26/05/2009

Peter Hammill - Everyone You Hold

Sons

31 de Outubro 1997
POP ROCK

Peter Hammill
Everyone You Hold (8)
Fie, distri. Megamúsica

O homem ou é um santo ou um louco. Chegado aos 49 anos de idade e ao 39º álbum da sua discografia (incluindo toda a discografia com os Van Der Graaf Generator), Peter Hammill continua sem ceder a nada nem ninguém, na construção de uma das mais sólidas obras musicais e poéticas deste século. “Everyone You Hold” corresponde ao grupo dos álbuns intimistas deste compositor, poeta, arranjador, produtor, guitarrista, pianista e cantor, na linha de “Fireships”, mas o que nele impressiona é a frescura de composição e, acima de tudo, a nobreza do canto e o rigor iluminado da arquitectura. Não é um álbum de gritos e revolta, mas um catálogo detalhado de subtis mutações interiores, no qual Hammill coloca como quer uma voz de cambiantes cada vez mais ricos, ao serviço de uma verdadeira iniciação, onde a vida e a música se confundem num todo. Ainda e sempre num confronto heróico contra o tempo e as suas marcas (a série de fotografias da capa é já, toda ela, um manifesto de exposição e de entrega), numa guerra sem quartel que, há muito, os deuses apadrinham. Instrumentalmente, predominam as guitarras corais, a electrónica acetinada, sábios pormenores de estúdio e uma rítmica que prima pela discrição. “Nothing comes” recua aos tempos doridos de “Over”, com o violino de Stuart Gordon a raiar os limites da tragédia, mas esta é apenas uma das muitas lágrimas e sorrisos que fazem de “Everyone You Hold”, afinal, uma sublime declaração de amor. Os fiéis reconhecerão cada inflexão da voz, bebendo cada sílaba dos poemas e sentindo na pele as mesmas dores do artista. Os outros ainda estão a tempo de entrar no mundo, sem igual, de Peter Hammill.

Stephan Micus - The Garden Of Mirrors

Sons

31 de Outubro 1997
POP ROCK

Stephan Micus
The Garden of Mirrors (8)
ECM, distri. Dargil


“The Garden Of Mirrors” é o 13º álbum deste músico alemão cuja obra se tem vindo a desenvolver, desde o início, na ECM. Passo a passo, de instrumento em instrumento (e, até agora, já se inventariaram 30, usados ao vivo ou em disco pelo músico), Stephan Micus tem vindo a criar uma sonoridade única, marcada pela religiosidade e pelo silêncio. Ora mais próximo do Oriente e do Zen, como em “Koan”, “Ocean” ou “Twilight Fields”, ora da mística cristã, incluindo as suas várias heterodoxias, como no recente “Athos”, sempre Micus evoluiu no sentido de uma depuração última, na procura da máxima simplicidade com um mínimo de meios. Desta feita a ênfase instrumental é posta na harpa “sinding”, do Oeste africano, continuando uma prática fundamental de Micus, de agarrar na essência de cada instrumento, servindo-o e servindo-se dele numa ascese sem fim. Em “The Garden of Mirrors”, a influência africana do tema inicial dilui-se progressivamente numa série de mantras subtis que tanto se podem manifestar no canto (faceta cada vez mais explorada por Micus) como nas respirações espirituais do “tin whistle”, do sho e do shakuachi. A cada audição percebem-se subtis ordens interiores e articulações inusitadas no modo como Stephan Micus dispõe as moléculas do seu sistema musical. Tudo conflui para a elevação e para a luz. Não é new age. Não é world music. “The Garden of Mirrors” é verdadeiramente um farol a indicar-nos a fonte de todas as músicas.

"Quando vejo o abismo sou o primeiro a saltar" [Paulo Bragança]

Sons

24 de Outubro 1997

Paulo Bragança, no CCB

“Quando vejo o abismo sou o primeiro a saltar”

O rosto lívido. Um espectro. A capa de Coimbra, levantada sobre o pescoço, sugere o vampiro, o sugador de sangue. O ambiente é gótico, arrepiante. O novo fado de Paulo Bragança, que amanhã se apresentará no Grande Auditório do CCB, atrai pelo lado obscuro. O “Fado falado”, de Villaret, fala agora do problema da heroína. No final, o fadista sai de si mesmo, numa busca ávida de luz.

PÚBLICO – Como vai ser a estrutura do espectáculo?

Paulo Bragança – É quase uma peça de teatro. Há um personagem que está em conflito consigo próprio e que vai, à medida de cada tema, pensando se fica nas raízes do fado ou se as subverte. O começo vai ser com fado puro, embora com algumas dissidências em termos verbais e musicais. Depois surgem momentos de conflito. No “Fado do herói” já há, quase, um aviso à nação. A seguir é o “Adeus”. “Adeus pátria linda, adeus querido lar, adeus Tejo amado até eu voltar”, aí o personagem já está numa galera, seguindo-se um processo interior, com nova quebra e dois temas intimistas, “Pecado I” e “Pecado II”, até se chegar a uma transnacionalidade, uma “transfusogressão” (fui eu que inventei a palavra), onde surgem temas que não são portugueses nem sequer são cantados em língua portuguesa. Dois temas na língua “roman”, dos romenos, uma língua cigana. É a procura do singular no universal, sem perder as raízes. Até se chegar ao último tema que se chama “Névoa”, onde se diz que “há sempre entre mim e o mundo uma névoa que às vezes me ataca e me faz refém de uma solidão tão fria que não me dá trégua, guardador de um cofre onde não há vintém”. As palavras são do Carlos Maria Trindade com música minha. É já um novo ser, que não opina, não julga, é só um “voyeur” que observa tudo de cima. O corpo não existe, só existe um ser pensante. Quase uma diáspora kafkiana.
P. – Falou há pouco de uma “viagem” à Roménia. É impossível não pensar na célebre personagem do Conde Drácula que assombra a sua apresentação...
R. – Na origem, não foi propositado. Essa ligação fez-se recentemente. É a ligação ao sangue. Depois, a música cigana é tão fado como o nosso Fado. Desde miúdo, quando era “teenager”, que comecei a estudar romeno sozinho, de modo a conhecer melhor alguns dos poetas deles. Mas não é o terror que me assusta, vejo o terror apenas como um aspecto fantástico, como a ficção científica.
P. – O seu espectáculo centra-se no lado mais sombrio do fado...
R. – Se reparar, a capa de Coimbra tem a ver com isso. Por acaso a capa que uso agora é mais vampiresca... Uma capa, quando existe, é para guardar qualquer coisa escondida, é um mistério. O estudante de Coimbra também transporta em si algum desse vampirismo. Ou devia...
P. – Que tipo de envolvimento com o público procura criar?
R. – De um modo geral as pessoas ficam desconcertadas. Pela positiva. Não se sentem assustadas mas, talvez, intimidadas. Embora houvesse quem sentisse realmente medo e se agarrasse à cadeira... Porque o medo também suscita fascínio.
P. – E o Paulo Bragança, não se auto-sugestiona com a personagem que criou?
R. – Quando vejo o abismo sou o primeiro a saltar. Não tenho medo. Mas tenho respeito pelo medo.
P. – Presumo que, cada vez mais, a sua relação com os puristas do fado é conflituosa?
R. – Eles, à minha frente, nunca me negam. Dão uma no cravo e outra na ferradura. Eu até percebo a posição deles. Mas isto não é nada contra eles, mas sim contra a estagnação do fado. Enquanto que eles, por vezes, me atingem directamente, eu não os procuro atingir a eles. O que procuro atingir é a consciência colectiva nacional.
P. – Que tipo de som se poderá escutar amanhã no CCB?
R. – Um som estranho. Com um compromisso entre a ciência e um lado acústico. Guitarras portuguesas lado a lado com “samplers” e tecnologia MIDI.
P. – De que modo é explorada a tal teatralidade que há pouco referiu?
R. – Por exemplo, abro com o “Fado falado”, onde reverti o texto, pegando nele como símbolo do teatro e transformando-o num monólogo, com uma nova interpretação sonora e textual, bastante dissidente. Por isso lhe chamei “Fado falado mudado”. Aproveito para falar do problema da heroína. É um texto bastante duro, em que chamo as coisas pelos nomes, numa história que de facto se passou na Meia-Laranja. Em termos formais, ouvi muitas vezes o original do Villaret. A minha versão é codificada ao milímetro, sílaba por sílaba, metricamente igual.
P. – Qual é a sua atitude perante o problema da toxicodependência?
R. – Não estou a julgar ninguém mas a constatar uma realidade. Algo de grave que se está a passar no país. Ninguém diz que o rei vai nu. Não há nenhuma família portuguesa, hoje em dia, que não tenha essa mácula, seja por um filho ou por um primo. E também verifico que a polícia só apanha cocaína e haxixe. Heroína nunca se apanha. Chega-se a uma ladeia, como eu já cheguei – e isto é o que me dizem porque eu não preciso nada dessas merdas – a uma aldeia de Trás-os-Montes, seja onde for, no local mais recôndito, queres um charro, não há. Ou se houver, custa dez contos a grama. Cocaína pode custar 25 contos uma grama. E a heroína custa mil escudos e há a toda a hora. 24 horas por dia, nas barbas da polícia, em todo o lado. O Casal Ventoso é uma imagem pálida do que se está a passar no resto do país. E o mais grave é que a heroína é gerida por questões de Estado, por alguém... Por isso é que eu canto uma parte que diz “mãos de sangue na seringa que rasgada a veia pinga, mãos de Estado maquilhado, mãos de serra e queima a terra, mãos bem vendidas, muito finas, mãos vendadas a arrecadar, não há paixão, crime ou morte onde há um filão a correr forte”... É uma situação que me incomoda. Repito: é preciso dizer que o rei vai nu.
P. – Uma forma velada de manter os jovens sob controle?
R. – É uma forma de adormecer as pessoas. E não são só os mais novos. As velhas, neste país, andam todas drunfadas, porque o que se vende mais no país são drunfes e é o que tem desconto da Assistência Social. Não há uma velhinha que não tenha um drunfe em casa, um Xanax, um valium, um ansiolítico qualquer. Depois, os putos têm heroína. Putos de 16 anos, que eu conheço, que picam, nem sequer fumam, picam! Interessa a alguém, de facto, que o povo ande acalmado. Dêem heroína ao pessoal, para se tornarem nuns energúmenos que não chateiam!...

Morphine - B-Sides And Otherwise

Sons

24 de Outubro 1997
REEDIÇÕES - POP ROCK

Além disso e de outra maneira

Morphine
B-Sides and Otherwise (8)
Ryko, distri. MVM


Para quem gosta dos Morphine mas confessa estar já um pouco enfastiado com o estilo, demasiado balizado, do grupo, este poderá ser o álbum de reconciliação. Não que a música seja substancialmente diferente da dos álbuns anteriores ao ponto de justificar uma nova abordagem, mas a verdade é que “B-Sides and Otherwise” (“B-Sides” como “Besides”, para dar “Além disso e de outra maneira”) revela algumas facetas menos conhecidas dos Morphine, comparadas com a estética mais condensada dos seus álbuns oficiais.
Constituído por “singles”, sessões ao vivo na rádio e contribuições para bandas-sonoras e colectâneas (“Kerouac: Kicks Joy Darkness” e “Outstandinngly Ignited”), “B-Sides and Otherwise” começa por contradizer esta aparente dissidência, no modo como o sax de Dana Colley introduz logo de início as coordenadas habituais do grupo, em “I have a lucky day” e “All wrong”, lufadas de ar quente emitidas por uma turbina, embora neste último tema, gravado ao vivo em estúdio, seja óbvio que o saxofonista se sentiu mais liberto para discorrer num registo próximo da pura improvisação jazzística.
O campo sonoro alarga-se em “Bo’s veranda”, da banda-sonora de “Get Shorty”, para os lados da guitarra de Bill Frisell e da “Downtown” em geral. “Mile high”, de outra banda-sonora, “Things to do in Denver when you´re dead”, é terrível e desavergonhadamente “funky”, enquanto “Down love’s tributaries” (CD single retirado das sessões de “Cure for Pain”) articula a equação da electrónica com os “blues”. “Kerouac” é uma homenagem em forma de declamação a um dos papas de “beat generation” e “Sundayafternoonweightlessness” e “Virgin bride” (tema-bónus da versão australiana de “Like Swimming”) aproximam-se, respectivamente, dos universos de John Lurie e Nick Cave, para nos dois derradeiros temas, “Mail” e “My brain”, os Morphine se voltarem para formas paramusicais onde as vozes, de novo em tom de declamação e filtradas por processos electrónicos, adquirem um outro tipo de proeminência. Registe-se ainda a inclusão de “Pulled over the car”, da versão japonesa de “Yes”, e o CD single “Super sex”. Consumada a dieta, os ouvidos de novo arejados, aguarda-se ansiosamente a próxima onda incandescente de “low rock”.

