SEXTA-FEIRA,
3 AGOSTO 1990 local
RTP
Música para camaleões
DAVID
ROBERT JONES, aliás, David Bowie, muda de personalidade como quem muda de
roupa. Ziggy Stardust é a máscara mais conhecida mas devemos procurar na
própria música os genes das constantes metamorfoses. Salta com a agilidade que
só a distanciação permite do “glam” para a “soul”, do “rock” para as
experimentações eletrónicas mais radicais. É
alienígena, o homem que veio do espaço. Só “major Tom” lhe faz frente,
quando indefeso retira a maquilhagem, frente ao espelho. Adolescente, vindo das
estrelas armado de guitarra elétrica, toca num bar em Marte. Inquilino da
loucura. Palhaço a chorar na praia, na noite americana. Os astros são assim,
mudam constantemente, não sofrem, do alto do Olimpo. De vez em quando,
raramente, vem a notícia nos jornais: “Rock ‘n’ roll Suicide”. São loucos, os
artistas – comentam aliviados os medianos – e correm a comprar o disco póstumo
acabado de editar.
Com David Bowie é assim, tudo a
fingir – camuflagem. A visão do conjunto é possível somente através da
fotografia aérea.
A atração pela loucura ganhou-a do
irmão Terry, a quem dedicou “All the Madmen”. “Bewlay Brothers”, ele o são,
“Alladin Sane”, budista, de rosto raiado e corpo sem sexo. Ao outro deixem-lhe
os Valium e o recetor de TV. Mas podem trocar-se os papéis, como ele gosta, e
partir para o azul escuro, depois negro, das profundezas do céu. Contagem
decrescente e lá vai o major para nunca mais voltar. “Space Oddity”, dele e de
Kubrick.
O duplo da carne e osso das imagens
vendeu o mundo, disfarçado de mulher, vestida de noite, recostada no sofá, dama
proibida na capa que teve de mudar. “Hunky Dory”, andrógino ainda, em
dedicatórias surreais a Dylan, Warhol, Velvets, “Oh you Pretty Thing”, estavas
demasiado à frente para te conseguirem ver de frente, apenas seguiam o teu
rasto. De poeira de estrelas, “stardust”, “Starman”, sempre as estrelas e tu
Ziggy sempre a olhares para o seu brilho refletido nas latejoulas do fato com
que iludes as multidões. Enganaste-os a todos, até D. A. Pennebaker que pensou
que era tudo a sério e fez um filme do espetáculo onde já não participavas.
“Ziggy Stardust – The Motion Picture” soa a Hollywood, parece condizer, mas em
ti nada condiz com o que parece. Deixemo-lo cantar “Jean (Genet) Genie” e
imitar os seus iguais nas versões de “Pin Ups”: Who, Yardbirds, Pink Floyd, com
Angie imitando o anjo, na pose da capa.
O cinema sim, sempre, mas também a
literatura. “1984”, de Orwell. Bowie antiutópico, violento, “Rebel Rebel”,
corpo de cão maldito, “Diamond Dogs” raivosos, exigindo carne fresca e eles, os
fãs, obedecem e dão-se em sacrifício, em troca do prazer. Fingiu tornar-se
jovem e humano, com a alma que os amrecianos gostam, em plástico. “Young Americans”, “Plastic Soul”, finalmente a
“Fame”, com ajuda de John Lennon. “Golden
Years”, tempo para regressar à terra pela mão de Nicolas Roeg.
Diz-se
que quando chegou a Londres, à estação Vitória, saudou como os nazis. Ele negou
e partiu para outras estações, “Station to Station” até Berlim. Esperavam-no
Robert Fripp e Brian Eno. Mutante cibernético, converteu-se à fidelidade
matemática da máquina, tornando-se ele próprio mecanismo na trilogia do
demonismo sintético: “Low”, “Heroes” e “Lodger”, tratado na arte da
despersonalização. Assassino da alma, “yassassin” da emoção piegas do mundo
pequeno, super-homem de olhar azul gelado de vidro que ganhou o brilho da
pantera em “Cat People” de Paul Schrader. Fera devoradora, Bowie trabalha, toca
e canta com Pat Metheny, Giorgio Moroder, Lou Reed, Tina Turner, Bing Crosby.
Torna-se “gigolo”, soldado inglês de quem o oficial japonês gosta e
homem-elefante, como os monstros de “Scary Monsters, Super Creeps”, o mais
terrível de todos é “Baal” de Bertolt Brecht. Mas também figura real entre os
bonecos de “Labyrinth”. Dança na rua com Mick Jagger como um “Absolute
Beginner”. E quando o rodopio acaba, pega no braço da rapariga e diz-lhe
simplesmente: “Let’s Dance”, de preferência “Tonight”.
Canal
1, às 14h50
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