Pop Rock
28 de Setembro de 1994
EM PÚBLICO
MARGARIDA ANTUNES *
O que distingue o canto tradicional na voz das mulheres do campo desse mesmo canto na voz de mulheres da cidade, como é o caso dos Cramol?
São seguramente diferentes. Quando se está a cantar a chamada canção popular ou tradicional no lugar próprio, a música tem que ver directamente com o trabalho, as folias, o contacto com a terra, com uma certa religiosidade fruto desse contacto directo com a natureza. Há (ou havia, porque até isto se vai perdendo) uma autenticidade. Cantar é para estas mulheres (e homens) algo tão natural como andar ou falar. Com uma mulher na cidade, sem esse contacto directo, as coisas passam-se seguramente de maneira diferente. É um processo intelectual e que exige trabalho, no sentido em que se torna necessário accionar mecanismos que permitam chegar a um som próximo do original, no fundo, chegar a uma forma idêntica de cantar. O que acontece, no que diz respeito ao Cramol, é, além de tudo isto, a existência de uma paixão, uma descoberta. E uma procura cada vez mais fundo dentro desta paixão. Inclusive em aspectos técnicos tão simples como a colocação da voz.
Através de reprodução das técnicas tradicionais?
Sim. Tivemos a sorte de ter tido pessoas que nos ajudaram nesse aspecto, que aprenderam e nos transmitiram os seus conhecimentos. O Cramol raramente vai aos próprios locais ouvir, embora houvesse algumas de nós que fizeram isso. Uma parte do nosso trabalho semanal é precisamente a procura de um determinado som.
A prática do canto tradicional reflecte-se de algum modo na sua vivência do quotidiano citadino?
Tive a sorte de poder viajar pelo país e de contactar com as pessoas. Isso teve seguramente uma influência incrível na minha forma de estar, de ver as coisas. Uma transformação interior. Não é um escape. Num um apêndice. Foi algo que interiorizei.
Tendo a cidade e o campo os seus ritmos e vivências próprios e contraditórios entre si, a união dessas duas perspectivas e práticas opostas no seio de grupo implica, de algum modo, conflitos ou angústia?
É um facto. Inclusive ao aprender, por exemplo, uma certa técnica que leva a obter um determinado tom ou som, há sempre a tendência de nos virarmos mais para o aspecto técnico da questão. O momento em que conseguimos alhear-nos desse aspecto e, de facto, sentir aquilo que se está a cantar é que é importante e único.
Como é que o público do campo, da província, reage aos vossos espectáculos?
Bem. As pessoas sobretudo revêem-se em nós. Vêm ter connosco e dizem: “Costumava cantar isso” ou “Na minha terra, cantava-se assim”. E ficam contentes por ouvir cantar essas canções de maneira diferente.
No Cramol, existem 22 mulheres a cantar. Que tipo de dificuldades concretas surgem no grupo?Ainda por cima, é um grupo extremamente heterogéneo – na postura, em tudo. É evidente que isso traz dificuldades. Algumas delas, se calhar, ridículas. Coisas tão simples como a maneira de nos apresentarmos em público, por exemplo, não são nada, nada fáceis. A única coisa – única entre aspas – que une estas pessoas é o facto de gostarem deste tipo de música.
Qual a importância desse aspecto, da maneira como se apresentam em público?
É importante para o público e para nós. Se calhar, as mulheres do campo não têm, ou têm menos, essa preocupação. A forma como nos costumamos vestir depende do sítio onde vamos. O importante é a relação que se cria com as pessoas, nesses sítios. Há vezes em que não temos preocupação nenhuma, cada uma vai como bem lhe aprouver. Noutras, achamos que deve haver um elemento comum, uma cor, de terra por exemplo. É algo que tem dado algumas chatices e discussões. Mas acabamos sempre por chegar a consensos.
Sem qualquer ajuda exterior?Temos um director artístico que, neste momento, é o Luís Pedro Faro. Está connosco há três anos. É ele que trabalha todo o aspecto técnico. E nos transmite as suas experiências fruto das recolhas que fez. É uma colaboração que funciona nos dois sentidos, uma vez que, às vezes, somos nós a propor uma determinada direcção. Há um aspecto importante que distingue o Cramol dos outros coros. É que, no nosso caso, não há um maestro à frente a dirigir. No nosso caso, apresentamo-nos em palco sem nenhum maestro. Cantamos sozinhas. O facto de não haver ninguém a dirigir implica uma determinada responsabilidade e cumplicidade. Quando se está, por exemplo, a cantar um canto polifónico, essa cumplicidade tem mesmo que existir. Outra pessoa que foi extremamente importante para a forma de estar do grupo é o Rui Vaz [que faz parte, actualmente, do Grupo de Gaiteiros de Lisboa], que esteve connosco durante quase onze anos.
Como é constituído o vosso reportório?
