Pop Rock
7 de Fevereiro de 1996
Os melhores de sempre – música portuguesa
7 de Fevereiro de 1996
Os melhores de sempre – música portuguesa
Tantra “Mistérios e Maravilhas”
Como foi
Em Inglaterra explodia a raiva “punk”. Por cá, a tendência era fazer complicado. Soar como uma orquestra rock. Os Tantra conseguiram-no melhor do que ninguém. Eram o grupo progressivo por excelência, com longas canções e títulos como “Variações para uma galáxia”. Exímios instrumentistas faziam alarde disso. Bem como de uma teatralidade sem precedentes no rock português. “Quando começámos, éramos só eu e o Armando Gama”, explica Manuel Cardoso. “Ele tinha tendência de ir para a pop e eu para o rock sinfónico, na linha dos Genesis, Yes ou Pink Floyd. Vieram depois o Américo Luís, no baixo, de bases rock mas com tendência para o jazz, e o baterista Tó Zé Almeida, também com uma base rock mas todo virado para o progressivo.” Manuel Cardoso tinha acabado de chegar de Inglaterra, onde fizera parte de um grupo de música de “base celta”. Aí aprendeu “uma das coisas fundamentais para que os Tantra funcionassem: um método de ensaios nessa época totalmente diferente do que se praticava em Portugal”. Trabalho duro. Profissionalismo.
Um profissionalismo que ficou bem patente em todos os que assistiram ao memorável concerto dados pelos Tantra no Coliseu dos Recreios, uma encenação musical na linha do que a banda de Peter Gabriel fizera em “The Lamb lies down on Brodway” e valeu ao grupo de Manuel Cardoso o epíteto de “Genesis portugueses”. “A coisa mais gira é que só a nível imediato é que aquilo foi influência dos Genesis. Nos Tantra havia várias traves-mestras de influências: por um lado a onda do progressivo americano, de ‘monstros’ como o Billy Cobham ou John McLaughlin, por outro seguíamos os Yes ao nível da influência espiritual, eram a nossa escola. O lado visual vem muito de uma força minha, apesar de em tudo o que fazíamos haver uma colaboração de todos. Sempre tive uma tendência muito grande para o teatro, para escrever, para o cinema, sempre fui um apaixonado pela mímica, pela expressão corporal”, garante o guitarrista.
“Mistérios e Maravilhas” é progressivo cantado em português. “Por uma questão de pureza daquilo que queríamos fazer.” No álbum seguinte, “Holocausto”, passaram para o inglês, “pela mesma razão”. Frodo, a personagem de cabeça bicuda cujo nome é do heróis “hobbit” que atravessa as páginas de “O Senhor dos Anéis”, de Tolkien, e viria a tornar o alter-ego de Manuel Cardoso, surgiu mais tarde. Sinal de um onisrismo, nas suas facetas contraditórias, e de uma viagem que no caso dos Tantra não coincidiu com o uso de alucinogéneos. “Os Tantra nunca tiveram nada de psicadélico. O coração mecânico, o ‘drive’ por detrás do grupo, era eu. Desde o princípio, achei que era uma banda onde devia haver valores positivos. A noção de viagem prende-se com o facto de tanto eu como o baterista fazermos meditação, ‘raja yoga’. Era uma viagem espiritual.” Manuel Cardoso também praticou tantrismo.
O nome “Tantra” foi escolhido, no entanto, apenas por ser “universal”. O de Frodo apareceu por razões de outra natureza. “Tinha uma vida muito espiritual, mas ao mesmo tempo saía à noite até às cinco, seis da manhã, para ouvir música. Uma vida que, para as outras pessoas, não encaixava bem com a tal espiritualidade. Isso irritava-me. Decidi que, se as pessoas achavam que o Manuel Cardoso não tinha o direito de fazer aquilo, se mudasse de nome, iriam entender que quem estava diante delas era uma personalidade que não conheciam e tinham que aprender a conhecer. Ao Manuel Cardoso era fácil chegar ali e dizer: ‘Então Manel, o que é que andas aqui a fazer? Então tu fazes meditação e estás aqui às quatro da manhã na ‘boite’ a beber uma Cuba livre e a dançar?’” Como Frodo, Manuel Cardoso, “atravessou a confusão” e “saiu do outro lado”.