Cream - These Were The Days

Sons

24 de Outubro 1997
REEDIÇÕES - POP ROCK

Leite do dia

Cream
Those Were the Days (7)

4xCD Polydor, distri. Polygram

“Those were the days” cantava Mary Hopkin, uma loirinha protegida de Paul McCartney, em 1968. Nesse mesmo ano os Cream lançavam o duplo “Wheels of Fire”, lançando mais uma acha para a fogueira do Psicadelismo. Esses foram, de facto, os dias de uma das bandas seminais dos anos 60, todos os dias do ano compreendidos entre 1966 e 1969. Eric Clapton, Jack Bruce e Ginger Baker formavam uma daquelas equipas que, enquanto funcionaram, eram imbatíveis, revolucionando com a sua música os alicerces do rock. Uma música que aliava a energia de um formidável “power trio” com a subtileza de canções melodicamente esculpidas em filigrana. Foi nesse espaço de tempo que os Cream gravaram a sua obra original: “Fresh Cream”, de 1966, “Disraeli Gears”, de 1967, um dos pilares do “Verão do amor” e dos devaneios psicadélicos mais consistentes, “Wheels of Fire”, de 1968, constituído por dois discos, um de estúdio, outro ao vivo, e “Goodbye”, de 1969, contendo três temas de estúdio e o resto material de concerto. A totalidade destes discos já se encontrava disponível, a preços baixos, no mercado nacional. No ano passado saiu “The Very best of Cream”, uma muito interessante colectânea de temas remasterizados que somavam uma dimensão extra à música do grupo.
Não se compreende, por isso, muito bem, a oportunidade do lançamento da presente caixa de 4 CD, divididos em dois com material de estúdio e dois com actuações ao vivo, compreendendo a totalidade de “Fresh Cream”, “Disraeli Gears” e “Wheels of Fire”, mais excertos de “Goodbye” e dos dois volumes de “Live Cream”, editados pela primeira vez, respectivamente em 1970 e 1972. Os temas não foram remasterizados, sendo a qualidade de som praticamente idêntica à das edições já existentes. Não sendo, pelos motivos apontados, material essencial, “Those were the days” apresenta, porém, pormenores de interesse, como sejam a inclusão, a abrir o pacote, do primeiro “single” dos Cream, “Wrapping paper” (mas que já integrava o alinhamento de “Fresh Cream”...), a par de outro sete polegadas, “Anyone for tennis”, mais os inéditos “Lawdy mama”, a “demo” “The clearout” e o “jingle” publicitário “Falstaff beer commercial”. Há ainda uma versão de “Passing the time” diferente da que aparece no alinhamento de “Wheels of fire” e versões alternativas de temas ao vivo, “NSU”, “Toad” (com mais um minuto de música acrescentado aos 16 que já tinha em “Wheels of fire”...) e “Sunshine of your love”, um dos clássicos do grupo nunca antes editado em versão de concerto. Fica ainda a leitura do indispensável livro de 48 páginas, a fazer valer o dinheiro dispendido na caixa, e o prazer de voltar a ouvir a grande música dos Cream, em que o virtuosismo de excepção dos seus três elementos nunca ofuscou a originalidade do seu trabalho de composição. Quanto a optar pela discografia dispersa ou por esta versão compactada, isso envolve já uma ordem de critérios que escapa à excelência da matéria musical.

18/05/2009

Barbara Gogan & Hector Zazou - Made On Earth

Sons

17 de Outubro 1997
DISCOS – POP ROCK

Barbara Gogan & Hector Zazou
Made on Earth (5)
Crammed, distri. Megamúsica

Por uma malfadada coincidência “Made On Earth” surge imediatamente a seguir ao novo dos Portishead, não saindo a ganhar da comparação. Hector Zazou – e é dele que falamos em primeiro lugar porque a senhora que já cantou nos Passions e que dá voz a este disco, não passa aqui de objecto decorativo – transformou-se num músico politicamente correcto cujos inegáveis talentos estão hoje em dia exclusivamente ao serviço do mercado. Está na mesma situação que Ryuichi Sakamoto ou Michael Nyman, todos eles a merecerem férias. “Made on Earth” é um daqueles discos que investe num modelo de produção corrente, neste caso o “trip hop” (género, aliás, também já a pedir reforma) onde a substância é substituída pelo estilo. Em termos vocais, Barbara Gogan recupera algumas das fórmulas tanto dos Portishead como dos anémicos Smoke City, mas de uma forma preguiçosa, arrastando-se, faixa a faixa, num lamaçal de total ausência de criatividade. As ideias de Zazou limitam-se a pôr em prática um trabalho de ornamentação, sem dúvida meticuloso e de inexcedível bom-gosto, mas onde volta a ser evidente uma notória falta de vontade em inovar dentro dos modelos seleccionados. O que vale por dizer que “Made on Earth” se esgota nos méritos da produção e da gravação – mesmo com o envolvimento de gente como Peter Scherer, Brendan Perry, Marc Ribot – sem que nele se vislumbre algo do que fez de Hector Zazou um músico diferente, tanto nos ZNR como em álbuns inovadores como “Noir et Blanc” (com Boni Bikaye), “Reivax au Bongo”, “Géographies” e “Géologies”.

Bowery Electric - Vertigo

Sons

17 de Outubro 1997
DISCOS – POP ROCK

Bowery Electric
Vertigo (7)

2xCD Kranky, distri. MVM

“Beat”, álbum do ano passado dos Bowery Electric, constitui, até à data, um dos objectos mais originais e corrosivos saídos da linha de montagem do pós-rock. Na sequência de uma corrente agora muito em voga, “Vertigo” surge como uma colecção de remisturas, na maioria extraídas de “Beat”, por “homenageantes” mais ou menos conhecidos, alguns deles inseridos na mesma cena do pós-rock. Estão neste caso os Third Eye Foundation, que recentemente editaram o álbum “Ghost”, ou, numa área mais próxima da electrónica industrial, os Main. Completam a lista de remisturadores os Chasm, Osymyso, Witchman, Immersion, Dunderhead e Twisted Silence. “Vertigo” soa um pouco em relação a “Beat” como “Resport”, outro álbum de remisturas, soava em relação ao “Weekend” dos Kreidler, ou seja, o som ganhou espaço, uma dose reforçada de electrónica e uma respiração mais ampla o que, neste caso, fez desaparecer algum do fascínio provocado pela atmosfera opressiva de “Beat”. Entre as nove remisturas aqui incluídas – estranhamente divididas em dois CD, o primeiro com apenas 18 minutos e três faixas, duas versões de “Fear of flying” e “Black light”, enquanto o segundo se estende por 56 – destaca-se a opção pela exclusividade dos sintetizadores e pelo experimentalismo dos Dunderhead, numa versão reptilínea de “Black light”, na linha da electrónica fria dos Microstoria.

Patti Smith - Peace And Noise

Sons

17 de Outubro 1997
DISCOS – POP ROCK

Patti Smith
Peace and Noise (6)

Arista, distri. BMG

Volvido pouco mais de um ano sobre a edição de “Gone again”, que pôs cobro a um interregno discográfico de oito anos, Patti Smith regressa com um novo álbum onde a morte volta a ser o tema dominante. Se “Gone Again” era uma espécie de epitáfio à morte do seu então marido Fred “Sonic” Smith, “Peace and Noise” é, segundo a sua autora, a expressão de preocupações que o casal partilhava antes da sua trágica separação. A sida, o suicídio religioso colectivo da seita Heaven´s Gate ocorrido no ano passado, um episódio da guerra do Vietname são alguns dos temas abordados num álbum que faz dedicatórias a outros dois artistas desaparecidos, William Burroughs e Allen Ginsberg, ícones poéticos de toda a obra pretérita da autora de “Horses”. Trabalho ainda e sempre marcado pelo cinzento e pelo luto (a foto da capa interior mostra o interior de uma capela em ruínas), “Peace and Noise” está todavia mais marcado pela raiva do que o seu antecessor. É “rock’n’roll” carregado de poesia oscilando entre a declamação pura de “Spell” e os dez minutos de improvisação, ao vivo no estúdio, de “Memento mori”, na tradição dos maiores excessos de “Radio Ethiopia”. A verdade é que se é inegável a sinceridade com que Patti Smith se entrega ao exorcismo da dor originada pela perda, não o é menos que, cada vez mais, ela parece estar a ficar amarrada a esse diálogo dorido com os seus fantasmas.

12/05/2009

"Um tipo a bater numas cordas, a fazer um som e a cantar" [Carlos Martins & Vasco Martins]

Sons

10 de Outubro 1997

Carlos e Vasco Martins lançam “Outras Índias”

“Um tipo a bater numas cordas, a fazer um som e a cantar”

Carlos e Vasco Martins partilham uma filosofia comum, com raízes no zen. Recusam as etiquetas. Cabo Verde é o mundo. E o jazz um ponto – ou uma ponte – de partida para o caminho do Oriente que ambos perseguem. Em “Outras Índias”, tudo se prende a algo ancestral: “Um tipo a bater numas cordas, a fazer um som e a cantar.”

Em “Outras Índias” Carlos Martins e Vasco Martins fizeram, com sucesso, a fusão das raízes musicais de Cabo Verde com um discurso contemplativo que não hesitou em voltar as costas ao jazz. Para Carlos Martins, é a concretização do seu ideal de uma lusofonia verdadeiramente universal. Para Vasco Martins, uma abertura no seu refúgio “new age” com sede no Atlântico. Uma descoberta a dois.

PÚBLICO – Quando é que se encontraram e como surgiu a ideia de fazer este disco?
CARLOS MARTINS
– Conhecemo-nos há uns anos através de um amigo comum, o João Freire, uma pessoa que sempre se interessou por Cabo Verde. Numa ocasião em que ele e o Vasco estiveram em Portugal, andaram à minha procura, só que o encontro não se proporcionou. Nessa altura eu tocava com a Constança Capdeville e com a Olga Pratts, que também me disse que o Vasco era de Cabo Verde e compunha. Fiquei com curiosidade em saber quem era, ainda por cima alguém com o mesmo apelido que eu... Até que nos encontrámos finalmente em Roterdão, numa conferência sobre a diáspora cabo-verdiana. Eu ia falar sobre o que os emigrantes podem fazer fora do seu país, em termos culturais. O Vasco ia falar da música de Cabo Verde. Desse primeiro encontro resultou uma ida a Amesterdão, durante um dia inteiro. Esse dia inteiro fez este disco. Desde a visita ao museu Van Gogh até às conversas que tivemos. Chegámos ao hotel e tocámos um bocado. Vimos que as coisas funcionavam.
VASCO MARTINS – Eu tinha levado apenas uma guitarra para fazer uma demonstração da música de Cabo Verde.
P. – Já conhecia a trilogia atlântica, “Southbound Music”, do Vasco Martins?
C.M.
– Já tinha ouvido algumas coisas e não era o tipo de música que eu queria fazer.
P. – E o Vasco, já tinha ouvido antes a música do Carlos?
V.M.
– Era um desconhecido, só sabia que era um músico de jazz com talento.
P. – Como é que os universos de ambos se ligaram? Esse passeio de que falaram deve ter sido bonito, mas depois como é que a coisa funcionou no estúdio?
C.M.
– A vantagem é que tudo foi articulado em Cabo Verde. Estive lá cinco dias antes de vir para cá. Esses cinco dias é que fizeram com que o som se consolidasse. O que se passa é que há uma alma dentro de cada um de nós que junta, que roça numa extremidade do mesmo universo. Um universo de gostos comuns, apetências comuns e sonoridades comuns. Depois sobressaiu ainda uma certa visão zen da música, uma certa orientalidade.
P. – Os discos do Vasco não chegam ao Continente...
V.M.
– Gravo pela Celluloїd francesa, mas os discos são mal distribuídos em Portugal. Saem em Espanha, nos Estados Unidos, na Alemanha. Continuo a fazer música electrónica, mas também sinfónica e outras coisas.
P. – A música da sua trilogia é bastante universalista. De que forma trabalhou nela a influência da música de Cabo Verde?
V.M.
– Há duas formas de ver a questão. Uma é a intuição do ambiente onde o artista vive. A outra é o aproveitamento das raízes, das tradições. Eu utilizo ambas. Na música da trilogia, está presente a temática de Cabo Verde, mas não a utilizo de uma maneira objectiva, dou pinceladas, sou mais um impressionista.
P. – “Outras Índias” é um disco de uma grande serenidade, bastante diferente do seu discurso mais jazzístico...
C.M.
– Uma das coisas que mais gostei de discutir a propósito deste disco é o facto de existir uma poesia do mundo, ligada a uma certa dramaticidade da vida, que é algo constante em mim. Escrevo desde miúdo. Quando andava na quarta classe, a minha alcunha era o “Camões”, porque escrevia versos. E continuo a escrever, só que agora mais música do que texto. Mas há a presença constante da poesia. Logo, não sou um único Carlos Martins, nem quero sê-lo. Não tenho a mínima culpa de que as pessoas precisem mais de um único Carlos Martins, para se equilibrarem na sua crítica.
P. – O Vasco Martins funcionou como um catalisador dessa sua visão poética?
C.M.
– Este disco só foi possível de fazer entre mim e o Vasco. Por isso é que arranjámos um nome, “Outras Índias”, que quer dizer exactamente “outras coisas”, não digo quais, nem interessa explicar.
P. – A filosofia inerente a este disco não anda longe da partilhada por Rão Kyao, ou anda?
C.M.
– A orientalidade não é um factor que me inspire musicalmente, linearmente, do tipo “eu penso oriental, a música é oriental”. A orientalidade está em mim como sensibilidade. O que se passa aqui é que ando à procura de outro caminho, do Caminho do Oriente. À procura do fado, da morna e do choro lento. Mas sem tudo o que o Vasco tem de Cabo Verde eu não tocaria desta maneira. É uma relação interactiva.
P. – Este projecto enquadra-se na estética geral da “new age”?
V.M.
– A “new age” é muito contestada na Europa porque é tida como um apêndice de filosofias orientalistas americanas. Hoje em dia, a “new age” já não é isso. Há bons músicos de “new age” a fazerem bons trabalhos, alguns deles músicos de jazz.
P. – Precisamente, há, sobretudo da parte dos puristas, quem não veja com bons olhos essa “fuga” de muitos músicos de jazz para essa outra área musical...
C.M.
– Não sou preto, não sou americano, não vivo em Nova Iorque, não tenho que representar coisa nenhuma do jazz, tenho é que adaptar à minha música e à minha tradição tudo aquilo que aprendi do jazz, que é uma das linguagens mais belas deste século e que se tornou universal pela capacidade de improvisar e sair do seu próprio mundo e de elaborar mundos novos a uma velocidade vertiginosa. Para mim este disco é um descanso. É uma atitude assumida. Há quanto tempo é que existem uma guitarra e uma voz a cantar? É ancestral. Antes da “new age”, antes do jazz, existiu sempre um tipo a bater numas cordas, a fazer um som e a cantar. É isso que se passa neste disco, estou-me perfeitamente nas tintas para o resto. Isto para mim representa um tipo a cantar sobre as harmonias de umas cordas. É antigo, é o que eu sinto e é o que praticava quando era miúdo, com uma flautazinha no jardim.

