Folk
A
DISCOTECA
MÚSICA DA TERRA
Rock, pop, o estardalhaço, a rádio sempre aos
guinchos, as banalidades semanais, acabam por cansar. Saturam-se os ouvidos,
esgota-se a paciência e procura-se avidamente o refrigério. Vasculham-se os
arquivos e de repente, coberto de poeira, encontramos o rótulo já esquecido:
“Folk”.
Sorrimos e recordamos,
nostálgicos, os anos passados. Era na passagem de uma década para a seguinte.
Há vinte anos, mais ou menos. Vivia-se a época da música progressiva.
Considerava-se progressiva toda a música que incluísse flautas, cítaras,
Mellotron e o obrigatório “Moog synthesizer”. O rock atravessava um momento de
descrédito. Na Inglaterra, um grupo de jovens a quem os ritmos urbanos não
diziam grande coisa, resolveu olhar para o passado e reviver a tradição da sua
terra. De fora, chamaram ao movimento “folk revival”. Fairport Convention,
Steeleye Span, Trees, Tudor Lodge hesitavam entre o folclore e o rock, logo,
praticavam “folk rock”. Foram aceites como mais um bando de malucos, que outro
nome se podia dar a quem se preocupava com os costumes dos “velhotes”, coisas
antigas, névoas e lendas ancestrais? O movimento foi moda e, como todas as
modas, passou. Esgotado o tempo a que tinha direito, a corrente fluiu,
subterrânea. Na nova década em que entrámos, de novo a cíclica explosão. Por cá
chegam constantemente novos discos e aumenta a legião dos “maluquinhos da
folk”. A Nébula foi pioneira, no capítulo das importações. Seguiram-se-lhe a
VGM, a Mundo da Canção, do Porto, a cooperativa Etnia, de Caminha, e agora
também a Contraverso entra na corrida, dispondo já em stock de preciosidades do
catálogo “Topic”, dos mais antigos e prestigiados das Ilhas Britânicas.
Sons rurais
Martin Carthy, conhecem-no os mais
sabedores destas antiguidades musicais, dos Steeleye Span, onde cantava e
tocava guitarra. Mas talvez se desconheça que gravou inúmeros álbuns a solo ou
acompanhado pelo violinista, ex-líbris dos Fairport Convention, Dave Swarbrick.
“Second Album”, “But Two Came by” e “Prince Heathen”, estes com a participação
do homem do arco que consegue tocar em quinta velocidade com o cigarro aceso ao
canto da boca, sem se atrapalhar, e “Byker Hill”, “Crown of Horn”, “Out of the
Cut” e “Right of Passage”, de Carthy a solo, os dois últimos anteriormente já
importados pela Nébula. A voz de entoações ligeiramente nasaladas como convém
neste tipo de música e a mestria guitarrística do ex-Steeleye Span encontram na
versatilidade e virtuosismo de Swarbrick o contraponto ideal na interpretação
de um reportório constituído principalmente por baladas do cancioneiro rural
inglês ou (em menor escala) da tradição medieval palaciana. Recente e abordando
a matéria de forma original, o quinteto Brass Monkey, de que faz parte e que integra
também John Kirkpatrick, utiliza instrumentos de sopro no desenvolvimento das
jigas e “reels” tradicionais. Se soubessem, os colegas do jazz corariam, pela
heresia do gesto, pela profanação do saxofone sagrado, nascido com o destino
traçado – espelhar e cantar a alma negra através de uma música que, por direito
e origem, lhe pertence.
Kirkpatrick, especialista da
anglo-concertina e do acordeão de botões, fez parte dos Albion Band e colabora
desde longa data com a cantora Sue Harris, que também toca oboé e saltério.
Imprescindíveis são os álbuns “Facing the Music” (só de instrumentais), “Shreds
& Patches” e “Stolen Ground”, outras tantas corridas por montes e vales no
tempo que medeia entre a magia do meio-dia e o piar do mocho no campanário da
igreja, prenunciando a meia-noite.
Nos lagos
Robin Dransfield, outrora metade do
duo formado com o seu irmão Barry, é outro vocalista de inegáveis talentos,
acrescidos aos de arranjador e intérprete. Provam-no as canções de “Tidewave”,
antigas, sentidas, vibrantes nas cordas da guitarra esquecida do presente, no
poder evocativo de uma sanfona trazida do reino da França. Peça indispensável
na coleção de um apreciador que se preze.
Mais ocidental, a Irlanda assombra
pelo mistério de castelos perdidos no meio de escuras florestas, das rochas com
histórias para contar, do mar infinito de cujo fundo emergem lendas de sereias
e pescadores unidos por inconfessáveis laços. E de muitos lagos, sem “Nessies”,
mas encantados por elfos, duendes e fadas, seres que a imaginação tece e por
isso são reais. Os Boys of the Lough, ao lado dos Chieftains, afirmam-se como
um dos mais antigos e conceituados mestres do “irish folk” e o violinista Aly
Bain, um dos seus nomes lendários. “In the Tradition” e “Open Road” são a um
tempo conservadores e inovadores no modo como interpretam o folclore irlandês,
recorrendo exclusivamente à instrumentação tradicional e à clássica combinação
violino/”tin whistle”/flauta, para criar sequências respeitadoras dos cânones,
na alternância entre as danças e as baladas vocalizadas. Mais tarde entraria em
cena a gaita-de-foles de Christy O’Leary, enriquecendo ainda mais o som dos
Boys.
Tradição presente
Os House Band não serão tão
ortodoxos, mas talvez até por isso a sua música revela-se ainda mais excitante.
Os álbuns “Pacific” e “Word of Mouth” divergem na apreciação das temáticas
originais, no primeiro caso vogando na serenidade dos “airs” interpretados pelo
tin whistle e pela flauta, no segundo soltando-se em extroversões instrumentais
e vocais em que a gaita-de-foles e a bombarda fazem a festa. Refira-se por
último “Fire in the Glen”, do trio composto por Andy Stewart, Phil Cunningham
(dos Silly Wizard) e Manus Lunny, semelhante aos Planxty nas vocalizações do
primeiro, despreconceituado na utilização do sintetizador e dos teclados
eletrónicos apostados em construir uma música que, embora mais sofisticada, não
perde de vista as origens que lhe estão na base.
A audição de qualquer destes discos
constitui uma oportunidade única para todos aqueles interessados em conhecer as
diferentes vias e ramificações de um género que constantemente se renova e
enriquece, apostado, pelo espírito, o sal e a pedra, na edificação do templo
dos celtas, de paredes sólidas, totalmente transparentes. Como um prisma de
cristal refractando a luz branca nas sete cores do arco-íris.
QUARTA-FEIRA,
8 AGOSTO 1990 VIDEODISCOS
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