26/11/2019

Dois pianos a contar de cima [Mário Laginha e Bernardo Sassetti]


JAZZ
CAPA
PÚBLICO 8 NOVEMBRO 2003

Mário Laginha e Bernardo Sassetti é a estreia discográfica nascida da colaboração e das afinidades entre estes dois pianistas. Um encontro de sensibilidades complementares onde a improvisação tem um papel determinante. O jazz deles. Tocado com a naturalidade, mas também com o espírito de viajante comum a ambos. A apresentação oficial está marcada para o dia 13 deste mês na nova Fnac, em Gaia


Dois pianos a contar de cima

Freddy Kruger contra Jason Voorhees. Mário Laginha “contra” Bernardo Sassetti. Dois monstrous sagrados do jazz feito em Portugal combatem lado a lado em “Mário Laginha e Bernardo Sassetti”, disco de piano, dois pianos, apostados em fazer sobressair de duas sensibilidades musicais necessariamente distintas uma terceira pessoa nascida de uma cumplicidade que tem vindo a fortalecer-se ao longo de várias etapas em espetáculos ao vivo, como o de Junho do ano passado no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Sassetti e Laginha chegaram ao jazz por vias diferentes e nem sempre permanecem por lá. Mas o gusto pela improvisação e pelo diálogo é notório. Laginha, cuja agenda com a cantora Maria João, seja na gravação de álbuns como “Danças”, “Chorinho Feliz”, “Lobos, Raposas e Coiotes”, “Mumadji”, “Cor” e “Undercovers”, seja em concertos, tem deixado pouco espaço para outras aventuras, já dialogara com outro pianista, Pedro Burmester, em “Duetos” (1994). Sassetti, por seu lado, gravou “Mundos” e um “Nocturno” que é um dos grandes discos de jazz nacional lançados o ano passado. Recentemente lavrou a sua assinatura nos arranjos orquestrais para o concerto de celebração dos 40 anos de carreira de Carlos do Carmo. Viajantes por natureza, dos lugares e dos sons, combinam semelhanças e diferenças. Laginha é o extrovertido capaz de juntar no espírito Bach, Keith Jarrett e os ritmos africanos. Sassetti, o introvertido dobrado sobre os silêncios, enredado nas sombras e nas luzes que Bill Evans legou ao jazz, mas também o impressionista dos pontos e manchas que adquirem sentido à distância mais íntima. No disco, porém, trocam por vezes de papel e nem sempre o que parece é. Da alma até à ponta dos dedos e destes até ao marfim das teclas vai um instante de eternidade. Os próprios explicam como se percorrem os caminhos.