Carlos Martins & Vasco Martins

Sons

10 de Outubro 1997

Carlos Martins & Vasco Martins
Outras Índias (8)

Nortesul, distr. Valentim de Carvalho

Carlos Martins, saxofonista de jazz e conceptualista atento à fusão dos sons do universo, cruzou-se com Vasco Martins, navegante solitário do Mindelo, Cabo Verde, dos sintetizadores e das miragens “new age”, autor de uma trilogia intitulada “Southbound Music”. Decidiram gravar juntos, numa ponte entre duas solidões – a do Alentejo e a do Mindelo. Em busca de “Outras Índias”, lugar imaginário apenas para quem não se consegue libertar das amarras da estagnação, da intolerância e da cegueira. “Outras Índias” é um lugar – esse lugar “onde mora a beleza”, nas palavras do saxofonista – que não se encontra no jazz nem na música tradicional de Cabo Verde. Paisagem contemplativa e intimista, espaço amplo de diálogo entre os saxofones tenor e soprano de Carlos Martins com os sintetizadores e guitarra acústica de Vasco Martins (não se procurem neles outro parentesco senão o da cumplicidade musical...), “Outras Índias” avança devagar, saboreando cada nota e cada pausa. O estado de alma pode estar próximo do de um Rão Kyao só que aqui se parte para uma aventura maior. Meditativo, caloroso, exótico, deve ouvir-se com a mesma liberdade de espírito com que foi criado. O saxofone de Carlos Martins deixa-se inebriar pelas delícias mais subtis do tonalismo (Karl Jenkins, dos Soft Machine, convertido a Canterbury...), enquanto Vasco Martins sonha contrapontos de guitarra ou tece discretas tapeçarias electrónicas. Uma geografia a descobrir.

Robert Wyatt - Shleep

Sons

10 de Outubro 1997
DISCOS – POP ROCK

Robert Wyatt
Shleep (10)

Hannibal, distr. MVM

Autor com um ritmo e um tempo muito próprios, Robert Wyatt demorou cinco anos até voltar a entrar em estúdio para a gravação de um novo álbum, após a edição, em 1991, de “Dondestan”. Valeu a pena a espera. “Shleep” (aglutinação de “Sleep” com “Sheep”) é o seu melhor trabalho desde o mítico “Rock Bottom”, uma daquelas obras que figuram por direito próprio na lista dos melhores de sempre da música popular.
Deixando para trás a sua veia mais politizada, presente em álbuns como “Nothing Can Stop Us” e “Old Rottenhat” ou em canções como “Shipbuilding” (com Elvis Costello) e “Biko”, Wyatt volta a mergulhar num universo onírico marcado, mais do que pelas suas preocupações sociais, por um estado de angústia quase crónico. Canções nascidas de noites e noites de insónia, outras assoladas pelo sonho e pelo voo das aves que habitam nas imediações da casa onde o músico e a sua mulher, Alfreda Benge (autora dos textos e da capa de “Shleep”), vivem actualmente, junto a um estuário, outras voando ainda mais para longe e para cima, numa fuga para outro mundo, como no tema “Alien”: “Durmo numa asa/sobre as nuvens de chuva/soprada pelo vento/ (sem raízes na terra)/nenhum solo por baixo (…)/Será que venho de Vénus? (alto, cada vez mais alto).”
Robert Wyatt esteve sempre fora. Quando os Soft Machine faziam furiosamente jazz (noutra obra-prima, o duplo “Third”), ele revolucionava a canção pop com um lado inteiro de “The moon in June”. Nos Matching Mole mostrou que estava fora do progressivo e muito à frente dele. Acabou mesmo por cair para fora de uma janela, se nos é permitido fazer um pouco de humor negro. “Rock Bottom”, gravado pouco tempo depois desse acidente, que o tornaria paraplégico, estava fora de tudo. Era um mundo de dor redimida pela fuga em direcção à infância e ao “nonsense”. “Shleep” é ainda a permanência nesse mundo infantil (a capa é um portento) de sonhos, lugar paralelo de criação, mas agora repartido com amigos como Brian Eno, Phil Manzanera e Hugh Hopper e enriquecido pela experiência, senão pela falência dos ideais políticos desde sempre perfilhados pelo músico.
Em termos sonoros, são óbvias algumas influências. De Eno, logo no tema inicial (numa curiosa inflexão pelas suas aventuras com os Cluster…), ou de Charles Hayward (ex-This Heat e Camberwell Now, outro radical de esquerda, que, ainda nos anos 70, fez parte de uma das bandas da cena de Canterbury, os Quiet Sun, ao lado de Phil Manzanera, justamente…), em “Was a friend”. As nuvens de sopros (com Annie Whitehead e Evan Parker como dignos sucessores de Mongezi Fesa e Gary Windo), mostrando o quanto aprenderam com as lições de Carla Bley, as vocalizações fragmentadas, o piano martelado, num paroxismo emocional em reverência a Cecil Taylor, remetem para ambiências muito próximas de “Rock Bottom”. “Alien”, com o seu fundo aquático de sintetizadores, é semelhante ao utilizado em temas de “Old Rottenhat”. Com a diferença de que agora Robert Wyatt vê as coisas e a si mesmo através de um novo ângulo, do alto, com a distância permitida pelo sonho.
Permanecem e renovam-se um sentido inapto de experimentação, aliado a um lado “naїf”, e uma intuição melódica única (a forma de cantar de Robert Wyatt já fez mais do que uma pessoa chorar), num conjunto de dez canções absolutamente admiráveis. “Há liberdade em não ser?/Há liberdade em vir a ser?/Estar no ar/mas não ser o ar (…)/Sem ter nascido nem ser deixado para morrer/ (…) Se tivesse sido livre, poderia ter escolhido não ser eu”, canta em “Free will and testament”, um dos temas mais tocantes de “Shleep”. Obviamente, um dos álbuns do ano.

Lida Husik - Fly Stereophonic

Sons

10 de Outubro 1997
DISCOS – POP ROCK

Lida Husik
Fly Stereophonic (8)
Alias, distri. MVM

A música pop, por mais ínvios que sejam os seus caminhos, possui os seus arquétipos. Nos anos 60 os Beatles e os Kinks, em Inglaterra, e os Beach Boys e os Zombies (toda a gente deveria ser obrigada a fazer um doutoramento em torno dessa verdadeira enciclopédia da arte pop que é o álbum “Odessey & Oracle”), nos Estados Unidos, estabeleceram as regras pelas quais uma canção pop digna desse nome se deve reger. Claro que as regras foram feitas para serem quebradas e, neste campo, não têm faltado exemplos, ao longo das últimas três décadas de produção pop, de David Bowie a Robert Wyatt, de Brian Eno (dos primeiros álbuns) aos Residents. Em Inglaterra existiu sempre algo mais, a tal “englishness”, uma combinação, com percentagens incertas, de excentricidade, maneirismo e uma atracção fatal pela melodia perfeita, carregaram este espírito da afectação “mod” até à “Brit pop” dos nossos dias. Nos anos 80, um grupo, sintetizou em si tudo o que a pop inglesa tem de melhor: os Monochrome Set. E falamos deles porque os Lida Husik, ou Lida Husik, a vocalista do grupo, são os Monochrome Set dos anos 90. “Fly Stereophonic”, da estética da capa ao “design” sonoro de todas as faixas, recupera as linhas de sinuosa e decadente elegância do grupo de Bid e Lester Square, ao qual se devem, pelo menos, três obras capitais, “Strange Boutique”, “Love Zombies” e “Eligible Bachelors”. Lida Husik não esconde a devoção pelos Monochrome Set, incluindo no alinhamento de “Fly Stereophonic” uma versão surreal de “Ein symphonie des grauens”. Na ficha de agradecimentos também não se esqueceu de mencionar Bid, o único, o incomparável vocalista de ascendência indiana dos Monochrome Set. A fórmula usada em “Fly Stereophonic!”, que faz dele um brinquedo verdadeiramente atraente, passa pela ênfase posta na melodia, mas seguindo uma das tais regras de ouro da clássica pop irreverente, a imprevisibilidade aliada à doçura, a perturbação e a escuridão disfarçadas sob um vestuário colorido. Em suma: a diletância do “dandy” que vive o maior dos desastres com a fleuma de um alheamento sobrehumano. Os temas de “Fly Stereophonic” remetem para a mitologia e iconografia da adolescência, mas numa perspectiva que junta o terror cósmico com a ingestão de um copo de café com leite e a morte com os prazeres de uma cidade de chocolate. Mas a verdade dos factos diz-nos ainda outra coisa, é que Lida Husik e o seu grupo são americanos, o que acrescenta uma dimensão ainda mais oblíqua à sua música, surgindo então a segunda fonte de inspiração de “Fly Stereophonic”, os B-52’s. Ouça-se, a este propósito, uma faixa como “Soundman”, onde as linhas de guitarra e uma rítmica tipicamente Monochrome Set andam a par de uma vocalização com óbvias conotações com aquele grupo americano. “Fly Stereophonic” é uma experiência de ambientes da “twilight zone”, uma montanha-russa de alumínio polido e sintetizadores de baunilha, onde saltitam canções de algodão-doce envenenado, pintado de roxo e lilás, como “Cape fear”, “Café com leche”, “The slide”, “Dead poets”, “Dancing pants” (com uma inclusão de uma gaita-de-foles ébria) e o verdadeiro manjar para gulosos que é “Chocolate city”, pequenos clássicos a escorrer de um fim de Verão atribulado, apresentados com um excesso de requinte pela voz pristina de Lida Husik.

Fantasmas no ar [Reedições]

Sons

10 de Outubro 1997
REEDIÇÕES

Fantasmas no ar


Os coleccionadores da discografia progressiva dos anos 70 continuam a não ter mãos a medir, mesmo levando em conta que os mais ferrenhos não desistem de procurar furiosamente as edições originais em vinilo, tarefa por vezes difícil e bastante dispendiosa. Alheias a este tipo de purismo, as editoras continuam a retirar dos respectivos fundos de catálogo algumas referências que, à época da primeira edição, passaram praticamente despercebidas. Algumas destas novas reedições em compacto procuram revalorizar o produto de origem, quer através de uma apresentação e embalagem mais apelativas e contendo informação adicional, quer através da remasterização das fitas originais, de modo a melhorar significativamente as “performances” sonoras.


