Pop Rock
4 dezembro 1996
poprock
MAGNETISMO NA RÁDIO FANTÁSTICA
Ambiances Magnétiques, com distribuição portuguesa pela Audeo, é uma editora independente canadiana, com sede em Montreal, criada em 1983 pelos músicos Michel F. Côté, Jean Derome, André Duchesne, Joane Hétu, Diane Labrosse, Robert Marcel-LePage, René Lussier e Danielle Roger – facto que, desde logo, coloca as preocupações artísticas acima dos interesses mercantilistas.
Alguns destes músicos são já do conhecimento dos incondicionais da Recommended, através de uma pequena importação de discos em vinilo, chegada há alguns anos ao nosso país, que incluía, entre outros, trabalhos de André Duschesnes, Michel F. Côté com o seu grupo Bruire, René Lussier, Robert Marcel-LePage, Wondeur Brass e Les Poules, estes dois últimos grupos formados por Joane Hétu, Diane Labrosse e Danielle Roger.
O jazz, do tradicional ao “free”, a música de câmara europeia, a folk do Quebeque, a música de variedades e o cabaré, o ambiental e o “bruitismo” são algumas das linhas de força que se cruzam para formar a estética (Ambiances Magnétiques) AM.
“As músicas de Ambiances Magnétiques fazem uma utilização nova de tudo o que constitui a música comercial”, lê-se no manifesto da editora, para a qual, “quer sejam sons eléctricos, ritmos, solos ou a arquitectura geral de uma peça, é feita constantemente referência a algo que já se ouviu antes”. Isto porque “os seus compositores pertencem a uma geração que experimentou e ouviu todos os géneros de música”. A AM funciona como uma espécie de inverso da rádio, ou uma rádio fantástica, na medida em que opera a transfiguração desta, enquanto acumuladora e difusora de cultura, da vertente mais intelectual ao “kitsch”. O humor, a ironia e a paródia fazem parte das palavras de ordem da AM. Alguém pronunciou o nome de Frank Zappa?
Além dos títulos que, a seguir, recenseamos, não queremos deixar de chamar a atenção para outros que reputamos de qualidade. Estão neste caso “Maudite Mémoire”, de Michel Faubert, derivação pouco ortodoxa da tradição do Quebeque, com sabor contemporâneo, que agradará aos apreciadores de um grupo como os La Bottine Souriante, “Des Pas et des Mois”, de Martin Tétreaul, construção cortante de “samples”, ruídos, “scratch” e literatura, e “Adieu Léonardo”, homenagem, em tons neoclássicos, a Leonardo da Vinci, de Robert Marcel-LePage, segundo coordenadas menos habituais neste intérprete de clarinete e saxofones, amante do “erro musical” e da electrónica analógica. Outros nomes também a partir de agora disponíveis incluem os Évidence, André Duschesnes, Jerry Snell, Genevieve Letarte, René Lussier (reedição do fenomenal “Fin du Travail”) e Les Granules.
Bruire
L’âme de L’ Object (8)
Depois de “Le Barman a Tort de Sourire” e “Les Fleurs de Léo”, "L’Âme de l’Object" é a desconstrução da linearidade narrativa, o surrealismo sonoro atravessado pelos fantasmas de Fellini, de “La Strada” e a “chanson” etilizada dos cabarés de Paris do pós-guerra. Viagem pela inquietação, pelas ruínas do jazz, da pop desolada e da algazarra concretista, recusa panfletária da melodia de compêndio, o objecto pode ser o olho cortado pela lâmina, de Buñuel. A bateria e as “live electronics” de Côté juntam-se aos saxofones, flautas e “pequenos instrumentos” de Jean Derome e aos discos riscados de Martin Tétreault. “Swing” dos danados, enquanto Miles e Ornette dormem. Para desarranjar os ouvidos e o espírito.
Jean Derome et les Dangereux ZhomsNavré (8)
"Navré" é o segundo capítulo dos Dangereux Zhoms de Jean Derome, depois de "Carnets de Voyage”, reunindo de novo peças compostas durante digressões com os Keep the Dog, René Lussier, Les Granules ou os Looping Home Orchestra, de Lars Hollmer, a bordo de camiões, aviões ou em quartos de hotéis. Tem a vitalidade e a urgência de efémero e a força de uma respiração que se sustenta do jazz, com a grandeza de alma de uma “big band”. Os Henry Cow sorriem por detrás da cortina quando os sopros de Derome (figura de proa das novas músicas do mundo, é bom que se diga) chocam ou correm ao lado do trombone de Tom Walsh e da guitarra eléctrica de René Lussier, guitarrista – também ele, é urgente notá-lo, com a dimensão de um Robert Fripp.
