08/08/2025

Dead Can Dance - Aion

 Pop

 

NOITE ANTIQUÍSSIMA

 

DEAD CAN DANCE
Aion
LP e CD, 4AD


 











            Música antiga. Sons eternos. Longe, muito longe das convulsões epilépticas do rock, da pop e do restante entulho dos tops. Emoção concebida de silêncios e pequenas eternidades partilhadas. Música do Silêncio. O álbum anterior, “The Serpent’s Egg”, deixava adivinhar a fuga em direção ao tempo das catedrais, mas ainda não o definitivo adeus às notas do presente. Os Dead Can Dance habitam uma realidade anterior, refratando cores astrais, reinventando instantes e mitos ancestrais. Brendan Perry e Lisa Gerrard dão corpo a uma arte sem corpo material. As formas do seu sonho recuam à Idade Média, a trovadores, a castelos de reis suspirando porque as princesas suas filhas são presas do dragão. “Aion” foi gravado na Irlanda, terra das verdes lendas e da magia. Afasta-se deliberadamente do ritmo frenético dos dias atuais e citadinos. Renega sem apelo a cultura pop que se podia esperar estivesse na sua origem. Alicerça-se num passado revisto à luz da sensibilidade de dois jovens do século 20, para quem fazer música é a constante reatualização de uma dádiva de amor.

            A voz de Lisa Gerrard não encontra paralelo no resto do mundo das músicas para consumo das massas. Nem a sua maneira de cantar. A não ser que franqueemos as portas do outro mundo, da música antiga dos mestres Clemencic, Paniagua, Kecskes e das cantigas de amor e amigo de Figueras ou Esther Lamandier. “The Arrival and the Reunion”, “The End of Words”, “Wilderness” são magníficos exemplos da arte de vencer, pelo canto, a gravidade. Seria cântico gregoriano se não fosse interdito ao sexo que, como Duras literalmente define, “ocupa totalmente o espaço”, ao contrário do “forte” que “por ele passa e o atravessa” – o trespassa. Lisa Gerrard ocupa todo o espaço, abraçando com a alma inteira a essência dos primórdios do cantar. “The Song of the Sybil” (referenciada na capa como tradicional catalã do século 16, mas cuja origem remonta à Roma antiga, sucessivamente recuperada pelos monges ao longo de toda a Idade Média e interpretada em disco por Monserrat Figueras, acompanhada pelos Hesperyon XX) demonstra até que ponto a voz feminina pode abarcar as vastidões. Longa e solene reverberação vibrando na noite antiquíssima. E “Radharc”, mais mediterrânica e solar, de sugestões árabes, tão próximas também do berço medievo.

            Ao homem só foi concedido o privilégio de dizer as palavras de Luis de Góngora em “Fortune Presents Gifts not According to the Book” e ofuscar a luz divina em “Black Sun”, dos poucos temas em que a eletrónica nos recorda que vivemos no século da técnica e das grandes realizações inúteis. Porque no resto repicam os sinos de igreja e gemem as gaitas-de-foles em “As the Bell Rings the Maypole Spins” ou rangem profundamente as sanfonas em “Radharc”. “The Garden of Zephirus” é um interlúdio ambiental cantado pelos pássaros, pelo vento e pelos pequenos seres da Natureza. Sem palavras. Como “Saltarello”, dança italiana de autor anónimo do século 14, de fazer saltar bruxas, fadas, virgens pálidas e douradas e o ouvinte frente às colunas, se despreconceituado e capaz de compreender que o tempo, como Parménides dizia, é uma mera ilusão. A capa é belíssima – um pormenor do fresco de Hyeronimus Bosch, “The Garden of Delights” e “Aion”, a mais bela e inebriante flor desse jardim.

 

QUARTA-FEIRA, 25 JULHO 1990 VIDEODISCOS

O muro espetáculo [Roger Waters]

 CULTURA SEGUNDA-FEIRA, 23 JULHO 1990

 

200 mil ao vivo e milhões pela TV assistiram ao megaconcerto de Berlim

 

O muro espetáculo

 

Inacreditável era a expressão mais ouvida na Praça de Potsdamer, em Berlim, para qualificar a monumental encenação de “The Wall”, levada a cabo por Roger Waters, Leonard Cheshire e uma companhia de estrelas empenhada em fazer do dia 21 de Julho uma data inolvidável.

 

Se nem tudo foi perfeito, também não desmereceu da proverbial capacidade organizativa germânica. A Imprensa não se pode queixar. Foi estragada com mimos. No hotel três bonitas alemãs informavam sobre tudo, davam papéis e ainda por cima sorriam. Já no local do espetáculo, uma tenda gigantesca montada atrás do palco, fazia estendal de iguarias e bebidas à disposição dos esfaimados e sedentos jornalistas. Não se pense naquelas barracas “à portuguesa”, do estilo “coratos, febras e tintol”. Os alemães são um pouco diferentes e, quando querem, primam pelo requinte. Que, no caso, chegou ao ponto de arranjos florais dispostos sobre as mesas e o serviço de valquírias solícitas e peito “prateleira-tapa-a-visão”.