Os Curved Air viram, por fim, passar para o formato digital a sua obra-prima de 1972, “Phantasmagoria”. Com uma reprodução condigna da capa – uma deliciosa figura inspirada no imaginário de Lewis Carroll – e a inserção, no livrete, das letras de todas as canções. Em termos de informação, é tudo. Mas a qualidade e originalidade da música supera qualquer deficiência noutros aspectos. “Phantasmagoria” é o ponto culminante e, em simultâneo, o limite de uma música que nunca parou de evoluir nos três primeiros álbuns, começando por “Airconditioning”, mais rock e imediatista, com passagem pela delicadeza sombria de “Second Album”. Em “Phantasmagoria” há, sobretudo, uma colecção de canções perfeitas que aliavam o pendor classicista do violinista Darryl Way (“Marie Antoinette”, “Cheetah” ou a aceleração electrónica de “Ultra-Vivaldi”, prolongamento do tema “Vivaldi”, incluído em “Airconditioning”) com o experimentalismo do teclista Francios Monkman (explorado de forma magnífica no instrumental “Whose shoulder are you looking over anyway?”, um dos primeiros temas gravados por um grupo pop a utilizar um computador). Mas o que verdadeiramente projectava a identidade dos Curved Air eram as vocalizações de Sonja Kristina, cujas inclinações variavam entre dois extremos, da visceralidade de uma Grace Slick à suavidade das cantoras folk. Uma voz que tanto era capaz de demonstrar a intensidade dramática de “Marie Antoinette”, o tropicalismo de “Once a ghost, always a ghost” e o encantamento mágico de “Melinda (more or less)”, como de segredar, com a maior candura, os prazeres da masturbação feminina. Um clássico. (Warner Bros., import. Planeta Rock, 10)

Os Yes foram um dos pilares da música progressiva, odiados por uns e amados por outros. No centro do conflito esteve sempre a voz andrógina de Jon Anderson, para alguns insuportável mas para outros a incarnação do canto dos anjos. “Olias of Sunhillow”, anteriormente apenas disponível em CD em edição japonesa (que incluía uma miniaturização do autêntico livro de gravuras que era a capa da edição inglesa original, na Atlantic), é o primeiro álbum a solo do cantor e, sem sombra de dúvida, o seu melhor. Em termos formais, é um conceptual – a história da ruína e salvação de um povo estelar, salvo por um profeta que os conduz pelo espaço-tempo até outro planeta – onde Jon Anderson tocava todos os instrumentos, incluindo a harpa, que aprendeu para o efeito, e os sintetizadores. A música oscila entre estranhas invocações vocais e sequências electrónicas que antecipavam as posteriores colaborações do cantor com Vangelis. É um álbum completamente à margem da grandiloquência dos Yes, no qual Jon Anderson explanou da melhor forma a sua veia mística. (Warner Bros., import. Planeta Rock, 8).

Hesitantes entre a grandiloquência, o jazz-rock, o progressivo e o comercialismo, estiveram sempre os Greenslade, projecto de dois ex-Colosseum, o teclista Dave Greenslade e o baixista Tony Reeves (que viria a integrar a formação derradeira dos Curved Air...). “Bedside Manners are Extra” apresenta progressos em relação ao álbum de estreia, na forma como equilibra boas canções pop com instrumentais entre o jaz-rock e o “rock sinfónico” (gulp!), que servia para mostrar as capacidades virtuosísticas de todos os elementos do grupo. Um aviso: a gravação não é famosa. (Warner Bros., import. Planeta Rock, 7)

Poucos deviam conhecer, em 1970, a música dos Titus Groan, no único álbum gravado por esta simpática banda na sua curta carreira, aqui aumentado por três temas extra, incluindo os lados A e B de um “single”. Os Titus Groan faziam parte de um pacote de bandas progressivas lançadas pela editora Dawn, que incluía os Comus, Heron e Demon Fuzz, com quem realizaram digressões conjuntas. “Titus Groan” é um álbum que raramente consegue ser mais do que uma sequência de clichés do progressivo de segunda linha, tendo, porém, a seu favor a diversidade das canções, que vão da pop quase comercial ao puro psicadelismo e às muito curiosas divagações do saxofonista do grupo, cujas intervenções levavam a música para áreas invariavelmente mais criativas e tonalmente interessantes. (See for Miles, import. Torpedo, 6).

Referência ainda para a edição da totalidade da obra gravada por duas bandas folk-rock com estilos e “pedigree” diferentes. Os Tudor Lodge, um dos primeiros grupos a assinar pela Vertigo (a capa de “Tudor Lodge”, multidesdobrável, era um desperdício de cartão...), eram tipicamente progressivos, usando a “folk” como mero pretexto para alinharem a sua visão sonhadora, criada pela voz de rosas de Ann Stewart, e as guitarras acústicas de John Stannard e Lyndon Green com esporádicas inclusões de outros instrumentos e arranjos para naipes de corda e metais. A arrumar ao lado dos Magna Carta, Trader Horne e Mellow Candle. (Si Wan, import. Torpedo, 7).

Os Mr. Fox, pelo contrário, nasceram nos clubes “folk” ingleses, mas as concepções que sobre esta tipologia musical tinha o seu líder, Bob Pegg, eram de molde a marginalizar o grupo, mas capazes de agradar aos apreciadores de música progressiva e do folk-rock electrificado. A presente reedição reproduz a edição dupla em vinilo, “The Complete Mr. Fox”, lançada pela Transatlantic, que acoplava os dois únicos álbuns gravados pelos Mr. Fox, “Mr. Fox” e “The Gipsy” (um dos temas deste álbum, “Mendle”, foi retirado desta reedição por falta de espaço). O primeiro, mais declaradamente folk, continha originais harmonizações vocais de Bob com a sua então mulher Carolanne Pegg (também violinista, de parcos recursos, mas possuidora de indesmentível carisma) e uma concepção sinistra (ouça-se o título-tema, para se perceber como são os papões da “folk”) da rítmica “morris” e da “folk” inglesa em geral. “The Gipsy” é uma obra com outras ambições que integrava uma instrumentação mais vasta e eléctrica (incluindo a participação de dois antigos elementos dos Trees), cujo auge é atingido na “suite” “The Gipsy”, dividida em vários movimentos que contam a história e a viagem de um homem que persegue até ao desgosto final a sua apaixonada cigana. Trata-se de uma obra imprescindível do “folk-rock”, nas suas franjas mais obscuras. (See for Miles, import. Torpedo, 8)

10/05/2009

GOUVEIA ART ROCK - tributo

Aqui: http://www.youtube.com/watch?v=UVwj8j3gQzk Obrigado ao Samuel Jerónimo

Kate St. John - Second Sight

Sons

3 de Outubro 1997
DISCOS – POP ROCK

Kate St. John
Second Sight (6)
All Saints, distri. MVM

Nos anos 80 uma inglesa romântica chamada Virginia Astley plantou um jardim, enfiou-se lá dentro e deitou fora a chave do portão. Mas as flores cresceram e os odores aumentaram de intensidade, atraindo para o seu interior as meninas boas que buscam segurança e um tempo perdido que a pop já esqueceu. Kate St.-John, antiga vocalista dos Dream Academy, foi das que se deixaram enfeitiçar pela beleza do jardim. A solo, na estreia “Indescribable Night”, ou com Roger Eno, que a convidou para cantar à hora do chá em “The Familiar”, a música desta senhora nunca se afastou do seu local de contemplação, escondida entre os canteiros. Com Roger Eno no piano, vemos de um lado o mar e as brumas de praias desertas. De outro, um bosque de mistérios. De outro, ainda, os ecos da “chanson” de “vaudeville” (Edith Piaf assombra um tema com “J’attendrai”). De outro, por fim, a casa de espelhos de Alice. “Second Sight” desliza por vocalizações sem idade (bom, ou quase, Kate tem voz de menina frágil, hesitante nas notas, o que retira parte da força da sua música), em histórias de mansões abandonadas, murmúrios, violinos e valsas de amantes desterrados do túmulo. Tem a beleza triste das coisas antigas, um cheiro a panos velhos, a folhas mortas e a madeira envernizada. Pensando melhor, este é um jardim francês (parte do disco foi gravado em Paris), rodeado de acordeões, cultivado com a elegância geométrica dos seus mestres jardineiros. O principal dos quais é o produtor Joseph Racaille, antigo companheiro de Hector Zazou nos ZNR. Ah, mas então Satie?...

Jah Wobble - Requiem

Sons

3 de Outubro 1997
DISCOS – POP ROCK

Jah Wobble
Requiem (7)
30 Hertz, import. Symbiose

Jah Wobble não pára de nos surpreender, desta feita pela positiva. “Requiem” demonstra que o peso-pesado do baixo afinal é capaz de fazer mais que calcetar música com o seu martelo-pilão de baixas frequências. A primeira parte desta composição, inspirada na audição da música de Oliver Messiaen, é uma sequência circular para Synclavier e orquestra, com um motivo recorrente de vaga inspiração celta. A segunda, em forma de cantata, reforça a nota de tristeza própria de um requiem, evocando a grandiosidade coral de um Carl Orff.
Na terceira, em andamento ainda mais lento, um oboé introduz uma orquestração de contornos “michael nymanianos”, derivando depois para um “andante” de percussões sintéticas contra vozes semiorientais, sequenciadas numa rítmica típica dos Magma. “The father” e “The mother”, os dois restantes temas, completam este “Requiem”, numa nota de religiosidade mariana. “O pai” inclui uma divagação de órgão de igreja virtual, enquanto “a mãe”, variação moderna de uma “Cantiga de Santa Maria” de Afonso X, torna mais real e dramático o som do órgão de igreja, numa manifestação eloquente de devoção à Virgem Maria. Temos assim um Jah Wobble cada vez mais devoto. Quem diria... Ele que até já fez parte dos Public Image, ao lado de John Lydon, vulgo Johnny Rotten...

05/05/2009

A pequena eternidade [Madredeus]

Sons

3 de Outubro 1997

A pequena eternidade

Há paraísos e paraísos, artificiais e naturais. Paraísos azul-cueca e paraísos de um azul profundíssimo e transparente. Da cor do céu. O paraíso dos Madredeus é o caminho e a viagem em direcção a este azul, num barco capitaneado por Pedro Ayres com a voz de Teresa Salgueiro a servir de farol. “O Paraíso” é, muito provavelmente, o melhor álbum dos Madredeus.