Joane Hétu
Castor et Compagnie (8)
Em "Castor et Compagnie", de Joane Hétu, a palavra e o poema estão no centro das operações, quer pelo seu valor fonético, quer pela capacidade em evocar imaginários poéticos postos ao dispor dos instrumentistas. São histórias de renda e bordado, de sangue coalhado, de mensagens cifradas a arder num diário, lançando flechas ou flores a quem se ama, ou desespera de amar. Jean Derome volta a estar presente, com os seus saxofones incandescentes, flautas, teclados, cassetes e tudo o mais que produza som. Joane Hétu toca igualmente saxofone (instrumento preferido para as bandas da AM…) e teclados, além de cantar. Uma voz que arrisca os extremos da inflexão, descarrilando por vezes, na declamação, ou semideclamação, a que o peso das palavras a obriga. Um desconforto do mesmo tipo que se sente ao ouvir outros franco-Recommended, como Ferdinand Richard, por exemplo, resultante de uma certa falta de elasticidade do francês, no contexto de músicas mais fragmentárias. Diane Labrosse, companheira de Hétu nas Wondeur Brass, Les Poules e Justine, no “sampler”, acordeão e voz, é outra das colaborações deste poema reescrito em cores secundárias, em filmes sobrepostos, em diálogos e monólogos traçados a tira-linhas pelo coração.
Diane Labrosse
Face Cachée des Choses (9)
Diane Labrosse, fazendo jus ao seu nome de caçadora, não hesita em avançar tão longe quanto possível na experimentação e na sedução do som pelo som. “Face Cachée des Choses”, primeiro trabalho em solo absoluto da sua autoria, é uma armação sinfónica para “sampler” e gravações de fita, inventário de ruídos e músicas microscópicas, formas biológicas e mecânicas em evolução, etnomistificações, apontamentos de ornitologia, memórias traficadas pela informática. O sentido deste movimento em torno das sombras sonoras das coisas poderá ser o do acaso e da sua ordem sobrenatural. Música que cura a doença dos Biota, música da música, reveladora do quotidiano como colagem, fornecendo estímulos renovados a cada audição.
Justine
Langages Fantastiques (8)
Todas estas “linguagens fantásticas” convergem no álbum do mesmo nome das Justine – Hétu, Labrosse, Danielle Roger e Marie Trudeau –, as quatro desestruturalistas do Apocalypso-bar, numa extensão lógica das Wondeur Brass. “Langages Fantastiques”, segundo álbum do grupo, depois de “(Suites)”, é o intercâmbio jubiloso de sensibilidades em sintonia na Rádio Fantástica. Sessão de frenético “vaudeville” agitado pelo choro lancinante do sax de Hétu. Captado ao vivo em estúdio na sequência de uma digressão pela Europa, “Langages Fantastiques” sumariza, de forma exemplar, a diversidade de premissas estéticas da Ambiances Magnétiques, uma editora em estado permanente de alerta.
4 dezembro 1996
poprock
MAGNETISMO NA RÁDIO FANTÁSTICA
Ambiances Magnétiques, com distribuição portuguesa pela Audeo, é uma editora independente canadiana, com sede em Montreal, criada em 1983 pelos músicos Michel F. Côté, Jean Derome, André Duchesne, Joane Hétu, Diane Labrosse, Robert Marcel-LePage, René Lussier e Danielle Roger – facto que, desde logo, coloca as preocupações artísticas acima dos interesses mercantilistas.
Alguns destes músicos são já do conhecimento dos incondicionais da Recommended, através de uma pequena importação de discos em vinilo, chegada há alguns anos ao nosso país, que incluía, entre outros, trabalhos de André Duschesnes, Michel F. Côté com o seu grupo Bruire, René Lussier, Robert Marcel-LePage, Wondeur Brass e Les Poules, estes dois últimos grupos formados por Joane Hétu, Diane Labrosse e Danielle Roger.
O jazz, do tradicional ao “free”, a música de câmara europeia, a folk do Quebeque, a música de variedades e o cabaré, o ambiental e o “bruitismo” são algumas das linhas de força que se cruzam para formar a estética (Ambiances Magnétiques) AM.
“As músicas de Ambiances Magnétiques fazem uma utilização nova de tudo o que constitui a música comercial”, lê-se no manifesto da editora, para a qual, “quer sejam sons eléctricos, ritmos, solos ou a arquitectura geral de uma peça, é feita constantemente referência a algo que já se ouviu antes”. Isto porque “os seus compositores pertencem a uma geração que experimentou e ouviu todos os géneros de música”. A AM funciona como uma espécie de inverso da rádio, ou uma rádio fantástica, na medida em que opera a transfiguração desta, enquanto acumuladora e difusora de cultura, da vertente mais intelectual ao “kitsch”. O humor, a ironia e a paródia fazem parte das palavras de ordem da AM. Alguém pronunciou o nome de Frank Zappa?
Além dos títulos que, a seguir, recenseamos, não queremos deixar de chamar a atenção para outros que reputamos de qualidade. Estão neste caso “Maudite Mémoire”, de Michel Faubert, derivação pouco ortodoxa da tradição do Quebeque, com sabor contemporâneo, que agradará aos apreciadores de um grupo como os La Bottine Souriante, “Des Pas et des Mois”, de Martin Tétreaul, construção cortante de “samples”, ruídos, “scratch” e literatura, e “Adieu Léonardo”, homenagem, em tons neoclássicos, a Leonardo da Vinci, de Robert Marcel-LePage, segundo coordenadas menos habituais neste intérprete de clarinete e saxofones, amante do “erro musical” e da electrónica analógica. Outros nomes também a partir de agora disponíveis incluem os Évidence, André Duschesnes, Jerry Snell, Genevieve Letarte, René Lussier (reedição do fenomenal “Fin du Travail”) e Les Granules.
