Pop Rock
22 Janeiro 1997
Jorge Lima Barreto lança um álbum novo e reedita dois antigos
22 Janeiro 1997
Jorge Lima Barreto lança um álbum novo e reedita dois antigos
“TIVE UMA COLISÃO MUITO
GRANDE COM AS PESSOAS DO JAZZ”
No seu novo disco, mais um, dos Telectu, intitulado “À Lagardère”, a banda de Jorge Lima Barreto e Vítor Rua conta com a participação do trompetista Jac Berrocal. Em paralelo, acabam de ser reeditados os dois primeiros álbuns da Anar Band, entre os quais “Encounters”, com Saheb Sarbib. Para ler, há também um novo livro, “Musa Lusa”. Um período em cheio para Jorge Lima Barreto que continua imparável na sua marcha em direcção a uma utopia.
“À Lagardère”, “Anar Band” mais “Encounters”. 20 anos separam as duas edições. 20 anos separam o tempo em que Jorge Lima Barreto martelava as teclas de um piano em Cascais, dos dias de hoje, em que o músico musicólogo do Porto atrai para a música dos Telectu a nata dos improvisadores da cena internacional. No fundo, trata-se apenas de pôr em prática a “capilaridade” que existe entre estes sons e estes músicos. Como o próprio explica em entrevista ao PÚBLICO.
PÚBLICO – Depois de Elliott Sharp e Chris Cutler, os Telectu voltaram a gravar com outro nome importante da música improvisada, desta feita o trompetista Jac Berrocal. Como surgiu esta colaboração?
Jorge Lima Barreto – O Berrocal é um músico francês que trabalhou com o Daunik Lazro que, por sua vez, fazia parte do grupo de Saheb Sarbib quando este vivia em França. Daí que eu tenha mantido sempre uma relação estreita com esse círculo musical. Por outro lado, o Berrocal está muito ligado à “performance”, esteve nas Caldas da Rainha, num certame de música alternativa, ao lado do Jorge Peixinho, entre outros músicos. Quando nos foi propiciado convidar um músico para trabalhar connosco num concerto na Casa de Serralves, no Porto, ele veio, sentimos que a coisa era conciliável do ponto de vista do estilo e a partir daí ele já fez uns sete ou oito concertos connosco. Para este disco, preparámos, no Festival de Guimarães, um quarteto com ele e com o Louis Sclavis. O Jac ficou cá mais uns dias, o que nos proporcionou seguirmos para Espinho para gravar na Numérica.
P. – Esta estratégia de intercâmbio com músicos convidados não obriga à modificação constante de estilo dos Telectu?
R. – Neste tipo de música, improvisada, existe uma capilaridade muito grande, uma troca constante entre as figuras musicais. O Zíngaro, por exemplo, toca e grava com diversos músicos. Por outro lado, vão-se criando afinidades, uma troca de situações que é muito importante. Tocar com um baterista como o Cutler é diferente de tocar com outro, como o Paul Lytton. Para nós é um engrandecimento da nossa própria experiência.
P. – Mas não existe o perigo de as pessoas não conseguirem reconhecer aquilo que pertence intrinsecamente aos Telectu?
R. – Respondo com outra colaboração. O Daniel Kientzy estava para vir tocar com o Jorge Peixinho. O Jorge Peixinho morreu e eu fui falar com ele, aliás ele é que se dirigiu a mim, porque queria fazer a divulgação do disco dele com o Peixinho. Veio cá a casa, conversámos e disse-lhe que estávamos para ter um concerto de música improvisada nas Festas da Cidade. Foi ele mesmo que disse que queria improvisar connosco. Tocámos, ele gostou, e criou-se um núcleo Kientzy/Telectu para a realização de vários concertos. E convidou-nos para gravar em Paris com ele. Do nosso lado procurámos criar um tipo de situação sonora a pensar num homem que é multi-instrumentista de sopros. Mas quando é com o Cutler, um baterista, a coisa é completamente diferente. Exige outro tipo de planificação. Mas se reparar, há da nossa parte um trabalho de composição em que estabelecemos um determinado número de premissas para as coisas se realizarem. Nunca é improvisação absoluta. Depois, repare, um compositor contemporâneo pode compor para quarteto de cordas, para percussão, para sopros, para electrónica, situações que levam quase a uma mudança de identidade. Mas, por outro lado, sentimos que há qualquer coisa, talvez indefinível, uma coerência nas várias situações que descrevi.
P. – Os últimos álbuns, e o novo, em particular, denotam uma certa fixação no ambientalismo…
R. – … Um lado mais modal, sim…
P. – Um tema como “Baccarah caril” lembra fortemente a estética de Brian Eno, em “On Land”…
R. – Sim, pode haver uma relação. No novo disco houve uma escolha de escalas, uma espécie de fórmula modal, a partir da qual se desenvolveu uma temática que, por outro lado, depende da instrumentação, umas vezes do sintetizador, outras do piano, daí que tenham resultado estruturas muito mais melódicas. Mas não fazemos isso no sentido de uma imitação.
