DESTAQUE
SÁBADO,
11 OUT 2003
CONCERTOS NO
COLISEU
Não são só os
Rolling Stones que estão a celebrar 40 anos de carreira. Carlos do Carmo
também. Um espetáculo de gala, hoje e amanhã, no Coliseu dos Recreios, um disco
de raridades, um DVD e uma exposição juntam-se para comemorar a efeméride. O
“charme” do fadista de Lisboa é imperecível. E as suas histórias também
Sente-se
a adrenalina a fervilhar, o fado a engalanar-se, a expectativa a crescer, à
medida que o grande momento se aproxima. Esta noite, no Coliseu dos Recreios,
em Lisboa, Carlos do Carmo, o mais importante fadista vivo, sopra as velas de
40 anos de uma carreira não isenta de percalços mas, apesar de tudo, feliz. A
lotação, esgotada, obrigou à realização de um espetáculo extra, marcado para amanhã.
Mais uma prova de que o público o continua a acarinhar. “Sim, tem-me tratado
bem.”
O autor de “Um Homem na Cidade”, “Um
Homem no País” e o mais recente “Nove Fados e Uma Canção de Amor” é um
sobrevivente e um inovador. Do fado e de uma Lisboa que, provavelmente, apenas
já só existe no queixume das guitarras. Esta noite não será uma prova dos nove
mas a prova real de que, sem ele, como sem Amália, o fado teria sido outro.
É também uma prova de coragem. Depois
de uma primeira parte em que será acompanhado por Ricardo Rocha e José Manuel
Neto (guitarra portuguesa), José Maria Nóbrega e Carlos Manuel Proença
(guitarra) e Fernando Araújo (baixo), Carlos do Carmo terá como convidados, na
segunda parte, para fazer uma série de duetos, Carlos Bica (em “Eu, nome
Lisboa”), Júlio Pereira (“O homem das castanhas”), Ricardo Dias, Ricardo Rocha
e Walter Hidalgo. A orquestra Sinfonieta de Lisboa interpretará arranjos
especialmente escritos para a ocasião pelo pianista Bernardo Sassetti, também presente
como solista.
Quarta-feira, local do ensaio: a
Sinfonieta de Lisboa ensaia com o fadista e o pianista um novo figurino para o
fado que se adivinha grandioso. Afinam-se os instrumentos, o ambiente aquece.
Após algumas conversas
de
descontração, o maestro Vasco Pearce de Azevedo manda a orquestra “tutti” tocar
a “Canoa do Tejo”, de Frederico de Brito. A seguir, um naipe instrumental de
cada vez. Primeiro as cordas. Agora os sopros. A orquestra, de 40 elementos, é
composta na sua maioria por jovens, a maior parte mulheres. Há quem levante dúvidas
e dê sugestões. No compasso tal, “é um lá natural ou um bemol?”. “Esta frase
não ficaria melhor assim?” O maestro mostra-se satisfeito mas impõe correções.
“Dois compassos, no novo arranjo, não são para ser tocados, saltem por cima!”
“É para correr para a frente e não para trás.” “Está bem assim!”
Bernardo Sassetti levanta-se e
explica a partitura. “Sim, aqui é mesmo um crescendo.” “Não, esse bemol aplica-se
somente ao compasso inicial.”
Sentado a seu lado, Carlos do Carmo
espera pacientemente a altura para entrar. Quando o faz, a voz, sem amplificação,
mal se consegue ouvir entre o nível sonoro da orquestra. Mas Sassetti está
atento e sorri, mesmo quando um ou outro pormenor não corre ainda na perfeição.
“Faltam as guitarras…”, justifica-se o fadista. E recomeça-se de novo, ainda
com mais entusiasmo. No final tudo bate certo e nasce uma nova “Canoa do Tejo”,
pronta a navegar quando daqui a poucas horas as luzes do palco se acenderem.
“Cada espetáculo é
uma questão de vida ou de morte”
ENTREVISTA COM
CARLOS DO CARMO
Puseram-no, por
engano, diante de uma plateia de “heavy metal” mas ama o seu público ao ponto
de ter cantado apenas para um casal, na sua antiga casa de fados. Carlos do
Carmo, o bairrista e o homem do mundo, entrou no fado pela porta grande e é por
ela que há-de sair.
