Pop Rock
6 de Dezembro de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa
6 de Dezembro de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa
GAC “Pois Canté!”
Como foi
O GAC-Grupo de Acção Cultural, nasceu das cinzas do CAC-Colectivo de Acção Cultural. O CAC formou-se seis dias depois do golpe de Estado do 25 de Abril, mais precisamente na madrugada do 1º de Maio. Ou, mais precisamente, “no dia 30 de Abril, à noite, no dia em que cheguei de França, na casa, salvo erro, do José Jorge Letria” – recorda José Mário Branco. O antifascismo estava na ordem do dia, do minuto, do segundo. Um primeiro manifesto foi subscrito por todos os que se situavam à esquerda do antigo regime. Mas as divergências surgiram cedo – por razões ideológicas. “Entre os PC e a extrema-esquerda e mesmo alguns PS como o Manuel Alegre”. O GAC, desde o início, assumiu-se como frente musical da UDP. José Mário Branco, maoísta e militante do partido, foi o seu mentor, no período anterior a “E Vira Bom” e “Ronda da Alegria”. Era ele o mais velho, comparado com “a malta que viera da Juventude Musical Portuguesa”.
“Pois Canté!” aparece dois anos depois do conflito ideológico que determinou a extinção do CAC. Antes fora já editada a colectânea de “singles” dispersos, “A Cantiga é uma Arma”, composta por “cantigas essencialmente heróicas, hinos…” Em relação a “Pois Cante!” (o título original leva dois pontos de exclamação, mas optámos pela poupança de caracteres), José Mário Branco fala em “fusão”: “Devido à nossa própria formação musical, às nossas origens e à influência dos mentores do que foi a resistência do canto popular em Portugal. Além da linha do José Afonso, o que havia era a linha do Lopes Graça e do Giacometti. Acontece que esse canto ideológico – que está nos primórdios do GAC no ‘A Cantiga é uma Arma’ – é muito marcado por toda a tradição do canto ideológico, com as cantigas heróicas do Graça mas também pela experiência que terá havido em mim, fruto do contacto com o Eisler, o Kurt Weill e o canto heróico brechtiano.”
Mas “Pois Canté!” transcende a simples afirmação ideológica. A presença da música tradicional já se fazia sentir: “Alguns de nós, como o Luís Pedro [Luís Pedro Faro, actual director musical do grupo coral feminino Cramol], tinham uma formação nesse campo, da etnomusicologia.” Estavam criadas as condições para se criar a tal “fusão”: “Dá-se um encontro entre uma atitude que se poderia dizer ‘de canção’, que era a minha, do Sérgio Godinho ou do Zeca, com uma atitude de ‘canto heróico’ e uma atitude de ‘canto etnográfico’, imitativo, reprodutor de técnicas tradicionais de canto e toque de instrumentos.”
Encontros que José Mário Branco define como “um correr de risco”: “Não queríamos cometer leviandades, encarar levianamente a fusão desses elementos.” Este respeito estendia-se “à ideologia, aos princípios revolucionários perfilhados”. Para ele, “a situação social portuguesa obrigou, serviu de motivação, para experimentar coisas extremamente diferentes do que era habitual”. “Fomos para a rua, para as fábricas, para os campos, pusemos a questão da utilidade, da eficácia imediata do canto para fins sociais.”
Mais pessimista, ou realista, o autor de “Ser Solidário” acaba por reconhecer que “a própria indisciplina do movimento social”, que motivava o grupo e sobre o qual “tudo se apoiava” – uma indisciplina que “se traduzia também nas estruturas políticas” e, forçosamente, “no grupo” – “levou a que certos objectivos não tivesse dado resultado, aliás, como tudo o resto da revolução, que também não deu resultado”.
“Pois Canté!” foi um álbum revolucionário até no sistema de produção (própria) e distribuição: “Uma distribuição paralela por vias das organizações das colectividades, dos sindicatos e da organização política a que o GAC esteve ligado, a UDP.” A seguir, vem a parte pior: “Mas depois ficámos sem o dinheiro, nunca mais vinha, era uma indisciplina total. Tudo faliu por esse lado.”