Pedro Ayres Magalhães, autor da maior parte das palavras do novo álbum dos Madredeus, quando se trata de uma entrevista, usas essas mesmas palavras num registo que, simultaneamente, esconde e revela. Percebe-se no que diz uma corrente oculta, mas ele prefere escudar-se nas alegrias e na luz do mundo e dos feitos materiais. Mesmo assim, à conversa, o tempo parou por um bocadinho.
PÚBLICO – O paraíso fica onde?
PEDRO AYRES MAGALHÃES – É uma ideia com mais de dois mil anos, sobre a qual se construiu a vida da sociedade ocidental. No caso deste disco, trata-se, na canção com este título, de uma utilização muito especial da voz da Teresa, neste caso aproximada dos modelos da música que ouvi durante a minha vida toda, os “blues”, os “slows” das bandas rock, os solos de guitarra, a música ambiental. Pretende-se ainda mostrar um estado de graça absoluta do próprio conceito Madredeus. Neste momento, o trabalho do grupo decorre numa harmonia que eu nunca tinha conhecido antes. Algo que decorre da conformidade das pessoas e da própria carreira do grupo. Uma mistura de convites e oportunidades, uma chuva de pedidos para os Madredeus se apresentarem nos sítios mais incríveis que se pode imaginar.
P. – Como é que se consegue esse estado de graça no meio de constantes digressões?
R.
– Utilizando uma metáfora. É como a construção de um barco. O novo reportório é um barco muito mais forte do que aqueles que construímos até agora.
P. – Assume-se neste álbum como o timoneiro desse barco?
R.
– Hoje em dia esse meu capitanear está mais do que consagrado, como nunca esteve até agora. Um estatuto criado e suportado pelos outros músicos.
P. – Há alguma unidade conceptual nas 14 canções que compõem o disco?
R.
– Uma unidade de intenção. Foram todas compostas para a figura e para a voz da Teresa, por três autores [Pedro Ayres, Carlos Maria Trindade e José Peixoto] que fizeram três digressões mundiais com o grupo e esta proposta de reportório.
P. – Foram gravar a Itália por alguma razão especial?
R.
– Aí há duas coisas. Para gravar o disco era necessário não estarmos em Lisboa, onde toda a gente tem muitas solicitações, família, não sei quê. Depois, fui para Veneza por gosto, apanhava o barco todos os dias para ir passar o dia a tocar e voltar de barco para a cama!... Era o único sítio onde eu podia fazer isso [risos]. É uma metáfora!
P. – A luz da cidade influenciou a luz do disco?
R.
– Penso que sim, que ajudou muito. Pensei em muitas coisas quando quis ir para Veneza, que era um destino ideal para a tal construção de um barco para viajar. Tornou-se um lugar ideal nos últimos séculos. Um lugar de peregrinação e de sonho da Europa e do resto do mundo. É uma cidade onde foi cultivada a beleza, o requinte, o exagero e a ostentação, expoentes da criatividade.
P. – É claro que o facto de a apresentação oficial de “O Paraíso” ir ter lugar em Sintra não é por acaso…
R.
– Claro que Sintra tem uma ressonância simbólica especial. Vamos estar no Palácio da Vila, o palácio real, que ainda por cima é manuelino. Mas se vamos por aí, há mais símbolos… Também preparámos o disco no CCB, na Praça do Império. O primeiro concerto foi em Évora. Posso fazer um guião fantástico das coisas dos Madredeus. Mas esse é um cenário que não é o objectivo. Acontece naturalmente.
P. – Já que falamos de conotações simbólicas, estou a lembra-me de um disco que gravou há muito tempo, intitulado “O Ocidente Infernal”…
R.
– Mas é a mesma ideia! Esse disco tinha duas faces, aquilo que era o lado B era a construção do paraíso tal qual eu a vejo hoje. Como no “Espírito da Paz” já existia a preocupação de criar nas pessoas um estado de paz. Neste momento estamos apenas a repetir a mesma ideia que o mundo rico abraçou. Para nós, músicos, é o paraíso termos estes convites, fazermos estes concertos, chegar lá e ver as salas todas cheias.
P. – Então o lado material é o mais importante?
R.
– O lado material é o suporte, qual é a dúvida?
P. – Nunca se cansam de estar tanto tempo juntos?
R.
– Precisamente, o reportório actual é útil na ultrapassagem do problema da rotina. É mais interessante de tocar, mais ritmado, mais melodioso e mais pulsante do que tudo o que fizemos até agora.
P. – Os Madredeus encontraram a sua forma ideal?
R.
– Não foi por acaso que ao saírem os outros músicos eu preferi que ficassem só os que já lá estavam, porque quis trabalhar com veteranos do processo dos Madredeus, com músicos como o Carlos Maria e o José Peixoto, que são meus professores e não meus alunos. Trabalhar com a sensibilidade, a experiência e a sabedoria deles. Foi isso que fiz e que correu bem. Este grupo, nesta altura, é o grupo ideal.
P. – Quando se chega ao paraíso como é que se sai de lá?
R.
– Nunca se chega lá. O paraíso é o caminho e a construção de uma imagem… A música dos Madredeus associa-se melhor a este tema do que, se calhar, a outros, como o combate à pobreza. O que nos mobiliza é o chamamento, ou a invocação, das maiores ambições, da maior ambição do homem, que é o paraíso. Mesmo que não tenha a expressão da construção cristã do paraíso, no pós-morte.
P. – O “paraíso” constrói-se em torno da ideia do tempo?
R.
– Sim. A espera, a vivência do tempo, o bom tempo.
P. – Com as “coisas pequenas” que cantam no álbum?
R.
– Quando olho para trás, para a carreira pública deste grupo – e este grupo foi feito para ter uma carreira pública – muitas vezes encontro grandes parangonas, grandes palavras sobre a música, que às vezes me obrigam a ter uma relação um pouco extraordinária com as pessoas com quem falo. “Coisas pequenas” é uma canção de amor em que uma mulher diz ao seu amante que não são só coisas pequenas que podemos dar uns aos outros, mas que quando damos coisas grandes é preciso ter a certeza que estamos a dar. É outra metáfora sobre a própria carreira do grupo. Identifico os Madredeus com um caminho lento de aperfeiçoamento.

Portishead - Portishead

Sons

3 de Outubro 1997

Psicocabaré

Façam favor de deitar fora os Smoke City e a sua visão turística de tintas Robbialac de um mundo sem fronteiras. Cerrem os dentes e fileiras. O verdadeiro “safari” pelas crostas mentais e mais cinematográficas do trip hop continua a ser comandado pelos Portishead ou, para darmos o seu a seu dono, pelas estratégias de reconversão de Geoff Barrow e a voz de diva virtual de Beth Gibbons, coadjuvados pelos dotes de composição do terceiro elemento, Adrian Utley.
A nova película, a preto e branco, dos Portishead é um “thriller” bastante mais assustador do que o sedativo prescrito pela banda em “Dummy”. Onze temas de duração curta e de extraordinária densidade sonora que a cada momento investem na desconstrução e procura de novas coordenadas para a já demasiado tipificada componente rítmica associada ao trip hop. Mais do que nunca, Barrow recorre a um trabalho exaustivo de samplagem dos sons que percorrem o seu imaginário, de fragmentos sinfónicos e ambientais, a música de filmes dos anos 60 e excertos de “fake jazz”. Mas o que distingue verdadeiramente este processo das vulgares apropriações de James Brown e de todo o arsenal soul dos anos 60 disponível para este tipo de “roubo” é o modo como o grupo personaliza estes materiais.
Na verdade, a maior parte das samplagens de “Portishead” deriva de um processo de autofagia, em que o grupo toca e grava primeiro em tempo real para um suporte em vinilo, usando depois as gravações para processamento, seja ele de sequenciação, decalque ou simplesmente de “scratch”. O resultado é um universo globular e esfrangalhado, de canções residuais amparadas pelas vocalizações – entre um “western” de Salem, a balada jazz clássica em processo de decomposição, um carnaval macabro de New Orleans, a soul petrificada e o cabaré de almas penadas – de Beth Gibbons, também elas saturadas por camadas sucessivas de filtragem, raspagem e polimento.
Não admira que no meio desta respiração pesada e do ambiente de claustrofobia os Portishead desenhem, mesmo que esta seja ainda uma derradeira ilusão, janelas abertas para o ar livre e para o silêncio, como acontece em “Humming”, onde um “Theremin” sideral faz vibrar o ar, precisamente, num “requiem” electrónico pela morte das “boas vibrações”.

Portishead
Portishead (8)
Go! Beat, distri. Polygram

Madredeus - O Paraíso

Sons

3 de Outubro 1997

Madredeus
O Paraíso (8)
Ed. e distri. EMI – VC


Onde fica o paraíso? Em Itália, onde o disco foi gravado? Em Portugal, depois que o menino vier trazer o Quinto Império? No coração dos músicos do grupo? Num comprimido para dormir? As respostas não são, nunca foram, fáceis, quando se trata dos Madredeus. Talvez tudo funcione como um palimpsesto, com níveis de compreensão sobrepostos (ou concêntricos), cada um escondendo e revelando o anterior, numa progressão até ao âmago da música do grupo. Entre o fogo e o vazio. Numa primeira camada, superficial, “O Paraíso” apresenta-se como uma música simples, destinada a descontrair, muito próxima da “new age” e do “easy listening”. Neste aspecto, os arranjos de teclados de Carlos Maria Trindade são exemplares de contenção. Nem a permanente serenidade com que as guitarras de Pedro Ayres e José Peixoto se cruzam para dizer a saudade sugere que na alma destes músicos alguma onda mais alterosa se levante. E, no entanto, algo nos toca. Talvez seja este o principal defeito e a principal qualidade da música dos Madredeus. A proximidade excessiva, a familiaridade com que escutamos estas melodias que parecem nascer dentro de nós. Torna-se fácil distrairmo-nos, olhar para lá do horizonte, reduzindo a música à banda sonora de um sonho. O efeito é o mesmo que provocava a “ambient music” de Brian Eno, uma música na qual se podia entrar e sair a qualquer momento. O fado, ou a morna, em “Andorinha da Primavera” e “Não muito distante”, suspenso nas notas de um falso vibrafone, a influência clássica na suave descida de meios-tons (como em “A tempestade”) em “Claridade”, a canção popular salpicada de maresia e de Renascimento, em “A praia do mar”, a “new age” pura de “À margem”, a valsa de cristal de “Carta para ti” estão unidos numa estética que, cada vez mais, se aproxima da sua essência: O Tempo (sem querer meter Abrunhosa ao barulho…), omnipresente em cada faixa. O Presente, o Passado e o Futuro, o tempo perdido, a passagem ou, pura e simplesmente, a sua suspensão. O perigo, já o dissemos, pode estar na excessiva ternura do embalo, mas, se outras delícias não tivesse para nos oferecer, “O Paraíso” revela-se, de facto, não só nas “Coisas pequenas”, mas, sobretudo, em quatro canções que entram directamente para a lista de clássicos de sempre da música portuguesa: “Os dias são à noite”, “A tempestade”, “O fim da estrada” e “O sonho”, em que a força da composição se casa com rara felicidade com as vocalizações de uma Teresa Salgueiro em estado de graça.

Anamar - M

Sons

3 de Outubro 1997
DISCOS – PORTUGUESES

Anamar
M (7)
RCA, distri. BMG


Dez anos passaram sobre a edição de “Almanave”, oito sobre “Feia-bonita”. A seguir, o silêncio e o recolhimento, quebrados por esporádicas aparições como actriz. Numa delas (“O Ensaio”, de Jean Anouilh), Tiago Torres da Silva, produtor de “M”, sugeriu-lhe que cantasse o fado, revisto sob uma nova luz. Anamar acedeu, ressurgindo transfigurada, por dentro e por fora. “M”, gravado em tempo real numa igreja, é uma oração, interiorização de um tempo e de um lugar que atravessam as idades. “Do coração aqui ao coração além”, como diz uma das canções. O ambiente é, por vezes, de música antiga, de uma reunião secreta no templo. Sente-se que há uma partilha e uma partida, no dar as mãos de todos os músicos envolvidos – André Louro de Almeida, Joaquim d’Azurém, Florêncio de Carvalho, José António Santos e Gabriel Mateus. São temas que flutuam pelas vielas do fado que se canta no mundo astral. Ventos e água e pássaros, ciúmes e beijos vibrando num ar de paixões rarefeitas. Passam por aqui os choros góticos dos Dead Can Dance e os ecos distantes da civilização e da tecnologia. “Os grandes nomes” fixa Laurie Anderson numa onde de esoterismo, “Via láctea” descreve-se a si mesma numa mistura de ciência e misticismo, “Pulsar” é pura música do espaço. Só é pena que a voz de Anamar não tenha, por vezes, a firmeza e focagem exigidas por uma completa exposição à luz. No geral, “M” soa ao que seria um disco de fado gravado na editora Hearts of Space.

Poesia electrónica na aldeia global [Anne Clark]

Sons

26 de Setembro 1997

Poesia electrónica na aldeia global

No novo álbum, “Word Processing”, Anne Clark entregou os seus textos nas mãos de gente como Global Youth, Sleepers Revenge ou Juno Reactor. Uma série de remisturas tecno que oblitera o lado poético desta autora que se apresentará, amanhã, ao vivo, na Aula Magna, com um espectáculo acústico.

