Pop Rock
18 de Janeiro de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa
18 de Janeiro de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa
Banda do Casaco Coisas do Arco da Velha
Como foi
Em plena euforia do pós-25 de Abril e dos chamados cantores de intervenção, um grupo com o estranho nome de Banda do Casaco lançava em 1976 uma obra inclassificável, com o título, talvez um pouco “démodé”, sem dúvida bastante pouco “engagé”, “Coisas do Arco da Velha”. Nuno Rodrigues, autor das músicas, e António Pinho, autor dos textos, foram desde sempre considerados a dupla de cérebros que deu vida ao projecto.
Celso de Carvalho, violoncelista, desmistifica porém a opinião corrente a apresenta a sua versão pessoal sobre os detentores do poder no seio do grupo (foi-nos impossível contactar tanto Nuno Rodrigues como António Pinho). Segundo ele, passados 20 anos, “o que ressalta é a participação exuberante do Armindo Neves, na guitarra, e a inovação de um violoncelo electrificado com pedal ‘wah-wah’, coisa que nunca tinha acontecido”. Acha que “20 anos não diluíram a ousadia que havia no disco”, ao mesmo tempo que salienta “os textos do António Pinho, que atingiam o supra-sumo do trocadilho, apesar de seguirem sempre uma certa tradição etnográfica”. Celso de Carvalho recorda uma ocasião em que “ouviu uma miudinha de sete anos cantar a ‘Cantiga d’embalar avozinhas’”, o que o fez ficar “simultaneamente perturbado e feliz, por sentir que a Banda do Casaco atingira uma certa imortalidade”.
“Coisas do Arco da Velha” apresentou uma formação diferente da do anterior “Do Benefício dos Vendidos no Reino dos Bonifácios”. Na ficha técnica figura o nome de Cândida Soares, que hoje as pessoas conhecem como Cândida Branca-Flor, apelido artístico que a cantora aproveitou do título do tradicional algarvio “Romance da Branca-Flor”. “Na altura ela, vá lá, não era bem ‘groupie’, mas fazia parte de um grupo de amigos que acompanhavam não só a Banda do Casaco como o Plexus, que nessa época trabalhava no bar Luisiana, em Cascais. Não sei como, alguém percebeu que tinha uma voz engraçada.” Entretanto Carlos Zíngaro saíra, sendo substituído no violino por Mena Amaro, a convite de Nuno Rodrigues.
Se é verdade que o álbum demonstra uma harmonia e um equilíbrio musicais notáveis, o facto é que, segundo Celso de Carvalho, o ambiente que então reinava não era o melhor. “As pessoas, devido às alterações na formação, não se conheciam ainda bem e daí resultaram algumas fricções, sobretudo ao nível musical.” “O problema maior” era, para o violoncelista, “sobretudo o Pinho e o Nuno Rodrigues serem as cabeças reinantes. Eram eles que tinham sempre a última palavra, em qualquer tipo de decisões. Nas capas vinha ‘arranjos colectivos’, o que era uma grande treta”.
Esta situação terá provocado alguns casos menos agradáveis. De acordo com o músico, “todos os que participaram desde sempre no projecto deveriam ter tido uma remuneração, isto em termos materiais, e um reconhecimento muito diferente do que tiveram. Houve sempre uma grande carolice, tudo muito na base do amor à arte, mas a verdade é que, vendo as coisas com distanciamento, fomos enrolados com aquela do ‘eh pá, não há muitas garantias, não há condições, vamos fazendo e tal, tudo bem…”
E continua: “O próprio José Fortes [engenheiro de som], enquanto no primeiro disco foi de uma entrega total, de uma comunhão de ideias absoluta, neste disco já estava menos paciente, por causa das questiúnculas que havia, das tricas entre uns e outros. Havia mau ambiente. O Pinho também se tinha chateado com o Zíngaro.” A realidade é que as tensões existentes no seio do grupo – “questões que o público não sabe a ainda bem” – não transpareceram para a música, algo que Celso de Carvalho reconhece. Embora acrescente que, “a partir daí, quando se começaram a misturar outros problemas de ordem pessoal, a coisa já não fosse tão boa”.
Celso afirma que nessa altura chamava ao grupo “Banda do Farrapo”, “tal era o ambiente que se vivia”. E prossegue: “O Pinho e o Nuno, muitas vezes, tomavam atitudes absolutamente precipitadas e despóticas. Uma vez pediram ao Mike Sargeant para fazer uma orquestração para uma das músicas, que não era absolutamente necessária. Para que é que era preciso chamar uma pessoa de fora, que fazia aquele tipo de música ligeira que toda a gente sabe e que não tinha nada a ver com o resto de grupo? Depois entravam em choque com o resto do pessoal. Já tínhamos ensaiado de outra maneira, era preciso remodelar tudo para ficar como os outros queriam.” Atribulações de uma banda diferente de todas as outras. Talvez por isso a sua música, e em particular a de “Coisas do Arco da Velha”, seja diferente de todas as outras.
Como é
Sempre na contracorrente em relação às tendências dominantes no meio musical português, a Banda do Casaco criou para si uma estética à margem. Em plena época do PREC, da explosão das ideologias de esquerda e do regresso festivo dos cantores da resistência, Nuno Rodrigues e António Pinho, principais mentores e estrategos do projecto, assumiram um movimento contrário, apontando no presente as lições da tradição e enunciando para a música popular portuguesa uma modernidade sem profetas nem bandeiras. Com antecedentes na estreia “Do Benefício dos Vendidos no Reino dos Bonifácios” ou, mais atrás, no radical sarcasmo da Filarmónica Faude (como é o caso de “A mulher do regedor”), “Coisas do Arco da Velha” logrou atingir o equilíbrio perfeito entre as duas escritas. Uma, a dos textos de António Pinho, saborosos exercícios onde cabiam ao mesmo tempo a veia satírica, herdada das antigas canções de escárnio e maldizer, e a musicalidade dos jogos fonéticos. A esta riqueza dos textos justapôs Nuno Rodrigues uma estética sonora de orientação mais difusa, assente numa ambiguidade por vezes provocatória e, não poucas vezes, no paradoxo. Escutem-se neste particular a solenidade litúrgica do órgão em “Virgolino faz o pino”, a baralhar as acrobacias do texto, ou a utilização de um registo orquestral na canção de embalar transmontana que encerra o disco, solução na aparência despropositada para um texto onde o significado das palavras se reduz à sua expressão mais simples. Em “Coisas do Arco da Velha” sente-se a pulsação sincronizada de dois tempos, o que permitiu à tradição musical portuguesa enquadrar-se em novas formas de fazer e de dizer. Nas harmonias vocais riquíssimas, no aproveitamento inovador das percussões rurais, na utilização pioneira de um violoncelo electrificado, por Celso de Carvalho, ou na revelação de um grande guitarrista que injustamente caiu no esquecimento, Armindo Neves. “Canto de amor e trabalho” e “É triste não saber ler” são magistrais paradigmas de uma outra MPP, elaborada na compreensão de que a evolução e a força de um protesto têm raízes mais fundas do que as de um manifesto ou um punho erguido. Um disco sem idade.
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