Um
CD de compilação de fados gravados nos anos 70 e 80 dispersos por singles e
EPs, intitulado “No Tempo do Vinil” (ver crítica no “Y” de ontem). Um DVD, realizado
por Rui Pinto de Almeida, ainda sem data de saída, reunindo excertos do espetáculo
desta noite, no Coliseu, e de outro em Frankfurt, mais a biografia e
discografia escritas e uma entrevista com o artista. Uma exposição, “Um Homem
no Mundo”, na Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa, em Lisboa, de 15 deste mês
a 15 de Fevereiro. Um outro disco, de homenagem ao fadista, com edição prevista
para 2004. Tudo com o objetivo de celebrar uma carreira longa de 40 anos.
Carlos do Carmo garante que a retirada
está para breve, como confessa nesta entrevista. Talvez. O seu fado, porém,
ficará para sempre.
PÚBLICO – Escolheu como local desta
celebração o Coliseu dos Recreios por algum motivo especial?
CARLOS DO CARMO – Já lá cantei
muitas vezes. Voltei a escolhê-lo por uma razão afetiva. 40 anos é muito ano e,
embora não esteja seguro de coisa nenhuma, posso dizer, com 99,9 por cento de
probabilidade, que não vou celebrar os 50 anos. Este concerto vai ser mesmo um marco.
Já não tenho mãe nem pai e esta é a sala onde os meus pais me levavam quando
era criança, para ver o circo. Depois, quem o remodelou, para o Lisboa 94, foi
um amigo meu, o arquiteto Maurício de Vasconcelos. E o grande operário desta
casa foi das pessoas mais curiosas que conheci no mundo do espetáculo, daquelas
que só os artistas conhecem, o mestre Constantino, o homem que manteve o
Coliseu durante anos e anos.
No
concerto vai fazer um apanhado de carreira? Seria tarefa difícil…
Nem eu tenho essa pretensão. Centra-se
tudo na gratidão aos músicos e aos autores. Os convidados são todos músicos.
Será
curioso verificar se mantém o mesmo estado de espírito, mais solto, que tem marcado
as suas conversas com o público, em ocasiões recentes… Foi-se, em definitivo, o
“politicamente correto”?
Entendo… Com a idade ganhei outro
respeito por mim próprio a par de um grande respeito pelas pessoas. Prefiro que
me conheçam tal qual sou. Talvez essa fase do “menino certinho” tenha
desaparecido. Mas é algo que passa sempre por um afeto acumulado, embora desta
vez não tenha muito a intenção de falar, vou deixar antes falar os meus
autores. Mas é verdade que as pessoas me tratam muito bem.
Todas?
Não pretendo consensos nem unanimidade,
contra os quais sou completamente contra. Quando ouço dizer, “fulano é uma
pessoa impecável”, tenho certas suspeitas. Faz-se amigos como se faz inimigos,
faz parte do processo. Mas as pessoas têm-me dado muito. Agora, porém, cada
espetáculo é uma questão de vida ou de morte.
Como
assim?
Por instruções do meu médico, não posso
fazer mais do que 20 espetáculos por ano, no máximo. Está a falar com um homem que
fazia 100, 150, calmamente, e que continua a ter pedidos para o fazer. Mas já
não tenho saúde para isso. Então este ato isolado de cantar, cada vez mais
isolado, torna-se um grande desafio. Faço-o com grande intensidade. E há outra
coisa: esta acumulação de ligação com as pessoas, num processo de 40 anos,
permite fazer como que gráficos da euforia e da depressão das pessoas.
Neste momento estamos numa fase de
depressão coletiva. E eu estou a tentar fazer uma festa num período de
depressão. Não é fazer a festa dentro da festa, como já aconteceu nos períodos
de euforia, neste caso é um bocado contra a corrente, no sentido do bem-estar
das pessoas e em relação ao que as cerca, a sua intranquilidade, as injustiças,
mesmo a questão económica.
Sei que a sala está quase esgotada mas
estou convencido que podia esgotar duas ou três se as pessoas que gostam de me ouvir
tivessem meios para isso [na altura em que esta entrevista foi feita, não se
encarava ainda a hipótese de um segundo espetáculo, o que acabou por acontecer].
Sei de muita gente que me pergunta se vai passar na televisão, por não poder
ir. Isso dói-me. Neste momento estou em paz comigo. Sou um tipo com defeitos e
virtudes…
Continua
a sentir a necessidade, ou vontade, de experimentar novas fórmulas para o fado?
Claro. É um desafio tocar com os
jovens músicos, como o Ricardo Rocha ou o Carlos Manuel. É a minha necessidade
de ouvirmos, de trocarmos ideias. É bom para ambas as partes. Eles gostam de
aprender alguma coisa comigo mas também sabem que gosto de aprender com eles. É
saudável e provoca em mim uma necessidade de proceder a ruturas.
