Pop
A SOMBRA DO GUERREIRO
ONCE
LP e CD, Awareness
A época da canção de
intervenção atingiu o auge na década de 60. Bob Dylan foi o seu profeta e teve
seguidores. Em Inglaterra, Billy Bragg não se cala e espeta o dedo em todas as
feridas. Roy Harper é um senhor já de certa idade, mas nem por isso deixa de
incomodar o “establishment”. “Once” é daqueles discos em que as palavras valem
mais do que a música. Há uma mensagem a propagar, valores a defender, podres a
denunciar.
Segue um esquema simples, mas
eficaz. O habitual neste campo de guerrilha musical: voz, guitarra a
acompanhar, e os arranjos para lembrar que o artista também não descura o
aspeto formal da embalagem. Roy Harper não é um cantor qualquer. O seu nome é
respeitado, tem currículo. Apesar disso, e de ter já gravado qualquer coisa
como vinte álbuns (entre os quais os clássicos “Folkjokeopus”, “Flat, Baroque
and Bersek” e “Stormcock”, ou o mais tardio “Bullinamingvase”), afirma que se
lhe torna “cada vez mais difícil reconciliar-se com o negócio”. Insistiu em que
este disco não fosse gravado nem distribuído por qualquer das grandes
companhias.
Das dez canções que o integram, só
três não criticam qualquer coisa. A questão que à partida se levanta é a mesma
de sempre: até que ponto funciona e vale a pena uma atitude deste tipo, em que
a música popular se arvora como arma, quando as pessoas o que procuram cada vez
mais é a evasão. Roy Harper, idealista, acha que sim e que “por vezes é
importante ser guerreiro”. Está farto de “assistir ao espetáculo da megalomania
fascista” e de “respirar o mesmo ar que o dos políticos, que condenam os
desprotegidos, exploram os necessitados e poluem tudo aquilo em que tocam”. Há
uma fúria sincera neste disparar de acusações. Vê-se pela cara de mau que
ostenta na capa.
Coloca-se o problema de que,
concorde-se ou não com as posições assumidas, se é confrontado com a evidência
de que, para além das palavras, o álbum não é particularmente exaltante.
Limita-se, na maioria dos temas, ao acompanhamento da guitarra e, nalguns
deles, os nomes de David Gilmour e Kate Bush funcionam como chamariz.
Os poemas são duros, claro, as
palavras incisivas e agrestes. Referem-se explicitamente os nomes de Dung,
Margaret, Helmut e Mikhail. Em “The Black Cloud of Islam”, o mais violento de
todos, que o próprio Harper hesitou em gravar, temendo ser acusado de racista e
anti-islâmico, a metáfora em que se tornou hoje a condenação de Salman Rushdie
serve como ponto de partida para a denúncia radical das atrocidades cometidas
no seio da sociedade dirigida pelo Ayatollah, em nome de uma divindade
sanguinária.
A acusação contra o fanatismo e a
intolerância religiosa constitui, de resto, a pedra de toque do disco. Encontra
o seu contraponto na homenagem, em “Berliners”, a todos aqueles que, nos
últimos 50 anos, combateram em prol da construção da paz e do definitivo
irradiar das guerras civis no Velho Continente. E aproveita, como já era de
esperar, a deixa que agora a queda do Muro sempre proporciona, para celebrar “a
demolição de todas as barreiras e a passagem pacífica dos tempos escuros para
um futuro brilhante”. Não há dúvida de que o homem, além de idealista, é
ingénuo. Aplauda-se, no entanto, o otimismo e o empenhamento que denota em
ajudar a construir um mundo melhor. Se não fossem os discos, o que seria de
nós?
VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA,
1 AGOSTO 1990
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