Bruire
L’âme de L’ Object (8)
Depois de “Le Barman a Tort de Sourire” e “Les Fleurs de Léo”, "L’Âme de l’Object" é a desconstrução da linearidade narrativa, o surrealismo sonoro atravessado pelos fantasmas de Fellini, de “La Strada” e a “chanson” etilizada dos cabarés de Paris do pós-guerra. Viagem pela inquietação, pelas ruínas do jazz, da pop desolada e da algazarra concretista, recusa panfletária da melodia de compêndio, o objecto pode ser o olho cortado pela lâmina, de Buñuel. A bateria e as “live electronics” de Côté juntam-se aos saxofones, flautas e “pequenos instrumentos” de Jean Derome e aos discos riscados de Martin Tétreault. “Swing” dos danados, enquanto Miles e Ornette dormem. Para desarranjar os ouvidos e o espírito.
Jean Derome et les Dangereux ZhomsNavré (8)
"Navré" é o segundo capítulo dos Dangereux Zhoms de Jean Derome, depois de "Carnets de Voyage”, reunindo de novo peças compostas durante digressões com os Keep the Dog, René Lussier, Les Granules ou os Looping Home Orchestra, de Lars Hollmer, a bordo de camiões, aviões ou em quartos de hotéis. Tem a vitalidade e a urgência de efémero e a força de uma respiração que se sustenta do jazz, com a grandeza de alma de uma “big band”. Os Henry Cow sorriem por detrás da cortina quando os sopros de Derome (figura de proa das novas músicas do mundo, é bom que se diga) chocam ou correm ao lado do trombone de Tom Walsh e da guitarra eléctrica de René Lussier, guitarrista – também ele, é urgente notá-lo, com a dimensão de um Robert Fripp.
Joane Hétu
Castor et Compagnie (8)
Em "Castor et Compagnie", de Joane Hétu, a palavra e o poema estão no centro das operações, quer pelo seu valor fonético, quer pela capacidade em evocar imaginários poéticos postos ao dispor dos instrumentistas. São histórias de renda e bordado, de sangue coalhado, de mensagens cifradas a arder num diário, lançando flechas ou flores a quem se ama, ou desespera de amar. Jean Derome volta a estar presente, com os seus saxofones incandescentes, flautas, teclados, cassetes e tudo o mais que produza som. Joane Hétu toca igualmente saxofone (instrumento preferido para as bandas da AM…) e teclados, além de cantar. Uma voz que arrisca os extremos da inflexão, descarrilando por vezes, na declamação, ou semideclamação, a que o peso das palavras a obriga. Um desconforto do mesmo tipo que se sente ao ouvir outros franco-Recommended, como Ferdinand Richard, por exemplo, resultante de uma certa falta de elasticidade do francês, no contexto de músicas mais fragmentárias. Diane Labrosse, companheira de Hétu nas Wondeur Brass, Les Poules e Justine, no “sampler”, acordeão e voz, é outra das colaborações deste poema reescrito em cores secundárias, em filmes sobrepostos, em diálogos e monólogos traçados a tira-linhas pelo coração.
Diane Labrosse
Face Cachée des Choses (9)
Diane Labrosse, fazendo jus ao seu nome de caçadora, não hesita em avançar tão longe quanto possível na experimentação e na sedução do som pelo som. “Face Cachée des Choses”, primeiro trabalho em solo absoluto da sua autoria, é uma armação sinfónica para “sampler” e gravações de fita, inventário de ruídos e músicas microscópicas, formas biológicas e mecânicas em evolução, etnomistificações, apontamentos de ornitologia, memórias traficadas pela informática. O sentido deste movimento em torno das sombras sonoras das coisas poderá ser o do acaso e da sua ordem sobrenatural. Música que cura a doença dos Biota, música da música, reveladora do quotidiano como colagem, fornecendo estímulos renovados a cada audição.
Justine
Langages Fantastiques (8)
Todas estas “linguagens fantásticas” convergem no álbum do mesmo nome das Justine – Hétu, Labrosse, Danielle Roger e Marie Trudeau –, as quatro desestruturalistas do Apocalypso-bar, numa extensão lógica das Wondeur Brass. “Langages Fantastiques”, segundo álbum do grupo, depois de “(Suites)”, é o intercâmbio jubiloso de sensibilidades em sintonia na Rádio Fantástica. Sessão de frenético “vaudeville” agitado pelo choro lancinante do sax de Hétu. Captado ao vivo em estúdio na sequência de uma digressão pela Europa, “Langages Fantastiques” sumariza, de forma exemplar, a diversidade de premissas estéticas da Ambiances Magnétiques, uma editora em estado permanente de alerta.
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