P. – Em paralelo com a edição do novo disco com Jac Berrocal, foram reeditados, num compacto simples, os dois primeiros trabalhos da Anar Band, o segundo deles, “Encounters”, em colaboração com Saheb Sarbib. Há aqui o desejo de uma reapreciação estética destes discos ou, simplesmente, a perspectiva do arquivista histórico?
R. – Nos anos 70 estes dois discos foram os únicos que existiram neste tipo de música, improvisada. O disco com o Sarbib, por exemplo, era para ser gravado com o quarteto do Pinho Vargas. Foi na época em que Rão Kyao costumava vir a minha casa e em que gravou o “Goa”. Nessa altura eu tinha tocado em Cascais, em 1974, em piano e banda magnética, um tipo de propostas absolutamente iconoclastas. Quando sugeri ao Sarbib fazermos um “replay” dos temas, tocar por cima do que já estava tocado, foi a primeira vez que aqui se fazia esse tipo de experiência, embora Bill Evans já o tivesse feito lá fora. Era um tabu para as pessoas do “jazz”. Nesse tempo estavam a “rebentar” as músicas improvisadas, as quais estavam a divergir do “jazz”.
P. – Passados 20 anos, como é que ouve estes dois discos?
R. – É complicado. Não vou falar em sentimentalismo… No caso do disco só da Anar Band, ouço, embora haja coisas que até passo à frente, mas, de resto, foi muito gratificante, em particular o trabalho no piano, nas cordas do piano, que julgo ter sido bastante original. No caso do “Encounters”, é completamente diferente, uma vez que se tratava de um grande músico, como é o Sarbib, que na altura estava na pujança do seu estilo, em particular com aquele som do contrabaixo, semi-amplificado, que, além deste, só se encontra em mais dois ou três discos dele. Ainda em relação ao “Anar Band”, está dividido em dois lados. O primeiro acho-o marcante, em termos de intervenção de um estilo de piano que ainda hoje pratico nos concertos. No outro lado, só com o sintetizador, aí é que ponho certas reticências, já que algumas abordagens parecem pretender insinuar coisas que depois se desenvolveram muito. Por exemplo, o minimalismo, ou certo tipo de automatismos que teriam, então, paralelo com o rock alemão. A estratégia de divisão em temas separados é que não terá sido a mais correcta, já que ao vivo eu costumava tocar apenas uma longa composição electrónica. Mas existia o prazer da manipulação do sintetizador analógico, o A.R.P. Odyssey. Agora há aí o “hip hop” em que se está de novo a utilizar o analógico e as mesmas marcas… Com os Anar Band utilizava uns painéis que recortava e sobrepunha, em cada composição, numa espécie de palimpsesto.
P. – A provocação era parte integrante da proposta estética dos Anar Band?
R. – Lembra-se daquele festival em Sintra, em que fizemos a primeira parte do concerto do Michel Portal? [N. R. : Lembramo-nos, e de que maneira! A actuação do grupo de Portal permanece na nossa memória como a mais extraordinária assunção de “música total” a que alguma vez assistimos.] A nossa proposta foi, nessa ocasião, extremamente provocadora. Quanto ao disco, é difícil compará-lo com qualquer outro tipo de realidade. Não são visíveis influências.
P. – Por último, mais um livro, “Musa Lusa”, no qual, mais do que dissertar sobre música, analisa os seus meios de produção e divulgação…
R. – É um livro mais de consulta. Também vou editar proximamente um outro, “O Siamês Telefax Stradivarius”, na Campo de Letras, do Porto, que é um desenvolvimento deste, sobre aquilo que eu considero ser a cultura dos “media”. Hoje temos uma cultura que nos é fornecida pelos “media”. A música está inclusa nesse tipo de cultura.
P. – Os seus trabalhos no domínio da escrita têm, por norma, causado uma certa polémica. Isso deve-se à manutenção de um estatuto de “marginalidade” no interior do sistema ou a um menor rigor no tratamento dos assuntos abordados?
R. – No caso da minha escrita, ou da minha atitude perante a música e da sua situação social, tem existido uma relação bastante desgastante com alguma crítica, mas isso acontece em todos os lugares. No meu caso, tive uma colisão muito grande com as pessoas do “jazz”, porque, na altura, tentava impor o “free jazz”. Depois veio a música minimal, da qual também fiz uma grande divulgação, e essas posições originam sempre uma reacção. Entra-se em confronto com essa reacção.
P. – Mas não reconhece haver um certo fundamentalismo no modo como expõe as matérias?
R. – Se não fosse assim, ninguém fazia nada. Por exemplo, um actor de teatro que queira desenvolver uma nova linguagem ou alguém, do cinema, que queira mostrar cinema experimental. Alguém, ainda, das artes plásticas, que pretenda mostrar o novo subjectivismo na pintura, tudo situações de hoje. Ou a divulgação da pós-modernidade, que agora acontece na música, a explicação dos seus fenómenos, cada vez mais complexos, labirínticos. Está-se a explicar aquilo que nos rodeia. E o que nos rodeia é uma cultura mediática, que nos é inculcada pelos “media” e leva as pessoas a estarem atrasadas. No sentido em que não têm sequer contacto ao que se faz de novo. As massas, o grande público, estão acantonadas, isoladas, das coisas novas que aparecem. Devido a esse isolamento, quando elas aparecem, não as compreendem.
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