3 de Maio de 1995
Cínicos ou místicos?
António Manuel Ribeiro e os UHF estão cheios. Agora, como no início de carreira, recusam a posição cómoda de se deixarem ir sem fazer ondas. Continuam a reivindicar o estatuto de “banda de Almada” e o seu líder promete cinismo, caso o disco consiga penetrar nos mercados da Europa. Se assim acontecer, a Europa terá que se haver com eles e com as letras das canções, que serão traduzidas para inglês. “Cheio” é o título do novo disco dos UHF, uma colectânea de versões de temas antigos às quais se juntam cinco originais. A gravação teve lugar no Convento dos Capuchos, na Costa da Caparica, o que, entre outras consequências, acrescentou uma costela de misticismo ao líder da banda. O PÚBLICO foi entrevistá-lo ao interior do templo.
PÚBLICO – Em que medida é que este novo álbum poderá significar um desejo vosso de controlar o fundo de catálogo do grupo, sobre o qual não tem controlo e que será em breve reeditado em CD por outras editoras?
ANTÓNIO MANUEL RIBEIRO – Pois, em termos contratuais não há hipótese. É um dado adquirido que as editoras em causa têm o direito contratual de fazerem edições quando quiserem, desde que paguem os direitos… Gostaríamos, com este disco, de dar a conhecer às pessoas um panorama da música dos UHF para trás da “Santa Loucura” e, em particular, da versão da “Menina estás à janela”. Com esse disco, abrimos um leque de malta jovem que não conhece o reportório antigo. Eles sabem lá o que é os “Cavalos de corrida”!
P. – As novas versões indicam que não estão satisfeitos com as gravações originais?
R. – Obviamente que não. Porque é que regravámos os temas? Porque há coisas que estão feitas para trás de forma muito rudimentar. Porque entretanto os estúdios portugueses evoluíram muito, nomeadamente nos últimos sete anos. Cheguei a gravar em condições que hoje dão vontade de rir. Tenho agora um estúdio em casa melhor do que alguns onde gravei. Quisemos pois dar uma integridade técnica às canções do passado, com um som de 95. A “Rua do Carmo”, por exemplo, tem uma versão completamente diferente. Neste contexto, foi quase tocado como música de câmara, com a reverberação própria da sala. Por outro lado, chegámos à conclusão que os UHF mais do que um quinteto sempre foi afinal como um quarteto com mais um convidado. Como o Renato Júnior ou o novo guitarrista fixo, o Rui Padinha, que gravaram agora connosco.
P. – Num ambiente destes, sentiram-se “cheios” de quê?
R. – É uma provocação! Estou cheio disto tudo à minha volta. Estou cheio de ser português, o freguês que estende a mão e recebe o subsídio da Europa. Acho que o país nos últimos anos tornou-se de tal forma dependente e deficitário que me chateia! Estou cheio do sucesso que dizem que existe e cheio do fracasso que vivemos todos os dias. Acho que escrevo muitos textos anti-sebastiânicos. Este álbum é talvez o mais político dos UHF. Por exemplo, recuperámos a canção “Caçada”, no original, o lado B do “Jorge morreu”, o primeiro EP dos UHF, de 69, que fala da carga da polícia de choque, algo que continua muito actual. Hoje, como então, há causas. Estou em Setúbal, não posso ser indiferente ao que se passa na rua.
P. – Não se sentiram influenciados pela atmosfera de religiosidade do local?
R. – Bastante. Acho que se sente isso no disco. Há uma zona mística neste disco. Curiosamente, foi o primeiro que gravei em que primeiro saiu o título. Neste momento, já não lhe chamava “Cheio”, mas outra coisa qualquer. Houve algo que senti aqui nestas paredes. Nas conversas, nas esperas, nos azulejos com não sei quantos séculos. Senti-me aqui muito perante Deus.
P. – Continuam a considerar-se acima de tudo um grupo de Almada. Em termos de exportação, esse regionalismo vai um pouco contra a corrente universalista e nostálgica dominante…
R. – Se eu acredito na política portuguesa, torno-me cada vez mais regional. Daqui a uns tempos, só vamos poder exportar cultura e identidade própria. É este ano que os UHF estão a pensar dar o salto internacional. Queremos vender os UHF lá fora.
P. – Em que termos é que pensam dar esse salto?
R. – Bastam as canções. “Brincar com o fogo”, por exemplo, foi uma canção que os espanhóis quiseram editar. Penso que a produção dos UHF se possa orientar não no sentido do internacionalismo, mas sim de levar a parte regional para o estrangeiro. Se calhar, vou cantar em inglês, ou em espanhol… Uma canção como “Sarajevo” é universal.
P. – Afinal, não é totalmente contra a CEE?
R. – Vou levar, no fundo, aquilo que neste momento a CEE gosta de consumir. A CEE quando consome Madredeus está a consumir aquilo que lhe falta e só se produz em Portugal.
P. – Não há aí uma certa dose de cinismo?
R. – É um cinismo, claro que sim! Eles vêm cá fazer o quê? Emporcalhar-nos as praias, nós que temos a areia mais sólida da Europa. Não compare a areia da Caparica com a areia de Torremolinos. Já nem é preciso ir para a areia do Mar do Norte…
P. – Os UHF não perderam a raiva que tinham quando cantavam “Jorge morreu”? Ou, pelo contrário, com a idade tornaram-se diplomatas?
R. – Essa raiva não desapareceu de foram alguma. Aliás, recomendo a audição das canções “Cheio” ou “Quero um whisky” [dois dos cinco originais, juntamente com “Desolhados”, “Toca-me” e “Por ti e por nós dois”]. Um “whisky” que se bebe ao princípio e no fim, para acabar a noite.
P. – Nem como deputado [A.M.R. exerce actualmente estas funções, como independente na lista do PSD, por Almada]?
R. – Voto sempre contra! Muitas vezes contra a própria orientação da minha bancada. Aliás, nem sei qual ela é!
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