Essencialmente coisas portuguesas, embora também alguns temas da Galiza; polifonias das Beiras, Douro Litoral e Minho. É engraçado que o canto polifónico, à excepção do Alentejo, seja no resto do país, só é interpretado por mulheres. Também com a excepção de alguns cânticos rituais entoados por homens nas Beiras Baixa e Litoral. Mas não contamos só polifonias. Por exemplo, fizemos um espectáculo de comemoração do nosso décimo aniversário em que, na primeira parte, cantámos canções de embalar. Além disso, experimentamos combinações com um número maior ou menos de vozes.
Amélia Muge costuma referir que o estilo e orientação de um cantor devem fazer parte de um processo mais lato onde, em última análise, os meios se identificam com os resultados que se pretende atingir. No fundo, a interiorização de um processo coerente que deverá determinar as suas próprias formas de expressão. Quer comentar?
Concordo. Há grupos a fazerem a chamada música popular, ou de raiz tradicional que vão pela facilidade, sem procurarem essa interiorização. É, aliás, uma questão que vem na linha do que eu dizia há pouco, relativa à interiorização. Eu faço isso. É uma sensação indescritível quando se consegue e, ao mesmo tempo, nos apercebemos de que não estamos sozinhas. No meio de 22 pessoas, é-se um pauzinho; mas, quando se sente que todas as outras pessoas estão igualmente a interiorizar com toda a força, é de arrepiar.
Nunca teve vontade de experimentar o canto num contexto diferente?Não, nunca senti. Durante muito tempo, não sei se por timidez, por achar que não tinha voz, aquelas coisas, não gostava de cantar sozinha. Pensava sempre que estar juntamente com não sei quantas mais me diluía, não sobressaía nem ninguém me notava. Até que, pela primeira vez, cantei sozinha, num grupo chamado Bago de Milho. A princípio, até nos ensaios tinha vergonha de cantar. Mas, uma vez, tive mesmo que cantar uma canção sozinha e, de repente, ultrapassado o nervosismo, aquele medo, uma coisa terrível, senti uma sensação óptima. Estar perante uma plateia, a cantar em frente de um número enorme de pessoas. Voltei a repetir a experiência no Cramol mas não tenho isso como objectivo. E voltava a repetir se me convidassem para outro grupo e eu gostasse do projecto. E se fosse capaz [risos].
* Vocalista do Cramol, grupo coral com década e meia de existência, composta por 22 mulheres com uma paixão comum: a música vocal tradicional portuguesa.
28 de Setembro de 1994
EM PÚBLICO
MARGARIDA ANTUNES *
O que distingue o canto tradicional na voz das mulheres do campo desse mesmo canto na voz de mulheres da cidade, como é o caso dos Cramol?
São seguramente diferentes. Quando se está a cantar a chamada canção popular ou tradicional no lugar próprio, a música tem que ver directamente com o trabalho, as folias, o contacto com a terra, com uma certa religiosidade fruto desse contacto directo com a natureza. Há (ou havia, porque até isto se vai perdendo) uma autenticidade. Cantar é para estas mulheres (e homens) algo tão natural como andar ou falar. Com uma mulher na cidade, sem esse contacto directo, as coisas passam-se seguramente de maneira diferente. É um processo intelectual e que exige trabalho, no sentido em que se torna necessário accionar mecanismos que permitam chegar a um som próximo do original, no fundo, chegar a uma forma idêntica de cantar. O que acontece, no que diz respeito ao Cramol, é, além de tudo isto, a existência de uma paixão, uma descoberta. E uma procura cada vez mais fundo dentro desta paixão. Inclusive em aspectos técnicos tão simples como a colocação da voz.
Através de reprodução das técnicas tradicionais?
Sim. Tivemos a sorte de ter tido pessoas que nos ajudaram nesse aspecto, que aprenderam e nos transmitiram os seus conhecimentos. O Cramol raramente vai aos próprios locais ouvir, embora houvesse algumas de nós que fizeram isso. Uma parte do nosso trabalho semanal é precisamente a procura de um determinado som.
A prática do canto tradicional reflecte-se de algum modo na sua vivência do quotidiano citadino?
Tive a sorte de poder viajar pelo país e de contactar com as pessoas. Isso teve seguramente uma influência incrível na minha forma de estar, de ver as coisas. Uma transformação interior. Não é um escape. Num um apêndice. Foi algo que interiorizei.
Tendo a cidade e o campo os seus ritmos e vivências próprios e contraditórios entre si, a união dessas duas perspectivas e práticas opostas no seio de grupo implica, de algum modo, conflitos ou angústia?
É um facto. Inclusive ao aprender, por exemplo, uma certa técnica que leva a obter um determinado tom ou som, há sempre a tendência de nos virarmos mais para o aspecto técnico da questão. O momento em que conseguimos alhear-nos desse aspecto e, de facto, sentir aquilo que se está a cantar é que é importante e único.