José Mário Branco, enquanto homem político – “havia uma consciência do movimento social que tomou totalmente conta de mim” -, não impediu a afirmação de José Mário Branco enquanto músico. O que significa que a arte não ficou assim tão desvalorizada, por oposição à política, como as afirmações públicas do grupo quiseram fazer crer. “Pois, o que nos separava não era a questão artística, mas sim a de estarmos ao ‘serviço de quê’. O GAC definiu-se completamente de uma forma partidária, ao contrário, por exemplo, do Zeca, que nunca se definiu como tal.”
Neste ponto José Mário Branco embrenhou-se na evocação das diferenças ideológicas que o separaram, na altura, de José Afonso e de Fausto, nomeadamente a propósito do problema de Angola e dos partidos angolanos na luta anticolonial e pós-independência daquele território. “Comissário político do GAC”, ao serviço da UDP, como a si próprio se definia nessa altura, do mesmo modo que os Almanaque eram a extensão musical do MRPP, reconheceu por fim o carácter da música propriamente dita, tão ou mais revolucionária, para a época, que a mensagem ideológica e partidária. “Pois Canté!”, explica, é uma expressão beirã, trazida para o grupo por Fernando Laranjeira, que significa ‘Então não há-de ser?!’. Afirmação forte. Sem maneiras.
Como a “Cantiga sem maneiras”, na voz feminina de Toinas (Maria Antónia Vasconcelos), a propósito da qual José Mário Branco recordou a presença, em 1975, do GAC no Festival da Canção, com “Alerta!”: “Fizemos uma declaração de voto a dizer que não participaríamos na palhaçada de Estocolmo. Como, nessa altura, o júri do festival eram os próprios autores e compositores, demos zero a todas as cantigas concorrentes e a nós a pontuação máxima [risos]. O Sérgio nunca me perdoou. Ele estava lá, a concorrer com uma canção, ‘A boca do lobo’. Nem o Tinoco, que também concorreu. Foi uma declaração de voto completamente marxista-leninista!”
Como é
“No calor da luta, forja-se a união, rebenta a fúria de esmagar as cadeias para sempre…” É o “leitmotiv” deste manifesto marxista-leninista-maoísta que, dois anos após o golpe de Abril, abalou a música popular portuguesa e permitiu a explosão de projectos como Almanaque, Raízes e Brigada Victor Jara. No interior da capa, a toda a largura, o grafito “Liberdade, paz, pão, terra, independência” sintetiza a mensagem política veiculada por este projecto nascido das cinzas do anterior e efémero Colectivo de Acção Cultural (CAC). José Mário Branco, o seu mentor, assumia-se então como “comissário político do GAC”, representante da UDP, numa altura em que a política se sobrepunha à estética nos objectivos do grupo. Mas se “mais política e menos arte” era o mote, tal não impediu que “Pois Canté!” se preocupasse com o rigor formal, resultado, aliás, de centenas de sessões de “canto livre” realizadas ao vivo logo a seguir ao 25 de Abril de 1974. Ombreando com os corais colectivos onde o mais importante era o grito de alerta ao povo, destacam-se temas como “Pois canté!”, com sopros arranjados por Luís Pedro Faro e voz de José Mário Branco, “Cantiga sem maneiras”, vocalizado por Toinas sobre um “ronco” de gaita-de-foles, “Cantiga do trabalho” e “Coro dos trabalhadores emigrados”, todos da lavra de J.M.B., e o belíssimo “Ir e vir”, composto e vocalizado por João Lóio. “Pois Canté!” abriu ainda o caminho para a integração da música tradicional num contexto mais socializado, de braço dado com o canto revolucionário. O álbum sucede a “A Cantiga é uma Arma”, primeiro disco de longa duração do grupo, onde estão recolhidos todos os temas dispersos até essa altura em “singles”. E se disparos poéticos como “Casas sim! Barracas não! As casas são do povo! Abaixo a exploração!” dificilmente atingem hoje o alvo, não é menos verdade que nenhum outro grupo, antes e depois do GAC, teve a coragem e a frontalidade de o dizer.
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