CULTURA
DOMINGO,
26 OUT 2003
Crítica
Música
A fúria é a melhor amiga do homem
John
Cale
LISBOA Aula Magna
Sexta-feira, 21h30. Sala a três quartos.
Desafinou num ou
noutro momento. Expôs fragilidades. Arriscou registos contraditórios. Mas,
caramba, o homem, John Cale, deu sexta-feira, na Aula Magna, em Lisboa (ontem
voltou a atuar na mesma sala com alinhamento diferente), um dos melhores
concertos rock deste ano. Aos 61 anos, a energia continua concentrada na
difícil arte de caminhar sobre o fio da navalha. Arrasador.
Integrado
numa banda formada por Craig Irwin Levitz (bateria, bateria eletrónica e samples)
Jeff Samuel Thall (guitarra) e Paul Andrew Page (baixo) Cale alternou a apresentação
do novo álbum “HoboSapiens”, com temas extraídos da sua anterior discografia, de
álbuns como “Fear”, “Slow Dazzle” e “Music for a New Society”. Os primeiros,
ainda pouco rodados, recriaram as ambiências complexas e a forte componente eletrónica
do disco, com Cale no piano elétrico e Levitz a lançar para a mesa de mistura
samples vocais e uma artilharia de efeitos especiais. Pelo meio, temas tocados em
guitarra acústica, como “Chinese savoy”, “gospel” de abandono como “Ship of
fools” e um “Fear” de gelar o sangue – Cale a gritar como um danado, a plateia
percorrida por um frémito. “Fear is a man’s best friend”. O ex-Velvet há muito que
trocou o medo pela fúria.
Logo
de início, arreganhou os dentes, entrando a matar com “Venus in furs”, tema escrito
pelo seu antigo companheiro nos Velvet, Lou Reed, do mítico álbum da banana. A
velha “drone” de viola de arco, tão nevrótica como há 36 anos, e a guitarra de
Thall a escorrer limalha de ferro, reproduziram um filme ao qual só faltaram os
fantasmas de Warhol e de Nico. Cumprido o ritual, entrou no túnel do rock
‘n’roll, saindo do outro lado a cavalo nas programações eletrónicas de “HoboSapiens”,
para voltar de novo atrás, vociferar baladas, a voz a falhar e a voltar ao lugar,
mais poderosa e frágil do que antes, mas sempre com a alma a esbugalhar-se, incandescente
como a de um jovem revolucionário.
Quanto
tempo tocou? Difícil dizer. Porque o tempo parou, suspenso na sinceridade sem freios,
na crueza emocional deste músico que recusa esconder-se atrás das modas. Para John
Cale continua a ser um assunto de vida ou de morte. Juntaram-se as duas na
demolidora sequência final, “Gun”, de “Fear” e “Pablo Picasso”, de “Helen of
Troy”, acoplados numa locomotiva de adrenalina e decibéis. O público,
espezinhado, esmagado, rendido pelo choque de eletricidade, ergueu-se e
aplaudiu de pé, pedindo durante largos minutos o “encore” que demorou a chegar.
Cale
regressou para se expor e arriscar ainda mais. “Hallelujah”, sozinho, num hino arrancado
ao amor mais terno e ao mais profundo desespero, a seguir, “(I keep a) close
watch”, de “Helen of Troy” (nova versão em “Music for a New Society”), a derradeira
confissão: “Never win and never lose/There’s nothing much to choose/Between the
right and wrong/Nothing lost and nothing gained/Still things aren’t quite the same/Between
you and me I keep a close watch on this heart of mine.”
As
luzes acenderam-se e apagaram-se e voltaram a acender-se e a apagar-se. E o
público sem arredar pé, a pedir mais e mais. Mas Cale já ali não estava. Faltou
apenas “Heartbreak hotel”. Mas seria talvez insuportável. Desnudar ainda mais a
raiva e a solidão.
EM RESUMO
John
Cale, o eterno sabotador, não teve medo de cortar o rock em duas metades: a dos
Velvet Underground e a do novo álbum “HoboSapiens”. Concerto arrasador.
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