Pop
NOITE ANTIQUÍSSIMA
Aion
LP e CD, 4AD
Música antiga. Sons eternos. Longe,
muito longe das convulsões epilépticas do rock, da pop e do restante entulho
dos tops. Emoção concebida de silêncios e pequenas eternidades partilhadas.
Música do Silêncio. O álbum anterior, “The Serpent’s Egg”, deixava adivinhar a
fuga em direção ao tempo das catedrais, mas ainda não o definitivo adeus às
notas do presente. Os Dead Can Dance habitam uma realidade anterior, refratando
cores astrais, reinventando instantes e mitos ancestrais. Brendan Perry e Lisa
Gerrard dão corpo a uma arte sem corpo material. As formas do seu sonho recuam
à Idade Média, a trovadores, a castelos de reis suspirando porque as princesas
suas filhas são presas do dragão. “Aion” foi gravado na Irlanda, terra das
verdes lendas e da magia. Afasta-se deliberadamente do ritmo frenético dos dias
atuais e citadinos. Renega sem apelo a cultura pop que se podia esperar
estivesse na sua origem. Alicerça-se num passado revisto à luz da sensibilidade
de dois jovens do século 20, para quem fazer música é a constante reatualização
de uma dádiva de amor.
A voz de Lisa Gerrard não encontra
paralelo no resto do mundo das músicas para consumo das massas. Nem a sua
maneira de cantar. A não ser que franqueemos as portas do outro mundo, da
música antiga dos mestres Clemencic, Paniagua, Kecskes e das cantigas de amor e
amigo de Figueras ou Esther Lamandier. “The Arrival and the Reunion”, “The End
of Words”, “Wilderness” são magníficos exemplos da arte de vencer, pelo canto,
a gravidade. Seria cântico gregoriano se não fosse interdito ao sexo que, como
Duras literalmente define, “ocupa totalmente o espaço”, ao contrário do “forte”
que “por ele passa e o atravessa” – o trespassa. Lisa Gerrard ocupa todo o
espaço, abraçando com a alma inteira a essência dos primórdios do cantar. “The
Song of the Sybil” (referenciada na capa como tradicional catalã do século 16,
mas cuja origem remonta à Roma antiga, sucessivamente recuperada pelos monges
ao longo de toda a Idade Média e interpretada em disco por Monserrat Figueras,
acompanhada pelos Hesperyon XX) demonstra até que ponto a voz feminina pode
abarcar as vastidões. Longa e solene reverberação vibrando na noite
antiquíssima. E “Radharc”, mais mediterrânica e solar, de sugestões árabes, tão
próximas também do berço medievo.
Ao homem só foi concedido o
privilégio de dizer as palavras de Luis de Góngora em “Fortune Presents Gifts
not According to the Book” e ofuscar a luz divina em “Black Sun”, dos poucos
temas em que a eletrónica nos recorda que vivemos no século da técnica e das
grandes realizações inúteis. Porque no resto repicam os sinos de igreja e gemem
as gaitas-de-foles em “As the Bell Rings the Maypole Spins” ou rangem
profundamente as sanfonas em “Radharc”. “The Garden of Zephirus” é um
interlúdio ambiental cantado pelos pássaros, pelo vento e pelos pequenos seres
da Natureza. Sem palavras. Como “Saltarello”, dança italiana de autor anónimo
do século 14, de fazer saltar bruxas, fadas, virgens pálidas e douradas e o
ouvinte frente às colunas, se despreconceituado e capaz de compreender que o
tempo, como Parménides dizia, é uma mera ilusão. A capa é belíssima – um
pormenor do fresco de Hyeronimus Bosch, “The Garden of Delights” e “Aion”, a
mais bela e inebriante flor desse jardim.
QUARTA-FEIRA,
25 JULHO 1990 VIDEODISCOS