“A anarquia criativa” é o método de composição seguido por Anne Clark, com o qual tem procurado estruturar um novo papel para a linguagem poética. Entre o niilismo punk, o romantismo acústico e o processamento electrónico.
PÚBLICO – Nos anos 80 esteve ligada ao projecto Psychic TV, cujos métodos de trabalho passavam por processos de manipulação através do som e da palavra. Já fez alguma coisa semelhante?
ANNE CLARK – Hoje em dia o meu trabalho tem mais a ver com um combate contra a manipulação das imagens do que com a linguagem propriamente dita, que está a sofrer. Afastei-me do tipo de trabalho efectuado pelos Psychic TV ou, antes, pelos Throbbing Gristle. De uma forma ou de outra toda a gente usa a linguagem como uma forma de manipulação. Comunicação é manipulação. Tanto pode ser negativa como positiva.
P. – “Word Processing” assenta numa base electrónica tecno. Não acha que, a este nível, se pode falar ainda de manipulação através do som?
R. – Há um lado ritual, quando milhares de pessoas se juntam a dançar ao som de música tecno. É um regresso ao tribalismo, algo necessário, agora que deixou de existir segurança e se estão a perder os valores religiosos. Não penso que seja negativo o facto de uma quantidade de pessoas ficarem ligadas pela música.
P. – Qual é o lado positivo?
R. – As pessoas sentirem que fazem parte de uma tribo, sentirem-se confortáveis. Há como que uma libertação e uma partilha. Acontece o mesmo com um livro, a pintura, o cinema ou a televisão. As pessoas lêem um livro para saberem se há mais alguém a pensar como elas.
P. – Concorda com a utilização de drogas como o “ecstasy” para reforçar esse estado de espírito?
R. – Não, nem dessa nem de outra droga qualquer. Já há tantas maneiras para sair da realidade que não são necessários os químicos. Mas as pessoas que sentem essa necessidade não devem ser proibidas de o fazer.
P. – O que pensa da utilização de textos subliminares?
R. – Interessei-me bastante por técnicas desse tipo, no passado, mas acabei por achá-las lamentáveis. Eram algo de ameaçador.
P. – No fundo da caixa do seu novo CD está impresso um texto com informação técnica detalhada relativa à gravação, um jargão saturado que acaba por esconder mais do que revelar...
R. – Todo este projecto tem a ver com levar o meu material até aos seus limites, através da tecnologia. Precisamente o “word processing” do título. Não coloquei quaisquer reservas ou limitações aos diversos autores das remisturas, tiveram inteira liberdade para fazer o que quisessem. Nalguns casos processaram as minhas palavras de maneiras bastantes estranhas... Gosto bastante das faixas remisturadas pelos Mouse on Mars, e de “Nida”, pelos Saafi Bros.
P. – “A linguagem é um vírus” como escreveu uma vez “William Burroughs?
R. – “Do espaço exterior”, não é? Parece que os incas também vieram de lá... Um vírus? Não creio. A linguagem, no seu todo, enquanto fonte imediata de imagens, está a desaparecer.
P. – Com a substituição da linguagem por outras formas de comunicação electrónica, como a realidade virtual, os poetas correm o risco de ficar sem emprego?
R. – Penso que sim [risos]. A informação está a tornar-se cada dia que passa mais sensacionalista, mais tablóide. Tudo se reduz ao superficial, deixou de haver profundidade. Há milhões de revistas e jornais a falarem de todas as coisas, enquanto os livros a sério são cada vez menos.
P. – No romance de George Orwell “1984”, o governo apagava sucessivamente as palavras, como forma de aumento de poder e de controlo. Sem palavras não há pensamento.
R. – Penso que a situação actual tem mais a ver com as formas de poder de Aldous Huxley do “Admirável Mundo Novo”, do que com George Orwell. Em Orwell é o controlo através do medo. No “Admirável Mundo Novo” é o controlo através do prazer e do consumo. A única forma de resistência a isto é tentar modificar o estilo de vida, não comprar um carro novo todos os anos ou trocar de mulher de três em três meses...
P. – Acredita na existência da alma humana?
R. – Acredito na energia humana. Quanto à alma, gostaria realmente que ela existisse.
P. – Costuma referir-se a um “anarquia criativa” que determina os seus métodos de trabalho.
R. – O que tento fazer é atravessar o mundo e procurar compreendê-lo, as coisas que fazemos uns aos outros. As pessoas vêm ter comigo para me mostrar novos sons e novos textos.
P. – Procura fazer passar nos seus textos alguma forma de mensagem explícita, como fazia na altura em que fazia parte da cena punk dos anos 70?
R. – Limito-me a mostrar, enquanto indivíduo, as minhas reflexões sobre o mundo que me rodeia. Na altura do punk aconteceram uma quantidade de coisas malucas ao mesmo tempo; as pessoas juntavam-se para tocar sem nunca terem pegado num instrumento antes. Eu gostava de poesia e de música. Por que não reunir as duas?
P. – As palavras tanto podem ferir como curar. Qual o efeito das suas?
R. – Como toda a gente, provoco as duas coisas. Espero que os meus textos ajudem a curar, mas sei que já feri as pessoas – faz parte da natureza humana.
P. – O que pensa de uma cantora como Diamanda Galas? É alguém que pode deixar marcas profundas...
R. – Adoro-a. Gostaria de um dia trabalhar com ela. Lembro-me de assistir a um concerto dela, há alguns anos, em Londres, e de ver pessoas a sentirem um sofrimento físico. É uma “performer” que desafia realmente a audiência e que se pode tornar assustadora.
P. – Vai fazer algum tipo de “performance” no concerto de Lisboa?
R. – Vou trazer uma banda de seis pessoas e um dançarino. Música gerada exclusivamente por meios electrónicos corre o risco de se tornar muito aborrecida de se ver, com uma quantidade de máquinas e apenas uma pessoa.
P. – A seguir a este disco já está a preparar outro, sobre a poesia de Rilke.
R. – Gosto de experimentar diferentes estilos e ambientes. Como ser humano que sou, posso acordar numa manhã com um determinado estado de espírito e mudar ao longo do dia para outro. É um “work in progress” constante. Num dia posso estar voltada para a música electrónica e no seguinte preferir uma linguagem acústica, mais intimista.

O despertar da alquimista [Anamar]

Sons

26 de Setembro 1997

O despertar da alquimista

Anamar, mais que uma cantora, é uma viajante da alma. As imagens do seu filme interior mudaram nos últimos dez anos. Aprendeu a serenidade e a luz que se esconde nos gestos e nas palavras. “M”, o seu novo álbum, é pura vibração. “M” de “mais”, “M” de “morte”, “M” de “mudança”, “M” de “mundo”, “M” de “mar”.

A linguagem é a da alquimia. Casamento de elementos, dissociação e harmonização interior são termos empregues por Anamar para falar de “M”, o seu novo disco, gravado numa igreja. Um banho de luz.
PÚBLICO – “M” é um título estranho, não acha? “M”, “Matou”, de Fritz Lang. “M”, o grupo que fez o tema chamado “Pop Music”...
Anamar – Não queríamos limitar o que se pudesse percepcionar do disco com uma palavra. A ideia de ter só uma letra é de as pessoas associarem o que quiserem a essa letra. Deixar uma porta aberta.
P. – Depois há uma canção chamada “NSN”...
R. – Aí é por causa do “N”, que se diz com os lábios fechados, mas é audível cá fora. Uma relação exterior que nos interessa. Além disso, são as iniciais de “Nossa Senhora das Neves”, a quem foi erigida uma capela do séc. XII onde foi gravado o CD, no alto da serra de Montejunto.
P. – Estás sempre a falar em “nós”... Nós quem?
R. – Este trabalho não foi feito por mim exclusivamente, mas por um núcleo criativo de quatro pessoas: eu e o André Louro de Almeida, ao nível musical e do conceito de arranjos, e o Tiago Torres da Silva e a Ana Calhau, também criadoras do conceito de origem.
P. – Que conceito?
R. – Cantar a luz através do fado, sendo que, de uma maneira muito comum, o fado está associado a outro tipo de emoções: ciúme, posse, vingança, escuridão, saudade, desilusão, revolta... Mas esse conceito não me entusiasmou especialmente, não estava muito virada para pegar no código do fado, já muito usado e trabalhado anteriormente. Não é fado que costumo ouvir em casa, mas coisas com outra espacialidade, indicadoras de outros estados de espírito – Dead Can Dance, Rachmaninov, Brian Eno, David Sylvian... No entanto, o pacote de letras que o Tiago me apresentou era extraordinário.
P. – Falou em espacialidade. E religiosidade?
R. – Absolutamente. É uma característica, para mim, básica. No entanto, não é assim tão óbvio que a arte entre em linha de conta com ela.
P. – Essa religiosidade não está a transformar-se, nos dias que correm, num mero amontoado de ícones e imagens, esvaziadas do seu verdadeiro significado?
R. – Todo o fenómeno de profetas com pés de barro, ou aproveitamentos comercialóides do fenómeno “new age”, mais as seitas, tudo isso e a “astrologite”. Se religião significar religar, e é daí que vem a palavra, aí sim, sou uma pessoa profundamente religiosa. Religar à vida, sendo que esta, em si, é a transcendência.
P. – É engraçado estar a falar sobre estas questões. As pessoas estavam habituadas a ter de si outra imagem...
R. – Eu sei. Deixei de cantar e de aparecer há muitos anos, nove anos. É curioso verificar como uma imagem pode ficar cristalizada no tempo. Há dez anos, vestia de preto, pintava os lábios de vermelho e usava os cabelos muito compridos. Uma imagem que ficou ligada a uma noção de estilo e à sedução, ao risco e à ousadia. Hoje, nem a minha cara é igual. Nem o meu ser interior.
P. – O que aprendeu nestes últimos dez anos?
R. – Fui crescendo. A opção, neste período de tempo, de não cantar e de não manter uma actividade pública deriva da minha necessidade de ouvir primeiro o que estava cá dentro e ver se tinha alguma coisa para dizer. Uma das coisas que aprendi nestes dez anos foi o valor do silêncio. O valor do quietar. Do respirar, do fruir de tudo o que a vida tem para nos dar, em vez de querermos que as coisas correspondam aos nossos desejos.
P. – Essa filosofia de vida, transferiu-a para a feitura do seu disco?
R. – Este disco não é fruto de um trabalho pessoal meu, mas de um trabalho de equipa. O que pediu uma abertura e uma aprendizagem do que é “criar com” outras pessoas, algo que eu não conhecia assim tão bem. Nos outros discos trabalhei com muita gente, mas o conceito e o ponto de partida eram definidos por mim. Neste caso, não, fui obrigada a uma disciplina.
P. – Quer dizer que o seu ego se suavizou?
R. – Tendo um ego, como toda a gente, há partes desconhecidas de mim própria em relação às quais faço questão de estar especialmente atenta, de maneira a estar em sintonia com elas. Quanto mais fundo se vai dentro de nós, menos se faz questão de ter ou não ego, de ser isto ou aquilo.
P. – Como é que se processaram as gravações?
R. – O disco foi gravado quase como um disco ao vivo, em tempo real, o que quer dizer que houve muitas repetições, que aproveitei para fazer apuramentos, ao nível de questões técnicas. Foi exigida uma concentração muito grande, havendo necessidade de se estar tranquilo para que as coisas fluíssem. Ao todo foram três semanas ao longo das quais gravámos 21 canções e... uma brincadeira.
P. – Que brincadeira?
R. – Numa ocasião o Joaquim d’Azurém estava a tocar guitarra portuguesa num teste de som e eu comecei a cantar por cima. Ou a leitura de um texto sobre uma banda-sonora composta pelo André Louro de Almeida.
P. – Falou, há pouco, do fado, que também corre o risco de se desvirtuar. De que forma é que sente este tipo de música?
R. – O fado é um código e uma porta de acesso directo à alma, como os “blues” ou o “gospel”. Do ponto de vista cultural, cristalizou no tempo. Lembro-me de quando era miúda e cantar “A canção do mar”, da Amália, ser um escândalo. Mas a própria Amália gostou muito do tema.
P. – A maneira de se exprimir sugere elegância, mesmo quando se trata de espiritualidade...
R. – Entendo que uma das qualidades da espiritualidade é precisamente a elegância. Não há espírito sem beleza. Há uma tentativa da minha parte de tratar a vida com elegância. Não há harmonia sem ela, todos os pontos de vista radicais ou separatistas, que só tendem para um lado da realidade, não me satisfazem. A vida não é separada, tal como a visão das coisas não deverá ser separada. A elegância é uma característica da verdadeira complementaridade de elementos.
P. – Quais são os seus elementos?
R. – Água e fogo. Embora talvez o mais importante seja o éter, o quinto elemento... A água identifica-se com os sentimentos e as emoções, com o fundo da alma e o poder de aplicar o coração na vida. O fogo equivale a uma verticalidade, a um amor pela verdade, a uma expansão, a uma inspiração, à criatividade em si, aquilo que faz com que um átomo e outro se juntem dando origem a uma coisa. Por isso tento articular a expressão, própria do fogo, com a interiorização, própria da água. Um casamento que é dos trabalhos aos quais me tenho dedicado. É como uma cafeteira com água a ferver. É bom que a água fervente esteja em total correspondência com a intensidade da chama. Se ferve demais, apaga a chama. Se a chama estiver demasiado alta, evapora a água.
P. – Está a falar como uma alquimista...
R. – A alquimia é um código de profundidade... mas na verdade é a própria simplicidade da vida. A harmonia é a forma mais simples, mas também a que requer mais trabalho.
P. – Assusta-a o envelhecimento, a decadência da beleza física?
R. – Assusta-me o envelhecimento, por estagnação. O envelhecimento interior. Assusta-me a morte interior, não em mim, e digo não em mim, porque não há receio que em mim, por dentro, morra aquilo que me anima, senão não estava viva. Sou a típica sobrevivente. Acredito que existe uma relação entre o envelhecimento da matéria e a sabedoria interior. Através do tempo, o homem tem acesso a ser, cada vez mais, ele próprio, a ser sábio. O envelhecimento físico acaba por ser o preço a pagar pela experiência vivida. Mas também acredito que o corpo físico é condicionado pela energia interior, nomeadamente, a psíquica. Daí não saber se as pessoas forem cada vez mais psiquicamente saudáveis se não serão também cada vez mais fisicamente vitais.
Já agora, também me assusta a paranóia de que todo a gente queira ser como a Claudia Schiffer até aos 80 anos!... É a prioridade dada à plástica, ditada pela moda, uma ditadura de formatação de mentalidades, responsável pela morte interior de muitas pessoas.
P. – Vivemos uma época de morte e de apodrecimento. O Apocalipse?
R. – Talvez uma época de altos preços a pagar por tantas cristalizações. Há uma coisa que me faz muita impressão. Habitualmente, a informação que chega às pessoas é sempre sobre o lado negro dos sinais, nos telejornais e nos jornais. Parece que há uma publicação num país, não sei bem qual, que se dedica só a divulgar aquilo que de bom acontece no mundo e que tem tido um público tremendo. Estamos numa fase crítica e, por isso, privilegiada. Considerando que o preço é alto, porque a tal formatação da cabeça e do “modus vivendi” das pessoas chegou a um limite de dissenção com o seu próprio interior, por outro lado existe a oportunidade de ver de caras, a um nível extremo, o que não dá, que não funciona, que não traz felicidade. Nesse sentido, quanto mais claro se vê o inimigo, mais fácil é o entendimento do que poderá ser mais criativo.
P. – Quem ou o que é o inimigo?
R. – O medo.
P. – Como é que se pode vencê-lo?
R. – Através da emergência da tomada de consciência de quem se é e do que se está a fazer. É a única saída. O homem meteu-se numa camisa de forças e, de alguma maneira, está a ser encostado à parede na pressão máxima. Ou descobre como é que sai lá de dentro ou então morre. Acabou o problema, estoira tudo. Acredito, ou melhor, sei internamente que o futuro das coisas é sempre e tendencialmente luz.