“Mário Laginha e Bernardo Sassetti” é o prolongamento lógico dos vossos espetáculos ao vivo?
            Bernardo Sassetti — Tem menos a ver com os concertos do que com o repertório, apesar de haver temas antigos que aparecem em novas versões, como “A menina e o piano” ou “Señor Cascara”.
            Mário Laginha — No ano passado começámos a tocar juntos mais regularmente e a sentir necessidade de arranjar mais repertório. O que tínhamos dava um bocado à conta... para um concerto relativamente curto.
Grande parte dos temas são improvisações, ou “Imprevistos”, como lhes chamaram…
            M. L. — Foram improvisados no estúdio. E temas como “Diabolique”, “Fisicamente” e “A segunda gaveta a contar de cima” são temas novos, mais longos.
Tocam sempre os dois em simultâneo, ou também há solos?
            B. S. — Há momentos a solo...
            M. L. — ...Tudo sem truques nenhuns.
Aos primeiros “takes” ou foram necessárias repetições?
            B. S. — Foi uma sessão de estúdio extraordinária. Em geral saiu tudo ao primeiro “take”, fi cou mais fresco. Às vezes nota-se, quando se repete de mais...
Algum motivo especial para o título se ficar pelos vossos nomes?
            B. S. — Foi propositado. Mas pensámos muito nisso. Como disco de apresentação resolvemos não recorrer a um título.
            M. L. — Embora a ideia não nos fosse desagradável. Mas não queríamos pegar num dos temas e usá-lo como título. Quando isto acontece, as pessoas pensam logo: “Olha este é ‘O tema’!” Para nós conta apenas o todo.
Este é um disco de jazz. Mas a conceção que cada um de vocês tem do jazz é diferente. Tiveram que proceder a adaptações?
            B. S. — Eu comecei na música clássica, mas a partir do momento em que me apaixonei pelo jazz foi de rompante. Deixei totalmente de parte a clássica. Mas essa é uma questão pertinente…
            M. L. — Não houve esforço nenhum. Se tivesse havido, perdia um bocado a graça. Nenhum de nós está a tentar aproximar-se linguisticamente do outro. Agora... ambos temos intuição. Quando se está a tocar, é preciso saber ouvir o outro.
            B. S. — Ouvir o outro com ouvidos diferentes. Não digo que noutras formações não tenhamos a mesma atenção, mas aqui estamos a falar de dois pianos.
            M. L. — O que faz com que não haja nenhum tema para encher. Há ótimos discos, por músicos fabulosos, que improvisam muito bem, mas...
O que é que vos separa e vos aproxima musicalmente?
            M. L. — Ambos gostamos imenso de improvisar, ambos gostamos imenso de escrever, ambos gostamos imenso de arranjar.
            B. S. — O Mário tem uma característica extraordinária que encontro em muito poucos pianistas — uma capacidade polifónica e de criar melodias e contrapontos com as duas mãos em tempo real. Aprendo sempre com ele. Eu tenho uma conceção diferente.
            M. L. — Ele, às vezes, é desconcertante, porque tem um lado que identifico como jazz, de alguém que conhece ao mais alto nível a história do jazz, mas que depois abriu um caminho que falta a muitos pianistas, que é o lirismo, a par da capacidade melódica.
Um é extrovertido e o outro introspetivo?
            B. S. — É muito possível. Embora uma das minhas composições neste disco, o “Señor Cáscaro” seja a atirar para a frente. Mas é apenas um caso. O Mário é daqueles pianistas que toca com garra. Eu tenho talvez muita consciência, um cuidado extremo com o toque, o “touch”. Há algumas gravações minhas, antigas, em que noto alguma estridência e isso teve muita importância, fez-me mudar, neste momento estou mais lírico, presto atenção ao som de cada coisa que faço.
            M. L. — Olho para a lista de temas deste álbum e noto uma coisa engraçada. Há um lado de mim menos representado. Sempre fiz temas, não digo que para fazer chorar as pedras da calçada, mas muito líricos, mas aqui, realmente, não.
Para o Mário, este álbum representou também a oportunidade de mostrar outro lado de uma música que nos últimos tempos tem andado quase sempre ao lado da voz de Maria João?
            M. L. — De facto, durante uns anos, estive de tal forma enredado nesse trabalho que, embora não tenha morto outros projetos, não lhes dava continuidade. De há uns tempos para cá decidi que isso tinha que acabar. Há outras coisas que não quero deixar de fazer.
No caso do Bernardo, aconteceu o oposto. O trabalho que fez recentemente para o Carlos do Carmo é uma exceção.
            B. S. — Sim. Foi um desafio que aceitei e que me deu imenso gozo — sobretudo por ele me ter dado carta branca, de me dizer: “Eh pá, faz o que quiseres!” Claro que não ia começar a fazer música contemporânea, estamos a falar de fado e de um espetáculo no Coliseu, mas, harmonicamente, muitas coisas foram mudadas. Depois esse outro gozo de poder fazer “sacanices”, no bom sentido, pôr umas coisas marotas lá pelo meio... O Hermeto Pascoal disse uma vez uma coisa muito engraçada, num concerto em Guimarães. Começou a tocar o “Coimbra” e, às tantas, vira-se para o público e diz: “Esta melodia é tão interessante, tão bonita, mas vocês aqui em Portugal... Harmonicamente isto é muito fraquinho, vocês deviam puxar a música para a frente.” E começa a fazer umas harmonias extraordinárias.
Da junção das vossas músicas nasce uma Terceira entidade?
