17|OUTUBRO|2003 Y
dulce pontes|música
Conheceram-se, ligaram-se
e, nos últimos oito anos, não se largaram. Dessa relação nasceu “Focus”, álbum
de BSOs para filmes míticos, agora dobrados em português. Ennio Morricone e
Dulce Pontes Concretizaram a missão.
A balada de Ennio e Dulce
Ennio
Morricone e Dulce Pontes conheceram-se em 1995, durante as filmagens de “Afirma
Pereira”, para o qual o compositor e maestro italiano escreveu a banda sonora,
que incluía a canção “A brisa do coração”, de Francesco de Melis e Emma Scoles,
pela voz da cantora portuguesa, precisamente.
Nessa altura
juraram voltar a trabalhar juntos mas o autor das partituras de “Aconteceu no
Oeste”, “A Missão”, “Cinema Paraíso” e “Sacco e Vanzeti” impôs como condição
que Dulce esperasse até fazer 30 anos. Para ganhar experiência. Dulce esperou,
apagou as 30 velas e Ennio cumpriu a promessa.
E de que
maneira: oferecendo-lhe um álbum inteiro com música sua. O álbum chama-se
“Focus”, tem 16 canções e letras, entre outros, de Federico Garcia Lorca, Joan
Baez, Francesco de Melis, José Mário Branco, Mark Niedzwiedz, Carlos Vargas,
Phil Galdston, Audry Stainton, M. Travis e da própria Dulce Pontes, na canção
de homenagem a Amália Rodrigues, “Amália por amor”. A portuguesa cantou na
língua natal mas também em italiano, espanhol e inglês. Com empenho.
Interiorizando a colaboração como um “sonho tornado realidade” e um “ato de
amor”, capaz de lhe provocar o “êxtase”.
Morricone, com
a calma e a distanciação própria dos seus 75 anos (40 de carreira), não poupa,
porém, nos elogios impressos na capa do disco, na forma como se refere às cinco
novas composições que escreveu para o disco (“Amália por amor”, “Antiga palavra”,
“Luz prodigiosa”, “Voo” e “I Girasoli”): “Escrevi-as a pensar na voz de Dulce.
Queria dar um ritmo intencional a estas novas peças – chamemos-lhe um ritmo
ibérico – porque queria que a Dulce pudesse expressar o seu alcance vocal, mas
também manter as conotações do fado português (…) ela tem qualidades ‘camaleónicas’
tão completas, tão incrivelmente variadas, que tenho de dizer que ela toca em
todos os aspetos da canção, todas as formas de cantar”. Vai mesmo mais longe,
ao afirmar que este é um dos discos “mais importantes” que alguma vez fez “com
um cantor”, definindo-o como “extraordinário”.
perfeccionista.
1995 foi o ano da luz. Dulce e Ennio encontraram-se nas circunstâncias atrás
descritas e ele não a largou mais. “Começou a convidar-me para ir cantar aos
concertos dele”, conta a cantora portuguesa, ainda mal refeita desse encontro
“profissional” e “pessoal” com o mítico autor de BSO para “Western spaghettis”
como “Por um Punhado de Dólares”, de Sérgio Leone. “Mantivemos contacto ao
longo dos últimos anos e estivemos juntos em várias partes do mundo, como na Arena
de Verona, o Palácio dos Congressos, em Paris, Londres, Norte da Europa…”.
Proximidade e afeto mútuos ao ponto de levarem Dulce a considerar o maestro
como “uma pessoa da família”. Alguém que descreve como “perfeccionista” e “com
uma objetividade muito grande” em relação às suas conceções musicais, “o que se
reflete na sua maneira de ser” – usa muito a expressão ‘dignidade artística’”.
“Há poucas pessoas que conservem tais princípios ao longo da vida”, reconhece, acrescentando
ter estado ao lado de alguém “acessível, sempre disposto a contar anedotas”.
Dulce Pontes
acompanha a música de Morricone desde a adolescência. Cita como banda sonora
preferida “A Missão”. E reconhece que a sua voz se adapta a ela com
naturalidade. “Porque a música dele descreve muitas imagens, uma música
multifacetada que me permite tocar várias cambiantes da minha personalidade e
da minha voz enquanto intérprete”, diz Dulce que, apesar dessa admiração mútua,
teve que esperar até aos 30 anos para retomar a ligação artística com o mestre
italiano. Mas valeu a pena a espera. “Isto acontece no melhor tempo da minha
vida. Este disco não seria nada do que é se o tivesse feito no meio do rodopio
em que eu normalmente andava. Depois, o facto de ter sido mãe fez-me ficar com
mais corpo, o que me ajuda imenso na parte técnica. E tenho hoje uma
estabilidade afetiva que antes não tinha”.
Foram oito anos
de espera até, finalmente, “se desbloquearem uma série de situações”, como o
facto da editora querer que a cantora lançasse mais um disco antes da aventura
Morricone, o que implicou “cedências”, das quais, porém, Dulce “não se
arrepende nada”.
Ao fim e ao
cabo proporcionaram-se as condições para “Focus” avançar e poder contar com
cinco composições novas oferecidas “de bandeja” à cantora que em 1999
conquistou o Prémio José Afonso com o álbum “O Primeiro Canto”. “Sobretudo pela
quantidade de vozes magníficas que existem no planeta, sinto-me privilegiada
por ele me ter escolhido”.
