
Em “Por Este Rio Acima”, Júlio Pereira toca segunda guitarra, braguesa e cavaquinho, instrumento no qual recentemente se notabilizara, no célebre álbum com o seu nome. O convite que Fausto lhe dirigiu surgiu de forma natural. “O Fausto era um fulano que se baseava muito numa rítmica à qual eu era particularmente sensível, ritmos feitos em caixas, ou com bombos, quer baseados no Lavacolhos ou em Trás-os-Montes.” Além disso, devido à própria temática da obra, “muitos temas eram baseados na parte litoral do país”, o que implicava a utilização de instrumentos dessa zona, sendo deste modo a escolha de Júlio Pereira a mais óbvia, uma vez que este já nessa altura “estava ligado a instrumentos de corda, em particular os do Minho”.
Eduardo Paes Mamede foi o produtor e arranjador de “Por Este Rio Acima”. Conheceram-se no Grupo de Acção Cultural (GAC) do qual fizeram ambos parte e com o qual gravaram juntos os primeiros discos do grupo. A ligação de ambos reforçou-se mais tarde numa digressão em Londres, com o percussionista Pintinhas, e, posteriormente, noutra, em Espanha, com elementos dos Trovante. Fausto tinha entretanto abandonado a editora Arnaldo Trindade, onde gravara em 1979 o álbum “Histórias de Viajeiros” e pensava lançar-se em novos projectos. Uma simbiose perfeita que se prolongaria por mais dois álbuns, “O Despertar dos Alquimistas” e “Para Além das Cordilheiras”. “Estávamos de acordo em relação a alguns conceitos sobre a evolução da música popular portuguesa”, diz Eduardo Paes Mamede, “achávamos que só fazia sentido se houvesse dentro da própria estrutura da música algo que se identificasse com a nossa tradição”. Fausto falou-lhe em fazer um álbum duplo. “Estava apaixonadíssimo por aquilo [o texto da “Peregrinação”]. Mostrou-me algumas coisas que já tinha. Fiquei maluco”, conta o produtor.
O trabalho teve início. “Ele trazia as músicas, que compunha na guitarra, e eu escrevia-as. Escrevia as melodias e cifrava-as com a harmonia dele. Não tinha que trabalhar muito neste aspecto porque as canções, além de a melodia ser rica eram-no igualmente em termos de harmonia. Depois discutíamos passo a passo uma ideia. Sobre uma melodia ou um texto. Perspectivávamos os ambientes sonoros. Ele confiava perfeitamente em mim.”
Uma confiança que de resto se manifestou na inteira liberdade concedida a Eduardo Paes Mamede na elaboração dos arranjos. “Ele não sabia. Podia dizer-lhe: vou meter aqui umas trompas, ou uma percussão, podia fazer um desenho ou cantarolar, mas é evidente que ele não podia ouvir. Não tínhamos ainda na altura os instrumentos que temos hoje, como os samplers. Era um trabalho de grande confiança.”
Demorou cerca de um mês em estúdio, “quase um recorde”, a fazer “Por Este Rio Acima”. “Nunca houve nada feito de afogadilho. Planeei bastante bem o disco e os tempos de estúdio, além de que o Fausto também é bastante metódico.” Apenas as vozes custaram mais a gravar. “O tempo de meter as vozes tem de ser mais liberal porque exige um certo estado de espírito. Até porque, para os cantores, a altura de pôr a voz é uma coisa definitiva, que fica para sempre. É preciso ter muito cuidado.”
Embora reconhecendo que logo na altura teve consciência de que “Por Este Rio Acima” “era um disco que ficaria para sempre na nossa música”, Eduardo Paes Mamede lamenta que a produção tivesse sido “baixíssima”. “Pensava fazer o disco com uma orquestra, mas só houve dinheiro para um quarteto de cordas mais uns sopros. Nomeadamente na parte da minha responsabilidade, há certas faixas que precisavam mesmo de uma orquestra, com mais cordas. Por exemplo, a última, ‘Quando às vezes ponho diante dos olhos’, necessitava de uma orquestra, pelo menos com uns doze instrumentistas. Infelizmente o dinheiro não chegou. Até porque entrou muita gente, entre a qual alguns músicos mais caros, com ‘cachet’ mais alto, como o Pedro Caldeira Cabral e o Júlio Pereira. Só mais tarde, no disco seguinte, é que a CBS me deu uma orquestra.”
Eduardo Paes Mamede conta ainda um episódio curioso ocorrido durante a gravação do tema “O romance de Diogo Soares”, “uma canção muito bonita, circular, sem grandes pólos e com muito texto, que não foi tocada muitas vezes na estrada porque o Fausto se esquecia geralmente da letra”. “Para esta canção”, conta, “fui buscar umas raparigas do nosso grupo, o GAC, só que na altura eram todas vozes baixas, contraltos e meio-tenores e o Fausto queria cantar noutro tom, melhor para ele, um bocadinho agudo de mais para elas. Como não conseguimos chegar a uma afinação justa, resolvemos utilizar o truque de baixar as vozes meio tom no gravador. O que alterou um bocadinho o timbre. Deu um efeito engraçado mas não apreciam as vozes delas. Ficou registado na ficha como o ‘coro dos meninos do meio tom’”.

Como é

Sobre esta obra há quem diga que saiu antes de tempo. Que o seu autor nunca conseguirá vencer o estigma de ter feito um disco perfeito, como se isso fosse uma maldição e Fausto estivesse condenado a que tudo o que fez depois fosse sujeito a uma comparação impiedosa. Que é um marco da história da música popular portuguesa. Tudo isto é verdade e bom seria que o seu autor, em vez de contemplar os feitos do passado, optasse pela ruptura e arriscasse novas partidas. Porque “Por Este Rio Acima” é um objecto único e irrepetível. Raramente tantos factores positivos se conjugaram de maneira a resultar num álbum onde é impossível detectar falhas. Tudo nele bate certo. Em primeiro lugar, o álbum faz a síntese coerente da música tradicional portuguesa com a modernidade. “Por Este Rio Acima” constrói-se, nos temas mais balanceados, sobre as fundações rítmicas das chulas, do corridinho, até do fado. E sobre outros chãos onde Portugal deixou sementes, em África, no Oriente, no Brasil. Mas o que se ouve é algo de original que se projecta no futuro e numa atitude de puro experimentalismo, no sentido de pesquisa de novas formas e sonoridades. Depois é uma lição de história viva, na maneira como Fausto transformou a “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto em qualquer coisa que toca de perto e com muita força na sociedade portuguesa actual. Há a aventura mas também a miséria. O tom épico e a farsa. O sonho e a mordacidade crítica. “Por Este Rio Acima” é uma viagem pelos mares, mas também, como se diz no disco, "por cima dos pensamentos”. Saga heróica onde a visão interior serve de bússola, como mostra a bela ilustração da capa. É um disco imbuído de felicidade, onde tudo encaixa de maneira natural, fruto, em parte, da rodagem anterior à gravação e do extremo cuidado posto nos aspectos técnicos. E se hoje a maior parte das pessoas trauteia as melodias irresistíveis de “O barco vai de saída” e “Navegar, navegar”, a verdade é que são os temas mais lentos, como o psicadelismo oriental de “Porque não me vês”, a dor solitária de “O que a vida me deu” ou a antológica cena de “interiores” que é “Como um sonho acordado”, que deixam marcas mais profundas. Um álbum de infinitas descobertas.

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