            Frente ao palco a multidão. Cerca de 200 000 pessoas estendiam-se pelo imenso recinto até perder de vista, algumas afastadas centenas de metros do palco. A festa começou logo de tarde. Primeiro só com o público, feliz apenas por estar ali, perplexo diante de um muro de 170 x 25m, quilómetros e toneladas de cabos, torres, andaimes, ecrãs e holofotes. Cenário grandioso pronto para um dos maiores espetáculos alguma vez realizados no planeta.

 

À espera da noite

espanto

 

            O ambiente geral era o de um novo Woodstock. Pacifismo, cor, bolas de sabão, corpos despidos e muita ideologia à mistura. Não se sabe se houve algum parto. Celebrava-se (obviamente) a queda do muro mas também algo mais, difusamente sentido como liberdade ainda mal saboreada. Berlim, após décadas de isolamento exorcizava-se e sublimava velhos medos e ânsias dissimuladas. Como a personagem criada por Roger Waters, condenada, após o julgamento, a enfrentar o outro lado. Crime e castigo. Como em Nuremberga. No futuro, como será?

            Os Frumpy, The Hooters, The Band e The Chieftains encheram a tarde e a paciência dos poucos que se dignaram dar-lhes atenção. Os “The Band”, pelo passado ilustre, mereciam mais respeito. Ninguém lhes ligou nenhuma. Quanto aos The Chieftains, a sua música tradicional da Irlanda provou que é diferente tocar num pub para 50 pessoas de copo de whisky na mão e para 200 000 à torreira do sol. A harpa e a gaita-de-foles celebraram como puderam o sol que se escondia. Mas do que toda a gente estava à espera era que a noite do espanto chegasse. Por fim, desceu a escuridão e fez-se luz. Com meia-hora de atraso em relação ao previsto, fogo-de-artifício, explosões e a queda de minúsculos para-quedistas. A partir deste momento o mundo inteiro viu pela televisão.

            A mobilidade da câmara televisiva permitiu a milhões de espetadores ver muito mais que os milhares reunidos na Potsdamer Platz. Pormenores como “close-ups” sobre os músicos ou do que se passava por detrás do muro, escaparam ao olho nu dos presentes no local. O concerto começou mal, com falta de som de retorno, levando mesmo a que Ute Lemper se recusasse a cantar o tema que lhe era destinado. Mas tudo bem: afinal o que todos queriam era ver a desmesura do espetáculo, os fumos, as luzes e os helicópteros – a construção da ilusão.

 

Sentir a História

 

            Por outro lado, era importante participar, “sentir” a História, através da encenação da história de Pink (alter-ego de Waters em “The Wall”), inserida num novo contexto. O muro tornou-se plural, símbolo fácil da coerção da liberdade. A réplica reduzida a escombros certifica a queda do original. O ritual da encenação confirma o facto histórico. Paradoxo: a ilusão certifica o real.

            Na primeira parte, foram momentos altos o aparecimento do boneco insuflável representando “o professor”, durante a prestação de Cindy Lauper em “Another Brick in the Wall” e a sentida interpretação de Joni Mitchell em “Goodbye Blue Sky”. Bryan Adams cumpriu a sua parte e Jerry Hall fez de “groupie” enquanto Waters/Pink deitava o televisor pela janela em “One of my Turns”, uma das melhores canções do disco.

           

“Fomos nós que o derrubámos”

 

            No intervalo publicitaram-se a justa causa do “Memorial Fund for Disaster Relief” e a British Airways. Imagens projetadas sobre o paredão, de dor e sofrimento de pessoas concretas, e de figurantes anónimos formando a imagem de uma marca. O muro normalizou, nivelando o horror e a banalidade. Impensável e dispensável.

            A ambulância e a seringa descomunal de “Comfortably Numb” foram os adereços que conduziram ao clímax de “Bring the Boys Back Home”, com orquestra, coro e uma banda militar soviética tocando em crescendo enquanto no muro se projetavam imagens e nomes alusivos às vítimas da guerra. Em “Run like Hell” e “Waiting for the Worms” reinou o porco insuflável de olhos vermelhos e a ameaça do totalitarismo tresloucado.

            No julgamento destacaram-se Marianne Faithfull, no papel de mãe e a figura de Thomas Dolby em contorções de pesadelo. No apoteótico derrubar final de “The Wall”, a multidão rejubila. “Fomos nós que o derrubámos” – parecem gritar milhares de gargantas alemãs, exultantes na recuperação da identidade perdida.

            O espetáculo encerrou com um “Do They Know it’s Christmas” de ocasião, as personagens “más” arrependidas, cantando em coro as virtudes da paz reencontrada e jurando que a maré mudou. Resta saber para que lado.

            Tudo acabou como começou – com fogo-de-artifício e focos de holofotes varrendo o céu de Berlim.