Stereolab - Dotsandloops

Sons

26 de Setembro 1997
DISCOS – POP ROCK

Stereolab
Dotsandloops (5)
Elektra, distri. Warner Music

“Emperor Tomato Ketchup”, o anterior álbum dos Stereolab, recriava de forma sistemática alguns dos tiques do krautrock, sacados principalmente dos Neu!, Kraftwerk e Can, em contraste com as vocalizações “rive gauche” da vocalista Laetitia Sadier e uma veia easy listening que o grupo nunca disfarçou. O passo dado neste novo “Dotsandloops” deixa de lado as referências ao kraut, pondo em seu lugar uma bandeja – sem dúvida arranjada com bom gosto, mas evidenciando uma manifesta falta de criatividade – cheia de doces. Por outro lado, o grupo revela aqui a sua faceta de camaleão, pintando a manta ora com uma muito leve camada de trip-hop ou drum’n’bass, ora envernizando as canções com sedosas pinceladas de cordas e metais, ou suspensões e vibrafone, à maneira dos High Llamas e Combustible Edison. Tudo isto seria conveniente e uma mostra comprovativa da atenção dada pelos Stereolab à crista da onda, não fora o facto de que, abstraindo-nos das ornamentações, o esqueleto das canções parecer quase decalcado do álbum anterior. Se “Emperor Tomato Ketchup” era um álbum duro e minimalista, marcando com força as ideias e afirmando orgulhosamente um conceito sonoro central, “Dotsandloops” liquefaz-se num outro tipo de sons e repetições que roçam o puro maneirismo, por um lado, e alguns dos lugares-comuns do pós-rock (as gravações tiveram lugar em Chicago e Düsseldorf...) e do easy listening por outro. Os quase 18 minutos de “Refractions in the plastic pulse” não chegam como desafio.

01/05/2009

Mercador de sonhos [Robert Wyatt]

Sons

19 de Setembro 1997

Mercador de sonhos

Seis anos de silêncio depois de “Dondestan”, cortados pela colecção de gravuras sonoras do mini-CD “A Short Break”, Robert Wyatt tem um novo álbum de originais, “Shleep”, gravado no estúdio de Phil Manzanera, com a participação, entre outros, de Brian Eno, Paul Weller, Evan Parker e Annie Whitehead. Um disco de “sonhos maus” por um sonhador que tem experimentado na carne a dor, a utopia e a revolução.

“Shleep” é o melhor álbum de Robert Wyatt, desde “Rock Bottom”, a obra-prima gravada em 1974 a seguir ao acidente que o atirou para uma cadeira de rodas. O mesmo acidente que acelerou o processo de descoberta de uma “voz pessoal” que nos últimos 25 anos insiste em se fazer ouvir com o poder de transfiguração de um guerrilheiro que faz da poesia a principal arma.
“Shleep” é uma mistura de “Sheep” com “Sleep”. De massificação com dormência. Wyatt explica que “começou por ser apenas o título de uma canção”, embora sejam lícitas outras conotações, como com “The Little Sleep”, uma novela policial de Raymond Chandler.
O sono e o sonho. Robert Wyatt teve problemas com o primeiro, transformando em arma o segundo. “Há dois, três anos, tive uma fase em que, pura e simplesmente, não conseguia dormir.” “Shleep” resgata o onirismo, da mesma forma que “Rock Bottom” exorcizava os traumas deixados pelo acidente que o tornou paraplégico, e “Nothing Can Stop Us” era a reacção violenta contra uma situação política considerada “intolerável”.
Cada canção de “Shleep” é então como que o “polaroid de um sonho”. “Prefiro os sonhos maus aos sonhos bons. Quando acordo de um sonho bom, o choque com a realidade do dia-a-dia é maior.” Não se trata, diz, de um projecto ideológico – “Nunca injecto os meus discos com qualquer forma de ideologia, tento sempre que sejam totalmente independentes.” Mesmo “Nothing Can Stop Us” ou um tema como “East Timor” de “Old Rottenhat”? “Talvez nessa altura, nos anos 80, sim, a situação política em Inglaterra estava a tornar-se intolerável, com a emergência de movimentos racistas e nazis. Foi uma época em que passava mais tempo a participar em comícios do que a ouvir ou a preocupar-me com música.”
Trata-se, afinal, tão-só da projecção intuitiva de estados de alma que tanto exigem, para se fazerem ouvir, do canto panfletário da Internacional Socialista, como se encolhem num balbuciar triste e, por vezes, incoerente, de uma criança ferida. Ou de um louco encarcerado na certeza das suas próprias convicções. De um poço como “Rock Bottom” não se sai igual ao que se entrou. Os álbuns seguintes, de “Ruth Is Stranger than Richard” a “Dondestan”, demonstram essa mesma impossibilidade de fazer frente, com a constância dos iluminados ou dos masoquistas, ao reflexo do espelho. Mas aí está “Shleep” para nos fazer crer no contrário.
Gravado no estúdio de Phil Manzanera, companheiro de longa data de Wyatt, “Shleep” reúne memórias e fragmentos da anterior discografia, num “puzzle” que necessita de tempo para se fazer compreender na sua totalidade. Um tempo que o próprio músico reserva para si, de forma a tornar coerente “um processo de composição orgânico, feito de intuições”. Processo que tem início em casa, num gravador de quatro pistas, em articulação estreita com a sua mulher, Alfreda Benge – autora dos textos e das capas de grande parte da discografia recente do músico –, com quem Wyatt tem partilhado inúmeras experiências e viagens pelo mundo.
Para “Shleep”, Robert Wyatt convidou velhos amigos, como Phil Manzanera e Brian Eno, este último “um aventureiro que lida com a música como uma criança”, cuja influência foi determinante no resultado final de um tema como “Heaps of sheeps”, a fazer lembrar álbuns como “Taking Tiger Mountain (By Strategy)” ou “Another Green World”.
Mas é ainda no modo de articulação dos músicos convidados que “Shleep” se afasta de “Rock Bottom”, embora sejam evidentes traços comuns entre os dois discos (as “drones” de sintetizador, o piano sincopado a 16 rotações, inspirado em Cecil Taylor, as melodias de “nursery rhyme” em contraste com sequências instrumentais de “big band” espectral). Mas enquanto “Rock Bottom” era a grande dor, redimida pelo génio, suportada pela companhia de amigos, “Shleep” é a partilha fraterna com esses mesmos amigos, numa assunção do colectivo como força impulsionadora do acto criativo.
Por vezes o jogo de memórias cruzadas está escondido, surgindo de forma indirecta. Como uma linha de sintetizador dos Cluster introduzida por Brian Eno. Ou a utilização de fitas magnéticas com fundo industrial em “Was a Friend”, nas quais Wyatt reconhece haver uma relação com a música de outro amigo seu, Charles Hayward, dos This Heat e Camberwell Now. Noutras, a fonte revela-se de maneira mais óbvia. Como a fabulosa apropriação das inflexões vocais de Bob Dylan de “Subterranean homesick blues” e dos blues em geral, em “Blues In Bob Minor”, sobre um ritmo binário decalcado de um tema de “Old Rottenhat”, na segunda das duas participações de Paul Weller, fundador dos The Jam, neste álbum.
Evan Parker e Annie Whitehead, representantes da “velha” escola do “new jazz” britânico, acrescentam a improvisação e a surpresa. Antes mesmo da aventura, iniciada nos anos 60 ao abrigo do movimento de Canterbury, com os Soft Machine, Wyatt era presença assídua em gravações de jazz, tocando bateria ao lado de músicos como Wolfgang Dauner. O acidente – uma queda de um quarto andar, no decorrer de uma festa mais animada – de que foi vítima terá inviabilizado uma carreira promissora como instrumentista de “jazz”? Wyatt recusa esta possibilidade. Prefere dizer que a bateria era um empecilho que o impedia de trabalhar em profundidade a música que verdadeiramente sentia.
De resto, basta lembrar que na altura em que, em 1970, os Soft Machine iniciavam a sua própria aventura pelo jazz, com outro dos álbuns que é um marco da música dessa década, o duplo “Third”, Robert Wyatt contrapunha às longas improvisações, em compassos esquisitos, dos seus companheiros, a sua própria “suite” pop vocalizada, “The Moon in June”, canção mágica mas que o votaria ao ostracismo pelos intelectuais do grupo, Hugh Hopper, Mike Ratledge e Elton Dean. “Adorava fazer esse tipo de música, mas era óbvio que os outros não queriam vocalizações. Acabei por ser marginalizado.” Wyatt viria ainda a reformular a eterna questão – pop contra vanguarda – no projecto Matching Mole (tradução em inglês da fonética, em francês, “machine mole”, Soft Machine, precisamente), de cujos dois únicos álbuns gravados, “Matching Mole” e “Little Red Record”, sairia um hit como “O Caroline” (repescado pelos Mynci Zygoti Mynci no seu disco de estreia), a par de instrumentais obscuros do mais puro experimentalismo.
Mas Robert Wyatt desdenhou sempre do jazz mainstream, preferindo a ala mais radical deste género musical e os cantores de soul que ouvia na juventude.
Regozija-se ao fazermos menção de duas obras, pouco conhecidas, que resolvem a questão de uma vez por todas, a velha guerra entre vanguarda e acessibilidade, nas quais a sua participação é decisiva: “The Hapless Child and other Incrustable Stories”, de Michael Mantler, discípulo hermético de Don Cherry (outro dos heróis trompetistas de Wyatt, a par de Mongesi Feza), com a guitarra de Mike Oldfield, e “Fictious Sports”, com a chancela de Nick Mason, baterista dos Pink Floyd, e a alta inspiração das composições de Carla Bley, com quem o ex-Soft Machine viria a tocar em posteriores ocasiões.
Em “Fictious Sports”, Robert Wyatt cantava “I’m a mineralist”. Hoje o compositor de uma banda sonora contra o abuso de animais em experiências científicas, “The Animals Film”, confessa o seu interesse por duas temáticas, na aparência, díspares: os insectos e as estrelas. O micro e o macrocosmo, segundo “uma tradição de simbolismo que sempre existiu, de forma quase subterrânea, em Inglaterra, em autores como William Blake”. E é de uma estrela que acaba a falar, Diana Spencer: “A minha reacção à sua morte foi semelhante à da maior parte das pessoas. Fiquei triste. É sempre bom as pessoas poderem viver um conto de fadas, ou participar numa ‘soap opera’. E, ao menos por uma vez, foi possível ver o povo inglês a exprimir uma emoção.” O sono e o sonho, uma vez mais. A comandarem o mundo, simultaneamente secreto e luminoso, esculpido em cicatrizes, de Robert Wyatt.

Art Zoyd - Häxan + Thierry Zaboїtzeff - Heartbeat

Sons

19 de Setembro 1997

ARTe SinuZOYDal

Art Zoyd
Häxan (9)
Reprise, distri. Warner Music
Thierry Zaboїtzeff
Heartbeat (8)
Atonal, import. Symbiose

Saúde-se o regresso, sobretudo porque se trata de um regresso à boa forma, desta banda francesa à qual se deve um dos marcos da música contemporânea deste século, a obra-prima “Berlin”. Se este álbum confirmou os Art Zoyd como um ícone da abolição entre “erudito” e “popular”, dialéctica que o quarteto suportou através de uma linguagem única e inovadora, foi a partir dele, porém, que o grupo se cristalizou no seu próprio auto-encantamento, assinando obras posteriores que nada acrescentaram à excelência daquele álbum, a saber, os dois volumes de “Marathonerre” e, sobretudo, o posterior “Faust”. É verdade que qualquer destes trabalhos, compostos respectivamente para um espectáculo multimédia e para o clássico de Murnau, confirmaram um relacionamento privilegiado e de cumplicidade crescente na área da interdisciplinaridade (antes, já “Marriage du Ciel et de l’ Enfer” fora feito para uma coreografia de Roland Petit), facto a que não será alheia a ginástica de maior contenção demonstrada neste tipo de trabalhos.
Mas “Häxan” também foi composto por encomenda. O excerto de 30 minutos de “Glissements progressifs du plaisir” (dividido em partes com alusões a “Ubik” pelo autor de FC, Philip K. Dick) pertence a “Häxan”, um filme de B. Christenssen, e os 17 de “Épreuves d’ acier” ilustraram musicalmente uma exposição de fotografia de Philippe Schlienger. Todavia, há aqui algo mais. Uma força acrescida e uma convicção renovada no reordenamento das coordenadas musicais do grupo, que em “Faust” correspondiam a um momento de certa lassidão. É claro, os Art Zoyd permanecem desmesurados como nunca, confirmando o seu estatuto de equivalente pós-moderno e electrónico dos Magma. Daniel Denis, Patricia Dallio, Gérard Hourbette e Thierry Zaboїtzeff são, cada vez mais, demiurgos dos “samplers”, que usam como deuses românticos. “Häxan”, uma história de demónios e tentações, rituais pagãos e tecnologia, recusa orgulhosamente as regras da canção e o imediatismo e narcisismo da pop. Estes cânticos, estas batidas de monstruosa densidade, esta ascese espiritual que desdenha superiormente do abismo, ensinam-nos, como Nietzsche, a superar os limites. Mesmo que a moeda de troca seja a loucura.
Thierry Zaboїtzeff, teclados, samplers, percussões, baixo e violoncelo, estende ainda mais o leque da instrumentação, incluindo sopros (samplados?) neste seu novo trabalho a solo, que sucede às aventuras electro-acústicas realizadas sob o pseudónimo Dr. Zab. “Heartbeat”, subintitulado “Concerto for Dance & Music, op. 1”, cruza-se com os territórios da música, “Zeuhl” (é favor consultar a cartilha de kobaїano de Christian Vander…) diverte-se a manipular a “world” das urbes esquizofrénicas e faz o relato de uma nova idade pluralista onde os códigos musicais se misturam e mutuamente se polinizam. O batimento de um coração múltiplo.

