01/12/2008

"Fica tudo levezinho, doce..." [Dulce Pontes]

Pop Rock

13 de Novembro de 1996

Dulce Pontes sente os “Caminhos” do seu novo álbum

“Fica tudo levezinho, doce…”

Dulce Pontes gosta da naturalidade, de se ouvir experimentar a voz numa igreja ou num espaço aberto, sob a chuva ou os aplausos do público. Com uma nova imagem e um novo disco, “Caminhos”, encontrou amigos da Galiza e a essência da música portuguesa, da qual é hoje uma das estrelas mais cintilantes.


O sucessor de vendas do seu disco anterior, “Lágrimas”, em Portugal e nos estrangeiro, e a participação na banda-sonora de um filme com Richard Gere, “Primal Fear”, exibido em todo o mundo, não afectam a natural simplicidade de Dulce Pontes. O mais importante continua a ser cantar os poemas e as músicas que lhe dão prazer. “A capella” ou acompanhada por uma orquestra. Demarca-se de Amália, “Somos mundos distantes”, e leva Carlos Nuñez “a sítios onde ele não iria”. Dulce Pontes segue, no fundo, o seu próprio caminho, que toca com os caminhos dos outros. O PÚBLICO acompanhou-a na fase mais recente da sua viagem.
PÚBLICO – A abrir caminho no disco está “O Infante”, com letra de Fernando Pessoa e música sua. Como surgiu este tema?
Dulce Pontes – Há uns três meses atrás estávamos a jantar, eu e o Guilherme [Inês], e à procura de um poema que pudesse ser o “leitmotiv” de todo o disco. Encontrei-o nesse poema.
P. – Que “leitmotiv” é esse?
R. – Inspirando-nos nas nossas raízes – o fado, o folclore e a música popular – quisemos alargar um pouco mais estas influências, sendo o mar o factor de união.
P. – “Caminhos”, pelo tipo de produção, parece-nos feito a pensar no mercado internacional. Concorda?
R. – Também. É para quem o quiser ouvir. É evidente que pessoas como o Carlos Nuñez ou o Leonardo Amuedo tiveram influência no som final. Procuro que a minha mensagem seja universal.
P. – Não receia perder-se num atalho, tantos são os caminhos do disco?
R. – Não. Andar num caminho com umas palas nos olhos seria pior. Podemos continuar no nosso caminho tendo uma visão mais abrangente, influenciada por tudo o que se vê à nossa volta.
P. – O que é que dá unidade a “Caminhos”?
R. A tal essência da música portuguesa. A música é algo muito maleável e a portuguesa, por ter uma base tão simples, harmonicamente falando, permite uma série de interpretações, uma série de caminhos distintos. Dá-me imenso gozo experimentar essas diferentes formas de cantar, esses diferentes sons, embora tendo sempre como base o ponto de partida que já referi.
P. – “Lela”, um dos temas com Carlos Nuñez, já aparecia no álbum deste músico, “O Caminho das Estrelas”. Foi um aproveitamento?
R. – Não. Aliás, isso também aconteceu noutro tema, “Porto”, que está no disco do Leonardo. Com o Carlos Nuñez trata-se de o levar a sítios onde ele não iria e vice-versa.
P. – No meio da sofisticação que impera na maioria dos arranjos, acaba por sobressair a sua interpretação “a capella”, em “Senhora do Almortão”. Em qual dos contextos prefere cantar?
R. – Em termos afectivos – e noto muito isso nos espectáculos ao vivo – prefiro o “less is more”, sinto que consigo aproximar-me mais do público do ponto de vista emotivo, quando canto “a capella”, ou só com o piano ou uma guitarra.
P. – Por que razão foram precisos seis estúdios para gravar o disco?
R. – Aconteceu… Bem, no que respeita àquele onde fizemos as misturas, os Wisseloord studios, em Hilversum, na Holanda, é fácil de explicar: São os Rolls Royce dos estúdios da Europa. A orquestra sinfónica fomos gravá-la em Roma também porque era mais fácil ir eu lá com o Guilherme e os dois técnicos do que trazer a orquestra inteira para aqui. Em Espanha, foi por ter estado lá a gravar um tema do disco de Luís Pastor, “Chuva de Maio”. Adorei o estúdio, tinha um grande microfone, daqueles antigos, com um som que não tem explicação! Com uma naturalidade e neutralidade espantosas!
P. – Cultiva essa naturalidade, não é?
R. – Sim, embora também goste do que se faz em estúdio, efeitos, “delays”, “reverbs”, mas de facto tenho esse gosto pelo natural. Por vezes, quando estive numa igreja, em Brasília, comecei a cantar lá dentro, só para ouvir o som, um som que não se consegue em estúdio nenhum. Noutra ocasião, ia a passear na Arrábida, ao pé do convento, estava a cair uma chuva miudinha. Parei para fazer uma coisa que gosto de fazer em espaços abertos, quando está silêncio absoluto: emitir alguns sons, não é bem cantar. Consoante os lugares, obtêm-se “delays” diferentes. Nessa altura, de repente, estava eu a fazer esse tipo de experiência, vejo ao fundo uma luz a acender e a apagar, ao ritmo do que fazia com a voz. Acho que estavam a gravar cenas do filme “Afirma Pereira” e alguém deve ter ligado o projector, quando me ouviu…
P. – Como é que se sentiu a cantar com uma orquestra?
R. – Foi arrepiante. Parece que se sente o som a atravessar os poros. Fica tudo levezinho, doce… É um luxo a que não estamos habituados em Portugal, infelizmente. Continua a haver alguns preconceitos de alguns músicos clássicos em relação à música ligeira, o que é uma estupidez.
P. – As fases mais recentes da sua carreira, com participações em filmes estrangeiros, como “Primal Fear”, e o sucesso de vendas do disco anterior, “Lágrimas”, conduziram-na ao estrelato. Como lida com este estatuto, tão rapidamente adquirido?
R. – Não sinto muito… Como fui sempre um bocadinho “marginal”, não sinto quaisquer pressões, apenas a da responsabilidade do trabalho que faço. O que mudou na minha vida foi passar a ter menos tempo para estar com os amigos, algo um pouco doloroso. Mas por outro lado posso estar com muita gente, amigos anónimos. Uma coisa compensa a outra. Quando acabo um espectáculo, o facto de saber que as pessoas estão na sala com um sorriso, que, de alguma forma, lhes proporcionei um bom momento, sentir que tive esse privilégio, faz-me ultrapassar tudo.
P. – Irritam-na ou sente-se lisonjeada com as constantes comparações que fazem entre si e Amália?
R. – Não me irritam, é um elogio, mas não gosto que façam essas comparações. Como intérpretes e cantoras não temos nada a ver uma com a outra. Nem a forma de sentir o fado. São mundos distantes.
P. – Mudou a sua imagem. Porquê?
R. – Toda a gente me dizia para não cortar os caracóis, que não era lá muito boa ideia, que as pessoas estavam habituadas ao corte que tinha. Mas decidi mesmo cortar, depois já não havia nada a fazer. E foi como voltar a sentir-me de novo dentro da minha pele.

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