17/11/2008

Sérgio Godinho - Os Sobreviventes

Pop Rock

10 de Maio de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

Sérgio Godinho Os Sobreviventes

Como foi


Nove anos no estrangeiro, três dos quais passados em Paris, de finais de 1967 até 71, o contacto com outras músicas e culturas, serviram de bagagem para a relação com a língua portuguesa que se haveria de seguir e fazer de Sérgio Godinho um dos compositores-intérpretes portugueses mais importantes deste século. “Quando aterrei em Paris”, conta o autor, “já cantava, mas em francês; uma das minhas preocupações era encontrar uma voz própria: soava-me tudo ou a Zeca Afonso ou a poetas que eu admirava. Nessa altura, a presença musical do Zeca bloqueava-me.”
O encontro, na capital francesa, com José Mário Branco, com quem inicia uma colaboração musical assídua, vem a revelar-se decisiva no desencadeamento de nova fase da sua carreira. Entretanto, a par da sua participação na versão parisiense de “Hair”, dá-se aquilo a que Sérgio Godinho chama uma quase revelação, “uma espécie de desbloqueamento em relação ao português”. “Para aí metade” das canções de “Os Sobreviventes” foi composta nesta altura, num “curto período de tempo”. Os estímulos desta mudança são vários. “Curiosamente, a própria cidade de Paris, o ‘Hair’, uma multiplicidade de vivências, aproximaram-me da minha língua em vez de me afastarem. Talvez fosse uma necessidade de voltar às minhas raízes e ao som que as palavras tinham na minha infância.”
A par de Paris, também "o interesse pelo que se estava a passar em Portugal, com o agudizar da guerra colonial e a decadência do regime” faz o músico desejar o reencontro com a realidade portuguesa. “O facto de não poder vir a Portugal, de ser refractário, de estar com gente com uma consciência política que eu tinha também, foi igualmente importante.” Embora o cantor já nessa altura tenha outro tipo de preocupações, além das políticas: “A minha motivação primeira para ir para fora foi sempre muito vivencial. A necessidade de conhecer outras culturas, de correr mundo, de vagabundear, no sentido filosófico do termo.” Mais forte que tudo é, porém, “a vontade de escrever em português”.
Já com “uma mão cheia de canções”, falta apenas a gravação. “José Mário Branco tinha já contactado a Sasseti, a quem eu já enviara fitas. Fiz uma maqueta também para a Arnaldo Trindade mas foi a Sasseti que me deu uma resposta mais entusiástica e as melhores condições.” À semelhança de José Mário Branco e de José Afonso, Sérgio Godinho vai gravar no famoso estúdio do Château d’ Hérouville. “Fomos praticamente inaugurar aquilo, com condições privilegiadas.” O som pretendido “tinha uma componente de banda, com uma abordagem ‘pop’”, algo que logo nessa altura afasta Sérgio Godinho da vaga dos chamados baladeiros. Não só nunca fui um baladeiro”, diz “como, de certo modo, era até crítico em relação ao que de negativo tinha esse termo.” Sérgio recorda, a propósito, que o anátema lançado nessa altura sobre aquele termo foi dirigido em grande parte “contra o Zeca e o Adriano, de uma maneira muito injusta”.
Com José Mário Branco a funcionar em estúdio um pouco como o “supervisor”, a música toma forma a partir de um colectivo. “Basicamente, aquilo que eu tinha na cabeça era uma estrutura de guitarra, baixo eléctrico e bateria – um som ‘rock’ como o do tema ‘Maré alta’ – aqui e ali com a pontuação de outros instrumentos, algo que ensaiei mais tarde noutros discos”. Sérgio Godinho vê hoje “Os Sobreviventes” como um disco “exuberante e denso”, onde quis “meter muita coisa”, se bem que não o satisfaça muito “vocalmente”: “Tive medo de soltar a voz. É um disco onde canto à defesa. Certinho mas sem o tipo de liberdade interpretativa que tive noutros discos e que, inclusivamente, já era de certo modo capaz na altura. Também senti problemas de garganta, laringite. Não sei se de origem psicossomática ou não…” O cantor cita, sobre este aspecto, o tema “O charlatão”, composto por José Mário Branco, que poderia ter “mais energia”.
O outro dos dois temas escritos pelo autor de “Margem de Certa Maneira”, “Cantiga da velha mãe e dos seus dois filhos*”, tem uma história curiosa: “A letra foi feita para a música do ‘Maio Maduro Maio’, de José Afonso. O Zeca tinha uma vez chegado a Paris e disse-me que não era capaz de escrever uma letra para ela. Eu ofereci-me para o fazer. Ele, entretanto, foi para Portugal e eu fiz mesmo a letra. Fiquei eu com uma letra pendurada. Foi então a vez do José Mário Branco se oferecer para fazer uma música. Aconteceu uma espécie de pingue-pongue.”
Outra canção, “Paula”, teve uma primeira letra em francês antes da versão final em português. “Romance de um dia na estrada” foi escolhido para um EP, “raríssimo de encontrar”, que surgiu antes de o LP sair. “Podia ser, de certo modo, um título alternativo para o álbum. Era um tema que reflectia o lado vivencial que eu, nessa altura, prezava muito e que continuou como imagem de marca. É uma canção de percurso, uma canção de revelações.” O outro lado, “mais político”, está presente numa canção como “Senhor marquês”: “Cantei-a pela primeira vez para o Zeca, quando ele estava em Paris. Ficou muito entusiasmado. ‘Isto é que é a linguagem que eu devia estar a fazer!”, exclamou ele. Eu contrapunha: “Tu és maluco! Eu é que queria fazer a linguagem que tu estás a fazer!”
“Os Sobreviventes” teria, depois, outras histórias para contar, mas essas pertencem já a uma história mais triste que estava prestes a acabar. O disco recebeu o prémio “melhor autor de letra” pela Casa da Imprensa (ao lado de obras de José Afonso e José Mário Branco) mas foi retirado das lojas pela censura, para, pouco tempo depois, regressar aos escaparates. Algo que reflectia a desorientação de um regime que agonizava. O álbum, esse, sobreviveu para a posteridade.