Third Eye Foundation - Ghost

Sons

19 de Setembro 1997

Third Eye Foundation
Ghost (7)

Domino, distri. Música Alternativa

“Corpses as bedmates”, “Cadáveres como companheiros de cama”, é um dos títulos deste álbum de fantasmas. Os Third Eye Foundation têm um sentido de humor muito particular. “Ghost”, que tem provocado algum furor lá fora (destaque na revista “Magnet”), surgiu rotulado como “pós-rock”, embora não haja muitos grupos conotados com o movimento parecidos com os TEF. É visível que o principal objectivo deles é fazer-nos sofrer. O som desfaz-se, numa tortura de “samples” que tanto podem esganar vozes étnicas como sinfonizar os ruídos industriais mais insuportáveis. Em termos rítmicos, a confusão de “breakbeats” tem como finalidade a ordenação possível do caos de distorção e deformidade harmónica. Mas, se no “pós-rock” apenas os Rome – ou, num registo de cruel exposição ao vazio, os Stars of the Lid – poderão rivalizar com os TEF no jeito para o massacre, já na década anterior encontramos outros ilustres torcionistas do som. É o caso dos This Heat, de Charles Hayward, referência óbvia em temas como “Corpses as bedmates”, “The star’s gone out” ou “Ghosts…” (em versão “drum’n’bass” no castelo dos horrores), numa idêntica combinação de bateria industrial, ruído rosa e metal “hurlant”. E dos Throbbing Gristle, em “The out sound from way in”, no mesmo gosto sádico com que fazem da elaboração de relatórios do pesadelo urbano deste final de século e do cinismo uma arma de vingança (o som da harpa, neste tema, é um esgar de gosto tenebroso). “I’ve seen the light and it’s dark”, avisam os TEF. Nós ouvimos a música e é ainda mais escura.

Genesis - Calling All Stations

Sons

19 de Setembro 1997

Genesis
Calling all Stations (3)
Virgin, distri. EMI-VC

Numa altura em que os dinossauros estão prestes a regressar pela mão de Steven Spielberg, no segundo capítulo da saga do seu parque Jurássico, o mundo volta a ser atacado por um dos seus espécimes mais resistentes e perigosos, o temível Genesiossauro, um dos maiores predadores dos charts. “Calling all Stations” aí está para cavar mais uma estaca no coração daquela que foi uma das bandas mais originais e criativas dos anos 70. Anthony Philips foi-se embora. Peter Gabriel despediu-se. Steve Hackett fartou-se. Ficou o tio Collins, que, por fim, também se fartou. Ficaram Mike Rutherford e Tony Banks. Com as mãos a abanar e uma tarefa por cumprir. Os Genesis, para mal dos nossos pecados, têm que continuar. Ouvidos 35673420 candidatos, foi escolhido um tal Ray Wilson, ex-Stiltskin, cuja voz – oh espanto e danação! – faz lembrar, em temas como “Congo”, a de Peter Gabriel. Aliás este e outros temas de “Calling all Stations” repescam a mesma estética de batida tribal que Gabriel explorou nos seus trabalhos a solo, com a diferença de que a criatividade é nula. São onze temas que se arrastam e se auto-estimulam, na vã tentativa de, com o esforço, encontrar um caminho, qualquer que ele seja, que vá dar a algum lugar que não o das vendas. Tempos médios sucedem a tempos médios, os refrões esgotam-se nas mesmas fórmulas que os anos foram cristalizando. Os Genesis arrastam-se e arrastam-nos num longo bocejo. Ainda não é desta que matam o borrego. Que, aliás, já foi morto. Há muitos anos. Na Broadway.

Fuschimuschi Math-Ice - Short Stories

Sons

19 de Setembro 1997

MUNDO CÃO

Fuschimuschi Math-Ice
Short Stories (9)

Maniffature Criminali, distri. Ananana

O que se pode fazer com um gravador de quatro pistas e sem “overdubs”? No caso do alemão residente em Düsseldorf Fuschimuschi Math-Ice, tudo. Ele fica-se por uma intenção mais modesta: resgatar a música pop. Para mais informações, pede para escreverem à mãe dele. Passemos aos factos. Os factos demonstram, por ínvios caminhos, uma evidência: “Short Stories” é um dos grandes discos do ano. Drum’n’bass, trip hop, scratch, pop, experimentação livre, humor devastador, numa combinação órfã de compromissos, fazem-nos abrir a boca de espanto. Procurem Arthur Russell, Steve Fisk, Negativland, R. Stevie Moore, Holger Hiller. Por mais longe que tenham ido, Fuschimuschi vai ainda mais longe.
“Short Stories” inclui uma sessão de “scratch” com o forro de umas calças. Amantes latinos dissertam sobre queijo mozzarella. A teoria da comunicação minimalista. Filigranas de metal e luzes, fortes e pequenas. Um bongo e mais nada. Bem-vindos à música do espaço arrumada em gavetas. Easy-listening difícil de ouvir. Tive um gato que fazia “au” quando se tocava o “mi” de uma marimba. Trip hop é hop trip. Só trip. Samplar heavy metal faz mal? “De súbito, uma frase italiana veio-me à cabeça: ‘Un panello com scritta fise.’” E “I viel gut”? “Não há mais nenhuma frase, como esta, em toda a história da pop.” “Short Stories” é “música para o futuro e música para o passado”. Criancinhas brincam no pátio. After Dinner. “A música foi o meu primeiro sorriso.” Hermeto Pascoal faz música com galinhas. Fuschimuschi faz música com conceitos, a festa de Babette da hermenêutica do absurdo, enquanto ontologia do cosmo. “A música é o meu único divertimento.” E o nosso. Fuschimuschi Math-Ice, como ele mesmo se define, é um “voyeur”.

Doa a quem doer [Folk - Espanha]

Sons

19 de Setembro 1997
FOLK – ESPANHA

Doa a quem doer

Enquanto por cá os discos importantes de grupos nacionais vão surgindo com intervalos de meses ou mesmo de anos, ao nosso lado, na vizinha Espanha, acontece o oposto. Músicos e editoras, animação e formação convergem num propósito comum. Os resultados estão à vista. Clau de Lluna, Luétiga, Clorofolk, Atlântica e Doa são exemplos da melhor folk que se está a fazer do outro lado da fronteira.

Obertura” é o terceiro álbum dos catalães Clau de Lluna, sucedendo a “Cercle de Gal-la” e “Fica-Li Noia!”. Diga-se desde já que é o melhor álbum do grupo. Não podia ser mais auspiciosa a abertura desta “Obertura”, uma “suite” de dez minutos com este nome onde é manifesta a enorme evolução sofrida pelo grupo. Dividida em quatro movimentos, “Obertura” apresenta uma riqueza excepcional ao nível dos arranjos, sucedendo-se as surpresas: um solo inspirado de gaita-de-foles, “intermezzos” barrocos, cânticos religiosos, no fundo pondo em prática o principal propósito enunciado pelo grupo: “a procura de uma sonoridade folk actual e genuinamente catalã”. Os restantes 12 temas centram-se nas danças tradicionais, contradanças, valsas, “sardanas”, “jotas” e “passedobles” animados pela gaita-de-foles (“sac de gemecs”, estes catalães são loucos!...), sanfona, violino, acordeão, cordas dedilhadas e percussões. Há ainda polifonias (“Con no n’era”) e aproximações à música antiga (“Tocata i polca”) num baile para dançar até ao nascer do dia (Música Global, distri. MC – Mundo da Canção, 8).

“Diz a lenda que em todos os sábados, quando a noite cai, as bruxas da Cantábria saem, voando, em forma de aves, a caminho de Cernéula...” Deixem a racionalidade de fora, caso queiram aceder ao mundo de histórias contadas em voz baixa à lareira na estação dos frios e de danças de transmutação mágica, nos rituais da Primavera, dos Luétiga. Canções montanhesas, as “tonadas campurrianas” típicas da região, instrumentais sofisticados e vocalizações “a capella” são abordadas pelos seis elementos dos Luétiga, neste seu terceiro álbum, depois de “La Ultima Cajiga” e “Nel ‘El Vieju”, numa perspectiva de modernização que não trai a essência desta música profundamente enraizada na sua região natal, a Cantábria, a sul das Astúrias.
A instrumentação, como é regra neste género de grupos, é variada, incluindo a gaita-de-foles cantabro-asturiana, flauta e tamborim, pandeiretas, guitarras, violino, clarinete e acordeão. Tudo junto faz de “Cernéula” um álbum indispensável. Já agora, não liguem ao aviso, se pretendem bailar “a lo agarrau”, método considerado uma invenção do demónio, em que os jovens que dançavam deste modo “eram condenados irremediavelmente ao inferno” (Several, distri. MC – Mundo da Canção, 9).

Dois elementos dos Luétiga, Marcos Bárcena (guitarra, “whistle”, gaita-de-foles, “bodhran”, flauta e voz) e a, cremos que irlandesa, Kate Gass (violino, “whistle”, concertina, acordeão, pandeireta e voz), formaram o seu projecto pessoal, Atlântica, onde dão largas ao “pecado” da irlandização. Num álbum intitulado “Musica Celta Y de Otros Paises del Atlantico”, pois claro, os “reels” são a pontapé e as vocalizações em inglês fazem sorrir. Há quem goste. Nós achamos que, apesar de tudo, lá mais para norte, na ilha, soa mais convincente. Mas gostos não se discutem, como se costuma dizer... Condescenderam num tradicional da Galiza, noutro da Escócia, noutro de França, noutro ainda do Quebeque. O resto é tudo Irlanda e, para falar com franqueza, um pouco aborrecido e “celtichique” em demasia... (Several, distri. MC – Mundo da Canção, 6.)

Os Clorofolk, outro sexteto, no seu álbum de estreia, “Cambio de Agujas”, preocupam-se menos com os purismos regionalistas do que com uma abordagem renovada da música do mundo. Vão à Bretanha, à Roménia e, na vasta geografia espanhola, a Zamora e à Sanábria. E ao Oriente, que lêem de forma particular na sua “Luna de Oriente”. Rabih Abou-Khalil parou no centro do imenso planalto castelhano. E “El Monte de Venus” é tão inocente como a delicadeza das guitarras quer fazer crer? Progressivos (vestidos de Malicorne em “Esperanzas rotas”, pode lá ser, mas é um tema delicioso, o melhor, a par de “Apenas brilla la aurora”, uma oração de gaita-de-foles...), criativos e sem preconceitos, aos Clorofolk faltará, para já, soltar alguma adrenalina. Ou será que o defeito é da produção? (Saga, distri. MC – Mundo da Canção, 7.)

Resta darmos graças à reedição de “O Son da Estrela Escura”, dos Doa, um dos clássicos da música tradicional e antiga da Galiza, editado originalmente em 1979. Ainda um sexteto, os Doa recriavam então, com a sapiência de verdadeiros iniciados, as cantigas de Santa Maria, de Afonso X, as antiquíssimas “danças de espada”, com semelhanças melódicas e rítmicas com a música da Bretanha e da Provença, um romance francês do Caminho de Santiago, a “Carballesa” galega, a “danza do rosal”, a “Cabalgata de Ribadavia”, cantigas de amigo de Martín Codax e os célebres “Romance de doña ausenda” e “A Casadiña infiel”. Em todos eles sobreleva ora uma simplicidade tocante, ora a grandeza arquitectónica de uma catedral. Para ouvir com devoção. Obrigatório. (Clave, distri. MC – Mundo da Canção, 10)