POP ROCK
23 de Outubro de 1996
Isabel Silvestre recria hino nacional na sua estreia a solo
23 de Outubro de 1996
Isabel Silvestre recria hino nacional na sua estreia a solo
“Cantar é trabalhar do peito”
Isabel Silvestre é “A Portuguesa”, título do seu primeiro álbum sem a companhia das vozes de Manhouce. Aí o hino da República transforma-se em tradição mais antiga e monárquica em que “as armas são outras”. Aí as canções de Rui Veloso, Variações, José Mário Branco e José Afonso, entre outros, ganham a elevação e a pureza de uma serra junto ao céu.
“É um projecto já muito antigo, desde que gravámos o primeiro disco”, começa por dizer a Isabel Silvestre a propósito de “A Portuguesa”. “Simplesmente, na altura achei que não devia fazer isso, na medida em que o grupo estava a começar.” Havia que encontrar espaço fora do Grupo de Cantares de Manhouce, sem descurar certos cuidados. “A responsabilidade é uma coisa complicada. Sinto-me responsável pelo grupo da mesma maneira, só que, ao mesmo tempo, também mais liberta, tendo a certeza de que o grupo é capaz de não parar. Já anda com os seus próprios pés, mesmo sem mim.”
O processo que levou à gravação foi gradual, de maturação lenta. “O Mário Martins foi o primeiro que me abordou, ainda a meio do primeiro disco do grupo. Depois, por uma razão ou por outra, as coisas foram-se arrastando até que por fim acabámos por escolher as canções, eu, o João Gil, o dr. João Teixeira, o David Ferreira. Foi de todos esses encontros que o disco nasceu.” As diferenças entre cantar com o grupo de música tradicional e cantar a solo canções de outros, explica-as Isabel Silvestre como operações da sensibilidade. “Na popular, transmito a maneira de ser e de estar do povo. Neste disco, através do que canto traduzo aquilo que ela é capaz de me sensibilizar e dizer.” Exemplifica: “As músicas do Zeca Afonso identificam-se um pouco comigo, com a minha maneira de ser. Mas gosto de todos os outros, do Rui Veloso, que tem uma outra maneira de estar e de dizer. O tema que eu canto dele tem a ver, não só comigo própria, como com o meio em que vivo. O António Variações, acho-o uma maravilha, tinha letras e músicas lindíssimas. Era uma mensagem constante de carinho e de ternura, na cantiga onde ele fala com a mãe [“Deolinda de Jesus”]. Penso que encontramos lá a nossa própria mãe. Já tinha cantado outra canção dele, ‘Estou além’.”
Em estúdio, “foi voz por um lado e instrumentos por outro”. “Na brincadeira, quando se fez a ‘Pronúncia do Norte’, dizia ao Rui [Reininho] que estou habituada a cantar e a música a vir atrás de mim. Na música tradicional tem sido assim. O acompanhamento é muito simples, eu canto e os instrumentos acompanham-me. Tem sido assim desde menina. Ao passo que aqui é um pouco diferente. Gravou-se primeiro os instrumentos e depois a voz, à excepção de ‘A Portuguesa’, que foi ao vivo.”
Isabel Silvestre conta como surgiu a ideia de cantar o hino nacional. “Nas nossas andanças tem havido espectáculos que são páginas da nossa vida. Uma delas foi em Espanha, no dia 10 de Junho. Pediram-nos para cantar, a abrir, ‘A Portuguesa’, coisa que o grupo nunca tinha feito. No meu tempo de aluna, ainda pequenita, antes de começarmos o primeiro dia de aulas, a primeira coisa que se fazia era cantar o hino. Em Espanha, ficámos um bocado aflitas. Mas cantámos e tudo correu bem. Até aquela parte, ‘às armas, às armas’. Aí as armas foram outras, o sentimento bateu à porta de cada uma e, em vez de uma força exterior, essa força interiorizou-se, foi um bocado complicado…”
Cantar a tradição é, para Isabel Silvestre, tarefa sagrada, como cuidar de um filho ou pegar numa relíquia. “Alguém dizia que cantar é trabalhar do peito. Depois da letra, depois da música, há que dar sentimento a essas duas vertentes. Já andamos nisto há 20 anos. Já por uma vez ou outra quisemos, ou quiseram as pessoas que estavam encarregadas da parte musical e instrumental, dar uma volta às cantigas, no ‘Vozes da Terra’ e não só. Eu opus-me terminantemente, porque, se estamos na música tradicional, temos que dá-la com a sua autenticidade e verdade. Se estamos a cantar as cantigas de Manhouce, temos que ir às raízes e não sair delas, senão não estamos a fazer nada, estamos a desfazer. Para isso era melhor deixar estar tudo quietinho, não levantar o pó, ter cuidado de não riscar.”
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