4 AGOSTO 1993
REEDIÇÃO
QUIM, “THE KING”
QUIM BARREIROS
No Algarve
CD Sonovox
A presente reedição reveste-se de transcendental importância. Por vários motivos. Porque Quim Barreiros é na actualidade um “entertainer” de massas e um artista do mais alto gabarito e porque “No Algarve” o apresenta no seu período anterior ao dos grandes clássicos pícaros como “Queres é levar com o chouriço”, “Vou comer a sobra”, “Curso de dactilografia” (“a professora a ensinar e eu a bater por letra”) e “Bacalhau à portuguesa” (“Maria, deixa-me ir à cozinha cheirar teu bacalhau”), o da “world music”, no caso presente um levantamento exaustivo do folclore algarvio, onde deixa patente a marca do seu génio.
Se a faceta de Quim Barreiros como “virtuose” do acordeão já nessa altura dera brado nos meios artísticos portugueses – faceta que o próprio aqui dá a conhecer, numa série de instrumentais de fusão que inspiraram Peter Gabriel na criação da editora Real World (diga-se de passagem que não há música mais “real world”, ou seja, “terra a terra”, que a de Quim Barreiros) –, é o lado poético do autor que neste caso despontava, fazendo antever obras posteriores mais elaboradas nas quais são exploradas ao máximo as possibilidades da rima inusitada e a arte, só ao alcance de alguns eleitos, de “como ultrapassar mais ou menos o problema da métrica recorrendo às mudanças de velocidade da voz”.
É assim que, ao longo de 25 peças antológicas, possíveis de saborear em todo o seu esplendor graças a uma técnica elaborada de gravação DDD, Quim Barreiros nos oferece deliciosos pedaços do mais genuíno folclore, onde a palavra (melhor dizendo, o verbo) fulge com invulgar intensidade. Os títulos são por vezes obscuros (“Isto é Algarve”, “Algarvios d’uma figa”, “Mar algarvio”, “Guitarras do Algarve”, “Flores Algarvias”), o que, se por um lado dificulta o trabalho do musicólogo, por outro tem a vantagem de dar rédea solta à imaginação do ouvinte menos preocupado com a análise estrutural do homem e da obra.
Os poemas, esses, são luminosos, bênção e refrigério para o espírito. Sobre uma base minimal de corridinho ou baile mandado, elaborados pelo acordeão e ferrinhos, Quim Barreiros funde com magistral perícia a poética tradicional na torrente de inspiração que sem parar jorra do interior da sua alma de artista torturado.
No seu canto transfigura-se o sentido popular (mas também litúrgico) de versos ancestrais que vibram no íntimo da alma lusitana: “À primeira mijadela faz andar um barco à vela/quando faz outra mijinha, faz andar uma lanchinha” ou “Se tu visses o que eu vi, lá na apanha da azeitona/um macaco a fazer ninho nas bordas de um alguidar”. Pontuados por interjeições de carácter ritual: “ai!”, “ui!” e “aguenta velho!”. No primeiro caso é a utilização inspirada da rima, no segundo, uma sua perversão, nessa suspensão, típica do tantrismo, da sílaba vital, do clímax orgástico-gramatical, que o faz substituir a rima certa, “alguidona”, por “alguidar”.
Mas onde a veia poética de Quim Barreiros lateja até quase ao enfarte é na simplicidade e, em particular, na visão poética, simultaneamente terna e sensível, que tem do feminino. É difícil de conter uma lágrima de emoção quando o ouvimos cantar: “ai as meninas de agora têm muita presunção/só andam de mini-saia/que é para mostrar o pernão” e – nunca o génio poético do homem se elevara tão alto – “toda a moça que é bonita também dá o seu beijinho/toda a moça que é bonita também dá o seu peidinho”.
Depois, só nos resta a rendição, quando o artista, com voz embargada, declama, apagando de um jacto a memória de Villaret, a sua ode ao Algarve, em “Algarvios d’uma figa”: “O meu Algarve é um menino/e o seu berço de embalar/é um barco onde o destino/o atira às ondas do mar” e, mais à frente, “Sob o sol, a hóstia de ouro [N.A.: na mesma o sol] que o cobre de alto esplendor/seu perfil trigueiro e moiro/ganha relevos de cor.”
Silêncio e recolhimento.
Classificação “Chunga”: o verdadeiro artista é o que faz mais flores.
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