06/11/2008

O ano do dilúvio [o ano 1993 em World]

Pop Rock

5 JANEIRO 1994
O ANO EM WORLD

O ANO DO DILÚVIO

Para muitos, cada vez mais, a música tradicional, ou de raiz tradicional, é a música do futuro. Uma música que nasceu com o nascimento da própria música. Que religa e se projecta nas três dimensões que cruzam o ser: Deus, Homem, e Natureza. Uma música que incessantemente muda de forma sem perder o coração. Eixo de sons, terreiro de danças. De palavras que contam histórias. Arquétipos da vivência humana, transmitidos de geração em geração. A “world music” – designação que neste suplemento, por conveniência de arrumação, se aplica num sentido lato a todas as músicas que integrem elementos tradicionais – ganha a cada dia novos adeptos e maior vitalidade. Na Europa é visível a importância crescente do género, na multiplicação dos lançamentos discográficos e dos festivais, na criação de novos organismos e circuitos de divulgação e edição. Em Portugal são também em cada vez maior número aqueles que descobrem na folk, na étnica, nas diversas sínteses do novo mundo um universo interminável de múltiplas geografias, exteriores e interiores.

Se em anos não tão afastados como isso, era difícil aos amantes desta música encontrarem no mercado português os discos pretendidos, essa situação inverteu-se totalmente nos últimos tempos. E, se os discos ainda não chegam aos nossos escaparates na sua totalidade (o que será das pobres carteiras do melómano consumidor quando tal acontecer?!...), para lá caminhamos, com os CD a chegarem em quantidade e em ritmo regular não só às discotecas da especialidade, como também às secções (por vezes escondidas e ainda dando mostras de uma certa timidez, fruto do medo de arriscar e de alguma ignorância na matéria…) dedicadas a este tipo de música.
Maurizio Martinotti e Beppe Greppi, dos Ciapa Rusa, estiveram entre 28 de Maio e 2 de Junho em Castro Verde, no Alentejo, para gravarem o “cante” do grupo Ganhões desta localidade, cuja edição em compacto está prevista para breve na Robi Droli, em Itália, e que no nosso país terá o selo Etnia, que entretanto alargou o seu campo de actividades à edição discográfica. Neste selo foi já lançado, no final do ano, a estreia em compacto dos Toque de Caixa, “Histórias do Som”, que será objecto de análise numa das próximas edições do Pop Rock.
Também este ano duas novas revistas dedicadas à folk vieram juntar-se à “Folk Roots”. Primeiro a “Trad. Magazine” francesa, a que se seguiu, alguns meses depois, a “The Living Tradition” escocesa, uma “principiante absoluta” nestas andanças. Ambas distribuídas pela MC – Mundo da Canção que – três vivas! – começará igualmente, já a partir de Janeiro, a distribuir também a “Dirty Linen”, uma das melhores publicações do género.
A este acompanhamento “em cima do acontecimento” do que se passou lá fora não correspondeu, infelizmente, a edição, em quantidade e qualidade, de discos portugueses. Descontando o já citado álbum dos Toque de Caixa, foi o deserto. Resta-nos a consolação de sabermos ainda em existência de grupos da velha guarda como os Almanaque, Raízes, Ronda dos Quatro Caminhos e Brigada Victor Jara. Para quando novos discos? Os Romanças preparam material novo, enquanto circulam alguns rumores sobre o novo capítulo da saga de Manuel Tentúgal, com ou sem os Vai de Roda, a seguir ao magnífico “Terreiro das Bruxas”.
As senhoras trocaram ideias, mas não houve meio de chegarem a acordo quanto ao famigerado grupo de supervozes femininas. Filipa Pais, Teresa Salgueiro, Minela e, mais a norte, na Galiza, Uxia para já não se entendem. Quem se esteve nas tintas e continuou a cantar de forma soberba foi Amélia Muge, cujas “múgi cas” estão prestes a reincidir num álbum novo que, diz quem já ouviu algumas maquetas será ainda melhor que a estreia da cantora. Amélia Muge que, por seu lado, prepara também ela um grupo com algumas colegas de ofício, entre as quais Margarida Antunes, do coro feminino Cramol. Maria João, a grande senhora do país do jazz, após alguns “flirts” com a música tradicional portuguesa parece querer mergulhar de corpo e voz nas raízes. O disco, a acontecer, vai fazer ondas.
Os homens, esses, organizam-se. Dois novos grupos prometem fazer furor no ano que agora se inicia: o Grupo de Gaiteiros de Lisboa, de Paulo Marinho, Carlos Guerreiro, Rui Vaz e, acabado de recrutar dos Almanaque, José Manuel David, bem como os Realejo, de Fernando Meireles. 1994 poderá bem ser o ano de arranque para novo “boom” da MPP, recuperando o elo perdido dos anos 70 e início dos 80. Sobre a “música popularucha portuguesa” e alguns discos que apareceram por aí a tentar vender banha da cobra basta dizer que os oportunismos não vingarão e que o joio apenas medrou porque as espigas de trigo não cresceram (falta de adubo?). Esperemos pela nova colheita.
De discos nacionais de música tradicional, de recolha ou de adaptações com novos arranjos, estamos conversados. Pura e simplesmente, com as excepções já mencionadas, não existiram. Mas há quem do outro lado da barricada, não desista. José Alberto Sardinha – antigo músico dos Almanaque e autor dos três volumes de recolha de música tradicional da Beira Baixa e Trás-os-Montes, publicados em 1982, de genérico “Recolhas Musicais da Tradição Oral Portuguesa” e de “Viola Campaniça – Um Outro Alentejo”, em 1986 – tem no prelo o livro “Tradições Musicais da Estremadura”, que a Imprensa Nacional, “por não estar na sua ordem de prioridades”, se recusou a editar.
De entre o dilúvio de álbuns chegados no ano findo ao nosso mercado, o destaque vai para a invasão nórdica iniciada em 1992 na Europa, mas que só este ano chegou até nós numa onda que trouxe os Hedningarna, Värttina, Möller, Willemark & Gudmunson, Niekku e Angelyn Tytot e que deverá prosseguir o longo deste ano (atenção também para as vagas árabes e da Europa do Mediterrâneo!) com a chegada de nova horda “viking”.

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