Como é que o público do campo, da província, reage aos vossos espectáculos?
Bem. As pessoas sobretudo revêem-se em nós. Vêm ter connosco e dizem: “Costumava cantar isso” ou “Na minha terra, cantava-se assim”. E ficam contentes por ouvir cantar essas canções de maneira diferente.
No Cramol, existem 22 mulheres a cantar. Que tipo de dificuldades concretas surgem no grupo?Ainda por cima, é um grupo extremamente heterogéneo – na postura, em tudo. É evidente que isso traz dificuldades. Algumas delas, se calhar, ridículas. Coisas tão simples como a maneira de nos apresentarmos em público, por exemplo, não são nada, nada fáceis. A única coisa – única entre aspas – que une estas pessoas é o facto de gostarem deste tipo de música.
Qual a importância desse aspecto, da maneira como se apresentam em público?
É importante para o público e para nós. Se calhar, as mulheres do campo não têm, ou têm menos, essa preocupação. A forma como nos costumamos vestir depende do sítio onde vamos. O importante é a relação que se cria com as pessoas, nesses sítios. Há vezes em que não temos preocupação nenhuma, cada uma vai como bem lhe aprouver. Noutras, achamos que deve haver um elemento comum, uma cor, de terra por exemplo. É algo que tem dado algumas chatices e discussões. Mas acabamos sempre por chegar a consensos.
Sem qualquer ajuda exterior?Temos um director artístico que, neste momento, é o Luís Pedro Faro. Está connosco há três anos. É ele que trabalha todo o aspecto técnico. E nos transmite as suas experiências fruto das recolhas que fez. É uma colaboração que funciona nos dois sentidos, uma vez que, às vezes, somos nós a propor uma determinada direcção. Há um aspecto importante que distingue o Cramol dos outros coros. É que, no nosso caso, não há um maestro à frente a dirigir. No nosso caso, apresentamo-nos em palco sem nenhum maestro. Cantamos sozinhas. O facto de não haver ninguém a dirigir implica uma determinada responsabilidade e cumplicidade. Quando se está, por exemplo, a cantar um canto polifónico, essa cumplicidade tem mesmo que existir. Outra pessoa que foi extremamente importante para a forma de estar do grupo é o Rui Vaz [que faz parte, actualmente, do Grupo de Gaiteiros de Lisboa], que esteve connosco durante quase onze anos.
Como é constituído o vosso reportório?
Essencialmente coisas portuguesas, embora também alguns temas da Galiza; polifonias das Beiras, Douro Litoral e Minho. É engraçado que o canto polifónico, à excepção do Alentejo, seja no resto do país, só é interpretado por mulheres. Também com a excepção de alguns cânticos rituais entoados por homens nas Beiras Baixa e Litoral. Mas não contamos só polifonias. Por exemplo, fizemos um espectáculo de comemoração do nosso décimo aniversário em que, na primeira parte, cantámos canções de embalar. Além disso, experimentamos combinações com um número maior ou menos de vozes.
Amélia Muge costuma referir que o estilo e orientação de um cantor devem fazer parte de um processo mais lato onde, em última análise, os meios se identificam com os resultados que se pretende atingir. No fundo, a interiorização de um processo coerente que deverá determinar as suas próprias formas de expressão. Quer comentar?
Concordo. Há grupos a fazerem a chamada música popular, ou de raiz tradicional que vão pela facilidade, sem procurarem essa interiorização. É, aliás, uma questão que vem na linha do que eu dizia há pouco, relativa à interiorização. Eu faço isso. É uma sensação indescritível quando se consegue e, ao mesmo tempo, nos apercebemos de que não estamos sozinhas. No meio de 22 pessoas, é-se um pauzinho; mas, quando se sente que todas as outras pessoas estão igualmente a interiorizar com toda a força, é de arrepiar.
Nunca teve vontade de experimentar o canto num contexto diferente?Não, nunca senti. Durante muito tempo, não sei se por timidez, por achar que não tinha voz, aquelas coisas, não gostava de cantar sozinha. Pensava sempre que estar juntamente com não sei quantas mais me diluía, não sobressaía nem ninguém me notava. Até que, pela primeira vez, cantei sozinha, num grupo chamado Bago de Milho. A princípio, até nos ensaios tinha vergonha de cantar. Mas, uma vez, tive mesmo que cantar uma canção sozinha e, de repente, ultrapassado o nervosismo, aquele medo, uma coisa terrível, senti uma sensação óptima. Estar perante uma plateia, a cantar em frente de um número enorme de pessoas. Voltei a repetir a experiência no Cramol mas não tenho isso como objectivo. E voltava a repetir se me convidassem para outro grupo e eu gostasse do projecto. E se fosse capaz [risos].
* Vocalista do Cramol, grupo coral com década e meia de existência, composta por 22 mulheres com uma paixão comum: a música vocal tradicional portuguesa.
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