Hoje, como calcula, já não tenho a
mínima preocupação com os puristas. Há uns anos ainda me incomodava, quando eles
me chamavam a atenção de que aquilo não era fado, não era nada. Desde “Um Homem
na Cidade” perdi o respeito pelos puristas. Na altura agrediram-me tanto...
Hoje já dizem que é um dos grandes discos da história do fado, o melhor dos
últimos 30 anos… Mas conheci puristas de outro timbre, que ouviam a minha mãe
[Lucília do Carmo] e e foi com eles que também aprendi a ouvir fado. Mas eram pessoas
com um radicalismo culto. Quando me começam a dizer “assim já não é fado”, só por
retórica, apetece-me logo cantar outra.
Hoje fala-se muito na distinção entre
fadistas e cantores de fado. Faz sentido para si?
Não obrigatoriamente. São ciclos.
Olhe… perdoai-lhes Senhor! (risos)
O
disco agora editado, “No Tempo do Vinil”, é um sinal de nostalgia?
Peguei em fados que apenas existiam
em pequenos discos em vinil, nunca tinham saído sequer em LP. Chegou a altura
de fazer uma arrumação da minha discografia. Pertencia ao meu grupo de sonhos,
gravar no selo Philips. Em 1968 entrei na casa que é hoje a minha gravadora, embora
o nome tenha mudado para Phonogram, Polygram, hoje Universal… É a casa onde considero
que tenho a base da minha discografia. É aqui que estou a arrumá-la, enquanto estou
vivo.
Essa
arrumação é assim tão importante para si?
Penso não cantar muito mais tempo…
Tem que haver um equilíbrio… Agora que me sinto feliz por estarem a chegar
pessoas mais novas, também gostaria de sair pela mesma porta por onde entrei;
não gostava que me empurrassem. Não sejamos hipócritas. Nunca ninguém neste
país foi tão homenageado como a Amália. É consensual. Mas as pessoas também se
lembram de que nos últimos anos iam assistir aos espetáculos dela e vinham de
lá profundamente tristes, dececionadas e assustadas. E comentavam. Confesso que
não gostava de que isso me acontecesse. Prefiro que guardem de mim uma imagem de
força. Como não sei quando estas coisas acontecem… Mas há avisos. Ainda não
senti nenhum, mas prefiro antecipar. Até porque também tenho uma vida familiar.
E posso ser útil, ajudar a nova geração a produzir discos, espetáculos, fazer
colóquios nas universidades, em escolas, para falarmos de fado.
Não
vai sentir falta das palmas?
Não… De há uns anos a esta parte, do
que gosto mais é dos silêncios. Quando o público está em silêncio é fantástico.
Um exemplo: num concerto em Sobral de Monte Agraço, de repente tive a sensação
de estar fechado numa casa de fados, a cantar para umas 50 pessoas…
Recentemente, quando me deram o
Prémio José Afonso, na Amadora, foi outra beleza de público. O silêncio. O
silêncio do respeito que devemos uns aos outros.
Tem
saudades de cantar nas casas de fado?
Já tenho a minha dose! Foram 20
anos, todas as noites! Mas já cantei tanto para 50 mil pessoas, na Festa do
Avante! como só para duas. Aconteceu há muitos anos, na minha casa de fados.
Eram para aí duas da manhã, estávamos sem ninguém, íamos fechar e entra um
casal, agitadíssimo, tinham-se atrasado, vindos de Trás-os-Montes (imagine o
que era uma viagem de carro nessa altura…). Se não fosse naquela noite não
tinham qualquer outra hipótese. Foram extremamente convincentes, não havia
rábula nenhuma, e cantei só para eles com todo o prazer.
Já
foi vaiado?
Já. Tenho duas vaias. Uma no 2º
concerto de Vilar de Mouros, porque se enganaram na programação e puseram-me a cantar
na noite do “heavy metal” (risos). Noutra, não estava sequer a cantar, foi uma
coisa nitidamente política. Estava a assistir a um espetáculo do Bécaud (a
Amália também), de quem fui amigo, aqui no Coliseu. Ele faz-me uma chamada e
parte do público desata a vaiar. O Bécaud ficou muito ofendido com os
portugueses. Fui dar-lhe um abraço ao camarim e ouço-lhe este comentário: “Não
me digas que os portugueses ainda não beberam chá!?”
