CULTURA SEGUNDA-FEIRA, 23 JULHO 1990
200 mil ao vivo e milhões pela TV assistiram ao
megaconcerto de Berlim
O muro espetáculo
Inacreditável era
a expressão mais ouvida na Praça de Potsdamer, em Berlim, para qualificar a
monumental encenação de “The Wall”, levada a cabo por Roger Waters, Leonard
Cheshire e uma companhia de estrelas empenhada em fazer do dia 21 de Julho uma
data inolvidável.
Se nem tudo foi perfeito, também não desmereceu da
proverbial capacidade organizativa germânica. A Imprensa não se pode queixar.
Foi estragada com mimos. No hotel três bonitas alemãs informavam sobre tudo,
davam papéis e ainda por cima sorriam. Já no local do espetáculo, uma tenda
gigantesca montada atrás do palco, fazia estendal de iguarias e bebidas à
disposição dos esfaimados e sedentos jornalistas. Não se pense naquelas
barracas “à portuguesa”, do estilo “coratos, febras e tintol”. Os alemães são
um pouco diferentes e, quando querem, primam pelo requinte. Que, no caso,
chegou ao ponto de arranjos florais dispostos sobre as mesas e o serviço de
valquírias solícitas e peito “prateleira-tapa-a-visão”.
Frente
ao palco a multidão. Cerca de 200 000 pessoas estendiam-se pelo imenso recinto
até perder de vista, algumas afastadas centenas de metros do palco. A festa
começou logo de tarde. Primeiro só com o público, feliz apenas por estar ali,
perplexo diante de um muro de 170 x 25m, quilómetros e toneladas de cabos,
torres, andaimes, ecrãs e holofotes. Cenário grandioso pronto para um dos
maiores espetáculos alguma vez realizados no planeta.
À espera da noite
espanto
O
ambiente geral era o de um novo Woodstock. Pacifismo, cor, bolas de sabão,
corpos despidos e muita ideologia à mistura. Não se sabe se houve algum parto.
Celebrava-se (obviamente) a queda do muro mas também algo mais, difusamente
sentido como liberdade ainda mal saboreada. Berlim, após décadas de isolamento
exorcizava-se e sublimava velhos medos e ânsias dissimuladas. Como a personagem
criada por Roger Waters, condenada, após o julgamento, a enfrentar o outro
lado. Crime e castigo. Como em Nuremberga. No futuro, como será?
Os
Frumpy, The Hooters, The Band e The Chieftains encheram a tarde e a paciência
dos poucos que se dignaram dar-lhes atenção. Os “The Band”, pelo passado
ilustre, mereciam mais respeito. Ninguém lhes ligou nenhuma. Quanto aos The
Chieftains, a sua música tradicional da Irlanda provou que é diferente tocar
num pub para 50 pessoas de copo de whisky na mão e para 200 000 à torreira do
sol. A harpa e a gaita-de-foles celebraram como puderam o sol que se escondia.
Mas do que toda a gente estava à espera era que a noite do espanto chegasse.
Por fim, desceu a escuridão e fez-se luz. Com meia-hora de atraso em relação ao
previsto, fogo-de-artifício, explosões e a queda de minúsculos para-quedistas.
A partir deste momento o mundo inteiro viu pela televisão.
A
mobilidade da câmara televisiva permitiu a milhões de espetadores ver muito
mais que os milhares reunidos na Potsdamer Platz. Pormenores como “close-ups”
sobre os músicos ou do que se passava por detrás do muro, escaparam ao olho nu
dos presentes no local. O concerto começou mal, com falta de som de retorno,
levando mesmo a que Ute Lemper se recusasse a cantar o tema que lhe era
destinado. Mas tudo bem: afinal o que todos queriam era ver a desmesura do
espetáculo, os fumos, as luzes e os helicópteros – a construção da ilusão.
Sentir a História
Por
outro lado, era importante participar, “sentir” a História, através da
encenação da história de Pink (alter-ego de Waters em “The Wall”), inserida num
novo contexto. O muro tornou-se plural, símbolo fácil da coerção da liberdade.
A réplica reduzida a escombros certifica a queda do original. O ritual da
encenação confirma o facto histórico. Paradoxo: a ilusão certifica o real.
Na
primeira parte, foram momentos altos o aparecimento do boneco insuflável
representando “o professor”, durante a prestação de Cindy Lauper em “Another
Brick in the Wall” e a sentida interpretação de Joni Mitchell em “Goodbye Blue
Sky”. Bryan Adams cumpriu a sua parte e Jerry Hall fez de “groupie” enquanto
Waters/Pink deitava o televisor pela janela em “One of my Turns”, uma das
melhores canções do disco.
“Fomos nós que o derrubámos”
No
intervalo publicitaram-se a justa causa do “Memorial Fund for Disaster Relief”
e a British Airways. Imagens projetadas sobre o paredão, de dor e sofrimento de
pessoas concretas, e de figurantes anónimos formando a imagem de uma marca. O
muro normalizou, nivelando o horror e a banalidade. Impensável e dispensável.
A
ambulância e a seringa descomunal de “Comfortably Numb” foram os adereços que
conduziram ao clímax de “Bring the Boys Back Home”, com orquestra, coro e uma
banda militar soviética tocando em crescendo enquanto no muro se projetavam
imagens e nomes alusivos às vítimas da guerra. Em “Run like Hell” e “Waiting
for the Worms” reinou o porco insuflável de olhos vermelhos e a ameaça do
totalitarismo tresloucado.
No
julgamento destacaram-se Marianne Faithfull, no papel de mãe e a figura de
Thomas Dolby em contorções de pesadelo. No apoteótico derrubar final de “The
Wall”, a multidão rejubila. “Fomos nós que o derrubámos” – parecem gritar
milhares de gargantas alemãs, exultantes na recuperação da identidade perdida.
O
espetáculo encerrou com um “Do They Know it’s Christmas” de ocasião, as
personagens “más” arrependidas, cantando em coro as virtudes da paz
reencontrada e jurando que a maré mudou. Resta saber para que lado.
Tudo
acabou como começou – com fogo-de-artifício e focos de holofotes varrendo o céu
de Berlim.
Sem comentários:
Enviar um comentário