* Em vez de “filhos”, no original lia-se “discos”.

Como é

Afinal, é mesmo verdade que as cegonhas trazem os bebés de França. Em Paris, há 24 anos, nascia uma das relações mais fortes e duradouras da música com a língua portuguesa. Sérgio Godinho trazia na mochila a música francesa, brasileira e inglesa, e quilómetros de viagem nas pernas e na alma. As primeiras histórias contam-se, por vezes, com alguma timidez e a ajuda de amigos. José Mário Branco, já nessa altura bordão e fonte de ensinamentos, não só assinou dois temas como inspirou o ambiente geral de uma composição como “A-E-I-O-U”. Os Beatles, com algumas notas de “Michelle”, insinuam-se por sua vez em “descansa a cabeça (estalajadeira)”.
Se é verdade que a riqueza metafórica que caracteriza toda a obra posterior do autor se encontra aqui ainda na sua fase embrionária, não é menos verdade que “Os Sobreviventes” é hoje um álbum que envelheceu bem, não surgindo de modo algum datado. Temas como “Paula” ou “Farto de voar”, em toda a sua pureza, soam hoje rodeados de um estranho fascínio, enquanto, em canções como “Que bom que é” e “Senhor marquês”, estão já presentes todas as características que marcariam a obra de Sérgio Godinho: a não linearidade do desenvolvimento temático, a sobreposição de registos vocais, a alternância de tonalidades, a importância da fonética, do que se esconde e revela no simples som que as palavras têm – o prazer, em suma, de dançar com as palavras e os seus significados.“Romance de um dia na estrada” perspectiva uma das vertentes de sempre do universo poético-musical do autor: a introspecção, o conceito de percurso, nunca numa perspectiva abstractizante, antes romanceada em forma de situações arrancadas a um quotidiano ficcional ou não. E se a época era de luta, entre “Que força é essa” e “Maré alta”, os dois temas onde é mais acentuado o cariz intervencionista, era já no fluxo de emoções e das pequenas e grandes descobertas interiores que o caminho de Sérgio Godinho se desenhava. Um “primeiro dia”, sempre.

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