Por
falar em músicos francófonos, “No Tempo do Vinil” faz pensar em Jacques Brel…
Você está-me a lisonjear. Isso honra-me.
Mas será porque essa foi uma época em que ouvia muito Brel. Haverá uma
assimilação de intenção. O Brel não brincava com as palavras. Aliás, o Brel não
brincava com a vida.
Ao
ouvir este disco fica-se a pensar que bem poderia cantar um disco de standards
de jazz. Já pensou nisso?
Mas eu canto! Canto imensas coisas
do Sinatra. Aconteceu-me uma vez uma história engraçada. No Porto cantei a
meias com o meu filho Gil [Gil do Carmo] o “I’ve got you under my skin”. Quando
acabei, o Rui Veloso, que também participava no espetáculo, entra-me pelo
camarim aos gritos: “É pá, tu tens que gravar um disco de ‘standards’ e eu
quero produzir esse disco!” Mas o que é que se passara, que o tinha tocado
assim tanto? “Tu cantas isto de uma forma especialíssima…” Mas é natural, respondi-lhe,
sou um fadista!
Ainda tem sonhos?
Tenho tanta coisa maluca na minha
cabeça! Quando gravei o “Margens” (1996), com música do José Luís Tinoco – o
disco foi muito mal-amado, a rádio não tocou, coisas que acontecem, embora
tenha atingido, nas vendas, os mínimos olímpicos –, veio ter comigo uma amiga minha,
judia, que sobreviveu ao Holocausto e nessa altura se encontrava em Lisboa, que
resolveu fazer uma versão italiana dos fados desse álbum. Não uma tradução
literal mas uma adaptação ao italiano. Aquilo está uma coisa tão linda, tão
linda, que um dia destes passa-me uma coisa pela cabeça e sou capaz de cantar
um fado em italiano!
“Fui um menino
burguês”
Carlos
do Carmo fala da sua infância e da nova geração de fadistas
Sente-se um homem solitário, como um
dos últimos representantes de uma geração de charneira?
Desapareceram figuras, não muito
mediáticas, é verdade, como o Fernando Maurício, o Francisco Martinho, o
António Rocha, o Zel, mas ainda cantam o João Braga, o Rodrigo… Somos uma
geração que fez a ponte entre a chamada geração de ouro, os nossos mestres,
ainda aproveitámos a tradição oral, hoje tentamos passar o testemunho aos mais novos,
num tempo dominado pela tecnologia e a mediatização. Como o fenómeno Mariza que,
no curto espaço de dois anos, fez uma carreira internacional. No meu tempo era impensável.
Quer
dizer que se fazem hoje fadistas à pressão?
Não, embora o marketing, claro… mas
não quer dizer que as pessoas não cantem bem.
Cantar
bem, chega, para se ser fadista?
O resto vai-se acumulando… A Mariza
vem de uma família que vive na Mouraria e por isso desfruta daquela vida de bairro,
o que é de uma enorme importância. Torna as coisas genuínas.
E
no seu caso?
Embora tenha sido, por proteção dos
meus pais, um menino burguês, completamente protegido: escola, liceu, colégio
na Suíça… Mas vivi, até me casar, no bairro da Bica. E trabalhei até aos 40
anos no Bairro Alto. Essa vida de bairro, taco a taco com as pessoas, é
fundamental. Hoje, quando passeio a pé pelo meu bairro, as pessoas ainda me
tratam por “menino”. Um encanto. A vida de bairro ajuda a perceber a pulsação
de Lisboa.
Encontra
uma explicação para o facto de aparecerem hoje mais mulheres do que homens a
cantar o fado?
São ciclos. Há momentos em que
aparecem sobretudo homens e outros em que praticamente surgem só mulheres.
Não
será também porque a imagem da fadista fotogénica ajuda a vender?
Claro que pode ter importância. Mas
será que uma Piaf existiria hoje com aquela imagem? Era uma mulher tão feia...!
Mas quando cantava… Percebia-se a beleza que emanava dela.
Que
relação mantém com a nova geração?
Há apenas cinco anos, nas entrevistas,
perguntavam-me se o fado não ia acabar. Tenho os recortes. Costumava responder que
não desaparecerá enquanto aparecerem cultores, quem toque, quem cante, quem escreva.
Foi preciso esperar algum tempo, de
vez em quando há estas travessias do deserto. Mas eles aí estão! Também aqui
encontro uma justificação para o que andei cá a fazer. E continuo a fazer, uma
vez que não fui demitido.
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