“va
bene, bravo!”. “Focus” foi gravado no mesmo estúdio que “Brisa do
coração”, no Fórum estúdio, em Roma. Durante sete dias, “tudo de seguida”,
sempre com Morricone presente. “Sugeri que gravássemos ao mesmo tempo com a orquestra
mas ele não quis, preferiu gravar a orquestra primeiro. Ouvi as orquestrações
cerca de oito dias antes de ir para lá, onde acrescentei depois a voz. Um dos
temas, ‘Someone you once knew’, tinha um andamento muito fixo e expliquei-lhe
isso assim que cheguei ao estúdio, exemplificando. Ele percebeu de imediato e
optou por, nessa vez, gravar mesmo em tempo real com a orquestra. Deu-me total
liberdade, mas adorava que tivesse sido mais exigente comigo (risos) porque o
que acontecia, na maioria das vezes, era eu fazer dois, três ‘takes’ e ele
comentar ‘va bene, bravo!’. Eu pedia para repetir, às vezes repetia demais,
talvez por insegurança, noutras por uma certa dificuldade em adaptar-me às
mudanças de linguagem”.
Agora que
“Focus” aí está para ser lançado em todo o mundo, incluindo no formato SACD
(Super Áudio CD), o que acontece pela primeira vez com um artista português,
Dulce Pontes não tem dúvidas em reconhecer que se trata de um momento único da
sua carreira e que poderá ser o início de um reportório à parte, “para cantar
coisas de outras pessoas”.
“Focus” tem
apresentações marcadas para Roma, no mês que vem, e para o Royal Albert Hall,
em Londres. Por cá, “haja luz!”: “Adorava fazer o espetáculo antes do Natal,
até porque o Ennio Morricone nunca esteve em Portugal”.
Para já, Dulce
Pontes não se cansa de saborear o momento. “Tive que me beliscar, não
acreditava que estava a cantar ‘A Missão’!”. Nem de rebobinar na sua cabeça um
filme de que ainda não assimilou sequer “os créditos”. “Talvez por defesa. Não
gosto de criar expectativas em relação a uma coisa, como fiz no passado, e
depois desiludir-me. Tenho medo disso. Embora sinta que este foi um passo muito
importante, talvez mesmo o mais importante, e que representa a possibilidade de
crescimento e de internacionalização, há coisas neste disco que talvez gostasse
de repetir, tenho sempre essa sensação. Houve momentos em que fui ainda mais
exigente que o maestro, talvez estupidamente exigente (risos)”. Porque a música
de Morricone “não se pode interpretar nem só com o coração nem só com a cabeça,
tem que haver um equilíbrio delicadíssimo. Tens aqui um par de asas e agora
põe-te a voar. De repente abre-se diante de ti um precipício enorme mas sabes o
prazer que podes ter a voar”.
forte e feio
Pegando nas palavras da própria Dulce Pontes, quando se refere à
necessidade de equilíbrio entre o coração e a cabeça na interpretação da música
de Morricone, somos tentados a considerar que é, por aí, que “Focus” não cumpre
por inteiro as expectativas que a colaboração entre ambos criara à partida. Bem
entendido, a majestosidade dos novos arranjos criados por Morricone para
“Cinema paradiso”, “A rose among thorns” (de “A Missão”) ou “Your love” (de
“Era uma Vez no Oeste”) impõem de imediato o selo típico do mestre. Para Dulce
ficou reservada a responsabilidade de lhes conferir o tal cunho “ibérico”
pretendido pelo compositor. Acontece que a cantora portuguesa se terá deixado
levar em demasia pelo coração e menos pela cabeça, ao não conseguir resistir a
levantar a voz acima daquele nível no qual essa noção de “equilíbrio” deixa de
fazer sentido. Cantar “ibérico” não é subir perdidamente aos píncaros da
expressividade decibélica. Que Dulce Pontes é dona de um potente instrumento vocal,
é do conhecimento geral; mas não havia necessidade de nos atirar isso à cara.
Mesmo porque em faixas como “No ano que vem” – fortíssimo ímpeto digno da
ópera-rock “Jesus Cristo Superstar” –, “Nosso mar”, no seu aceitável
brasileirismo (enquanto a voz não sobe de tom…), “Antiga palavra” e “I
girasoli” (o mais arrojado dos arranjos), se torna evidente que o seu leque de registos
se estende bastante para além do mero histrionismo. Entre as sensuais entoações
árabes dos primeiros segundos de “The ballad of Sacco e Vanzetti” ou o fado com
dedicatória a Amália, “Amália por amor”, fica a frustração de que “Focus” poderia
ter enveredado por criar outro tipo de dialética entre a grandiosidade
orquestral e a plasticidade da voz. Assim, soa a exibicionismo e a “world” em
cinemascope de pacotilha. Mas não terá sido isso, afinal, que juntou Ennio e
Dulce e dá brilho à música quer de um quer de outro?
ENNIO MORRICONE & DULCE PONTES
Focus
Ed. e distri. Universal
4|10
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