06/11/2008

Coração sobrevivente [Egberto Gismonti]

Pop Rock

16 FEVEREIRO 1994

CORAÇÃO SOBREVIVENTE

É um “habitué” do nosso país, como se costuma dizer. Egberto Gismonti, compositor, arranjador e intérprete brasileiro, cidadão do mundo. Volta para mais um concerto. Com um álbum novo na bagagem, “Música de Sobrevivência”.


Presença assídua em concertos no nosso país, a última visita de Gismonti a Portugal remonta a Novembro do ano passado, quando veio tratar de aspectos ligados a um projecto muito especial – a composição de música sobre textos de Luísa Costa Gomes baseados na vida e obra do Padre António Vieira, para a peça “Clamor”, encenada por Ricardo Pais e que será uma das apostas teatrais fortes de Lisboa 94 (ver entrevista ao PÚBLICO de 19/11/93).
Neste seu novo espectáculo em Portugal, a realizar no próximo sábado no Teatro Nacional D. Maria II, o músico brasileiro tocará, como vem sendo hábito, piano e guitarra acústica, instrumentos em que é um virtuoso de altíssima craveira, e ainda flauta. Acompanham-no Nando Carneiro, na guitarra, sintetizadores e caxixi, e Zeca Assunção, no baixo, como já havia acontecido nos dois mais recentes álbuns de Gismonti para a ECM, “Infância” e “Música de Sobrevivência”, cujos temas constituem o material base que o trio irá interpretar.
Músico de formação clássica, Egberto Gismonti não se deixou prender nas malhas de qualquer academismo. Nos 37 álbuns que leva gravados (em nome próprio, porque, se formos contabilizar as produções e colaborações de arranjador a autor de bandas sonoras para filmes e peças de teatro infantis, o número sobre para valores astronómicos…) multiplicam-se as experiências e os formatos instrumentais, do jazz ao classicismo, da tradição do Nordeste brasileiro à electrónica, passando pela influência do rock progressivo nos seus primeiros trabalhos.
Só, acompanhado por músicos brasileiros, por Jan Garbarek e Charlie Haden ou por uma orquestra. Mas, se exteriormente as formas parecem apontar para direcções contraditórias, por dentre permanece um fio condutor, uma única música, ou uma música una, ao mesmo tempo pessoal e universal, como o seu autor faz questão de salientar.
Uma das preocupações manifestada desde há alguns anos por Egberto Gismonti – que, além de músico, manifesta posições firmes enquanto cidadão, com opções políticas claras – é a defesa da cultura e do território da Amazónia. Em termos musicais, esta preocupação saldou-se por álbuns magníficos, de “Solo” aos mais recentes “Kuarup”, “Amazónia” e, por outras vias, mais subtis, o próprio “Música de Sobrevivência”.
Com uma produção dividida pelo Brasil, onde grava para o seu próprio selo Carmo, e pela Alemanha, na ECM de Manfred Eicher, onde tem registada grande parte da sua discografia, Egberto Gismonti pode considerar-se um dos compositores mais prolixos deste século e, se sombra de dúvida, um dos mais originais.
Ao vivo, mesmo se por vezes se aproxima de certos estereótipos e automatismos, nomeadamente no estilo guitarrístico, que foi criando ao longo dos anos, é sempre um prazer verificar que o seu reconhecido tecnicismo não cessa de se apurar e se coloca ao serviço de uma música e de uma força interior por vezes avassaladoras.
Porque, como todos os grandes músicos, Gismonti tem consciência que antes de saber dizer está o saber ouvir. E que antes de tocar é preciso deixar-se tocar. Ou que esta dialéctica se resolve na acção pura. Até que ponto Gismonti racionaliza todo este processo ou se deixa guiar pela intuição é uma questão que permanece em aberto.
“Música de Sobrevivência” revela uma arquitectura dir-se-ia quase pitagórica. Mas entrelaçado nas malhas de uma equação sobrevive e pulsa um coração. Futurista. Mágico. Cidade coração.


Lisboa, dia 19
Sala Garrett, 21h45
TEATRO NACIONAL D. MARIA II

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