11/12/2008

As cavidades do templo [Meira Asher]

Pop Rock

12 Janeiro 1997

Meira Asher lança estreia controversa

AS CAVIDADES DO TEMPLO

O álbum de estreia da israelita Meira Asher, “Dissected”, promete dar que falar. Gritos e suspiros. Música das cavidades do corpo e da alma. Das suas doenças e dos seus sonhos. Poesia e experimentação sobrepostos num painel de tabus e sublimações. “World music” do fundo do poço.

Meira Asher usa os textos bíblicos para dar a conhecer as suas visões. Ouve música de dança, mas não obedece às suas ordens de comando. Em viagem pelos caminhos da sexualidade, num “veículo próprio” entre a terapia e a denúncia, Meira Asher revelou ao PÚBLICO algumas das inquietações que manifesta em “Dissected”. Questionada sobre o diabo e a sua interferência na música, respondeu com uma citação de Job. Tão perturbante como a música.
PÚBLICO – “Dissected” é um álbum violento, de confrontação. Há alguma razão especial para ter escolhido esta estratégia de choque?
MEIRA ASHER – “Dissected” tem a ver com confrontação, mas não é violento. É um procedimento médico vulgar, uma observação mais de perto dos membros.
P. – Por que razão decidiu fazer também a produção do disco?
R. – Foi a coisa mais natural do mundo. Pretendi dar-lhe o toque mais pessoal possível. Em termos artísticos: projectar uma multiplicidade tumultuosa de disciplinas que resultasse numa síntese que pudesse manejar a meu bel-prazer. Em termos da indústria: as editoras que existem aqui [em Israel] não têm nem visão nem independência, todas elas lidam apenas com a música de Israel mais “mainstream”, que é extremamente chata. Os poucos músicos com uma atitude individualista que existem por cá geralmente produzem os seus próprios álbuns.
P. – O corpo e o sexo são duas das temáticas centrais de “Dissected”. Porque escolheu “Sida” para abrir o álbum?
R. – “Sida” tem por base uma oração de luto maravilhosa, chamada “Aquele que dá forma”. É uma invocação do poder de cura de Deus e refere-se a todas as cavidades do corpo humano. Quem ora não conhece nenhumas fronteiras, nem do tempo nem do espaço, nem da boca que canta…
P. – A relação que estabelece entre os textos bíblicos e alguns temas tabus da sociedade ocidental é outra estratégia de choque ou tem raízes mais profundas?
R. – Utilizo as escrituras por diversas razões. Uma delas é por ser uma grande obra de poesia, acessível, que emprega uma sábia sintaxe das sílabas hebraicas, o que resulta numa textura sonora de enorme profundidade. Aqueles que andam sempre a lamentar-se do desaparecimento da música do templo não se aperceberam deste facto. Por outro lado, a natureza eterna dos textos permite interpretações infindáveis, uma das quais é a sua manipulação tendenciosa por fanáticos, no contexto sócio-político de Israel.
P. – “Dissect me” fala de sofrimento, mutilação e tortura. Há uma relação óbvia com a Intifada, mas também permite outro tipo de leituras…
R. – … é um tema que traduz um sonho de horror que tive, durante a Intifada. Mas são possíveis outras leituras, sim… Sugerindo um Estado próprio chamado Palestina.
P. – “Maligora”, com poema de Tahar Bem Jelloun, é um dos temas mais fortes do disco. A energia sexual em circuito fechado. Uma espécie de tantrismo solitário. Que pretendeu dizer com este tema?
R. – O lugar é Marrocos. Na maior parte das sociedades orientais, quem não tem filhos e ainda por cima tem uma quantidade de filhas é objecto de desprezo. Um pai de sete filhas, frustrado, decide que o próximo será um rapaz, custe o que custar. O oitavo a nascer é, assim, uma “filha/filho”, como uma mentira, condenada a viver toda a vida na solidão. Ele leva as suas capacidades de escrita ao extremo de usar as palavras para preservar a sua sanidade. No parágrafo que utilizei, ela descreve o encontro sexual com o seu próprio corpo, à medida que vai descobrindo a sua identidade feminina. Tem 20 anos, o pai acabou de morrer e ela abandona a aldeia para uma longa viagem. “Maligora” é uma “raga” do Norte da Índia, entre a noite e a madrugada, em que os sentidos estão despertos e aguçados como o sabor do alho. A recitação do texto é feita pela harpista italiana Stefania Mpoiraghi.
P. – O incesto é abordado em “Daddy came”. Ainda e sempre o corpo e a pureza violentados?
R. – É um grito de despertar. Uma forma cáustica para nos recordar os direitos da criança.
P. – Está de acordo com que a sua música se pode considerar “ritual”, na medida em que induz a transformações, interiores e exteriores, de vária ordem?
R. – Sem dúvida.
P. – Trabalhou em musicoterapia, com crianças autistas. “Dissected” é, nesta medida, uma terapia ou, pelo contrário, uma contaminação?
R. – Digamos que um espelho da realidade. É necessária uma grande dose de energia para transformar um sonho como este em palavras. Lembro-me de, nessa altura, trepar pelas paredes e esborrachar os miolos contra elas…
P. – Que tipo de reacção tem tido este seu trabalho, em Israel?
R. – O “feedback” tem sido bom. As pessoas comovem-se, nalguns casos até às lágrimas. Os israelitas, embora raramente prezem a originalidade, admiram a honestidade.
P. – Sei que se interessa pela música electrónica, nomeadamente pela techno e industrial, formas musicais conotadas com a massificação, o apocalipse e o terror. De que maneira pretende trabalhar, no futuro, com estas formas musicais?
R. – Não posso predizer o que aí vem, mas planeio, de facto, entrar mais a fundo na electrónica. Há novo material a aparecer e estou na fase de procurar músicos para o tocar.
P. – Que relação mantém com a cena internacional da música de dança? Concorda que é uma óptima maneira de introduzir determinado tipo de mensagens ideológicas? O transe como veículo, não de ascese, mas de hipnose…
R. – Ouço bastante “dance music”, de toda a espécie, apesar de o meu corpo rejeitar a maior parte e não obedecer à ordem de comando “Move!” [Mexa-se!]. Propaganda e formas de hipnose podem e têm sido usadas através de vários estilos de música. No que me diz respeito, sinto necessidade de criar um veículo protótipo.
P. – O demónio, caso acredite nele, está a trabalhar em pleno neste final do século. Concorda que a música é, presentemente, o seu instrumento privilegiado?
R. – “Satanás replicou ao Senhor: ‘Um homem é capaz de dar tudo o que tem, e até a sua própria pele, para poder salvar a sua vida! Mas experimenta levantar a tua mão contra ele, faz com que ele sofra a doença nos seus ossos e no seu corpo e verás se ele não te amaldiçoa, mesmo na Tua frente!’” Job, 2:4-5.

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