Os Tantra não lutavam contra confusão de qualquer espécie. “As coisas encadeavam-se naturalmente. Existia um estado de espírito em que as músicas surgiam e se encaixavam de uma forma quase mágica.” “Mistérios e Maravilhas” é, para o guitarrista do grupo, “fruto de uma forma de estar” típica da sua época. “No que estava feito ali havia uma relação muito directa entre o que fazíamos e o que sentíamos. Hoje trabalha-se a música de uma maneira mais técnica, mais efectiva. Para nós, nessa altura, a vida estava de facto cheia de mistérios e maravilhas.”
Menos misterioso é o mínimo que se pode dizer do período de gravação do disco. “Uma epopeia”, nas palavras do músico. “O disco foi gravado em oito pistas, o que nos apresentava problemas graves. Por exemplo, levámos a nossa aparelhagem para o estúdio da Valentim e pusemos a bateria, que normalmente necessita só para si desse número de pistas, a passar pela nossa mesa de mistura de dezasseis canais que depois entraram noutros dois da mesa final. O técnico fazia o som no andar de baixo, só com a bateria, que depois era gravada no andar de cima. Foi quase um milagre gravar todos os outros instrumentos nas restantes seis pistas.”
Histórias, aconteceram várias. A do baterista que o médico “proibiu de tocar para o resto da vida” por “ter um problema de coração”, mas que acabou por gravar todo o álbum seguinte e fazer a digressão completa da banda. Ou da maneira como o piano de Armando Gama era transportado para os espectáculos, “cinco ou seis a carregarem um piano vertical de um quarto andar de um daqueles prédios antigos da Avenida da República, sem elevador, pelas escadas abaixo, para o concerto”. Coisas de “amadores” que “adoram o que fazem”. Trabalho, trabalho, trabalho. Uma das formas que permitiu a construção do sonho. “Nos dois primeiros anos ensaiámos doze horas por dia, incluindo os sábados. Mais dois ou três anos numa média de oito horas por dia, já com fins-de-semana livres, embora tocássemos aos sábados. Só mais tarde é que passámos para quatro horas por dia. Trabalhávamos que nem uns cães. Para fazer aquele género de música era preciso trabalhar muito, era muito complicado. Ainda hoje é difícil tocar algumas partes.”
Hoje, Manuel Cardoso, concluído um período de actividade na publicidade e na produção de bandas novas como os Doutores e Engenheiros ou os Vodka Laranja, pretende, de novo, “interactivar com a sociedade” enquanto músico. O desejo de regressar aos palcos só espera pela concretização do seu novo projecto, uma nova banda de “rock sinfónico” na mesma “linha espiritual” dos Tantra. Será a ressurreição do progressivo em Portugal? Mistério! O reactivar da “máquina da felicidade”? Maravilha
Como é
Era num tempo em que os dragões voavam num aquário e o mundo se oferecia em mistérios e maravilhas. Um tempo em que a música se fazia sem segundas intenções, apenas pelo desejo e necessidade de exteriorizar ideias e emoções. Por mais estranhas e, por vezes, desajustadas da realidade que fossem. Era assim em 1977, em Portugal. Já deixara de o ser em Inglaterra, no ano em que o progressivo era massacrado pelo “punk”. Por cá, o desfasamento temporal permitiu aos Tantra serem os primeiros e talvez únicos representantes da música progressiva produzida com o mesmo profissionalismo dos grupos “lá de fora”.
É verdade que antes já José Cid mostrara o esboço do que poderia ser um psicadelismo lusitano, os Petrus Castrus tinham apresentado o seu “Mestre” e os Beatnicks, com Lená d’Água, deixaram perder no esquecimento uma épica “Cosmonicação” apenas revelada ao vivo a alguns eleitos. Mas foram os Tantra que encheram o Coliseu de Lisboa, trazendo as máscaras, o virtuosismo instrumental e os efeitos especiais para uma música que até essa altura raramente excedera o amadorismo e nunca conseguira afirmar um conceito estético suficientemente autónomo para ultrapassar o mero estatuto de curiosidade.
Os Tantra tinham modelos, nunca o negaram, como os Genesis, pelo lado da teatralidade, os Yes, na complexidade orquestral dos arranjos, ou um jazzrock de fusão irmanado no misticismo de John McLaughlin. Souberam contudo reivindicar uma fantasia e liberdade de movimentos próprios. Um sentido de viagem, de sonho e libertação interiores que para muitos serviu de escape contra um quotidiano cinzento e musicalmente confrangedor. São ideias que ao longo da década seguinte deixaram de fazer sentido, mas que hoje a emergência de um novo psicadelismo e a busca de algo mais na música do que o simples funcionalismo ajudaram a recuperar. Os mistérios e as maravilhas não perderam a cor.
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