            M. L. — Sim. Existem poucos discos apenas com dois pianos, só me consigo lembrar do Herbie Hancock com o Chick Corea. O que fizemos tem uma identidade própria, é o primeiro bom sinal de que uma música pode ter, mesmo sem ser feita para parecer novidade. A originalidade é uma coisa muito relativa e subjetiva. As pessoas têm as suas influências, a tonalidade, a partir do “free”, também já está mais do que explorada. Nós tocámos e gravámos despreocupadamente, mas essa identidade existe.
Essa despreocupação implicou ausência de tensão? Um menor esforço? Para dois pianistas que encaixam tão naturalmente, a facilidade pode não ser boa conselheira.
            M. L. — Essa naturalidade tem mais a ver com a forma como encarámos o projeto. Há temas que deram um trabalho imenso a montar, difíceis tecnicamente, como “Fuga para dois pianos”, “Diabolique”, “A segunda gaveta a contar de cima” e “Señor Cáscara”.
            B. S. — Quando estamos a ler uma partitura, o problema pode estar em que, ao princípio, cada um de nós se preocupa mais com a sua própria parte e deixa um bocadinho de ouvir a outra. Estamos preocupados em tocar aquilo bem, metidos um bocadinho para dentro. A partir do momento, porém, em que começamos a perceber o que são as duas vozes, quais as dinâmicas, o que cada um tem ou não que fazer, então aí é que começa o trabalho a sério. De resto, é trabalho de casa, a dois, um trabalho que demora muito tempo. “O sonho dos outros”, por exemplo, é bastante mais simples de montar. Ou a “Despedida”. Mas na “Segunda gaveta...” tivemos que perceber muito bem o que se estava ali a passar!
            M. L. — Até ficar como está no disco parece não ter havido conflito. Ambos detestamos sentir que o ritmo se perdeu, um ritmo que, por exemplo, em África, acontece naturalmente, mas que no Ocidente, uma pessoa está a tocar, e até está a soar bem e, de repente, o “groove” ardeu. Odeio isso. Quando o “groove”, o “swing”, se vai embora. Há neste disco imensos temas que swingam, mas até swingarem, até se chegar lá, não foi uma coisa imediata, encaixar o sentido e as acentuações e depois fazer isso já intuitivamente.
No álbum alternam composições mais longas com miniaturas de pouco mais de um minuto. Interlúdios?
            B. S. — O único efetivamente pensado como tal foi “Despedida”. No meio de tanto improviso, decidimos fazer uma versão só com o tema.
            M. L. — Normalmente, durante as gravações, chegávamos ao fim do dia e fazíamos um improviso. Acabou por ser esse o espírito.
“Mário Laginha e Bernardo Sassetti” não é um disco difícil de se ouvir. Nunca pensaram em arriscar outro tipo de música, menos imediatamente apelativa  ou então qualquer tipo de “tara” musical, politicamente incorreta, do tipo “easy listening”?
            B. S. — Neste primeiro disco quisemos pegar em tudo o que tínhamos feito até agora. Não há grande diferença, em termos de espontaneidade, não há grandes diferenças em relação ao concerto.
            M. L. — Tenho horror ao “easy listening”, embora até goste de alguma “má música” (risos) e haja bons tipos a fazer isso, mas mais facilmente aprecio uma canção pop. O “easy listening” é uma música profundamente estúpida, em que se utilizam conhecimentos razoáveis, de tipos que até sabem tocar bem, para fazer algo completamente vazio. Irrita-me. Desejo inconfessável seria, como já pensei fazer, um disco comigo a tocar guitarra e a cantar, com a minha voz absolutamente horrível (risos). Não tenho voz nenhuma, mas afino! Outra coisa, não tão inconfessável, passa pela gravação de uma música mais difícil.
            B. S. — Eu tenho algumas coisas na manga, sobretudo bandas sonoras. É raro poder-se editar uma banda sonora em Portugal. É difícil as Pessoas imaginarem quão complicado isso é, em termos de produção, de entrega, de financiamento. Um disco que gostaria de fazer, embora fosse necessária muita coragem para o editar, era um de coisas trabalhadas dentro do piano, na caixa harmónica, nas cordas, na harpa. E sobretudo um disco com muito, muito silêncio. Uma coisa é certa, na rádio não passaria (risos).
            M. L. — Entre o primeiro e o segundo acorde punham publicidade (risos).
Tanto “Nocturno” como “Undercovers”, os vossos discos anteriores, venderam bem. Existe finalmente um mercado para discos de jazz feitos em Portugal? Ou são exceções?
            M. L. — Acho que haverá sempre mercado para os discos de jazz, mesmo numa sociedade com tendência para a estupidificação, como a nossa. Há sempre camadas que reagem. Isso sempre aconteceu e sempre acontecerá. De uma maneira geral, o problema está em que as pessoas não são estimuladas a ouvir coisas que desconhecem. Mas, quando se aposta mais, às vezes há surpresas e descobre-se que afinal até há pessoas que compram. É claro que não compram às centenas de milhares, mas compram uns milhares. Apesar de sermos um país pequeno, quanto mais discos se fizerem, melhor.
Mas então, por que razão gravaram este álbum em edição de autor e não através de uma editora? De onde veio o dinheiro para a gravação?
            M. L. — Não é um disco de autor por não ter havido editoras interessadas. Foi uma opção. Estou mais ligado à Universal e o Bernardo à Trem Azul...
            B. S. — Mas é importante não termos, como não temos, exclusividade.
            M. L. — No meu caso, a ligação tem mais a ver com os discos com a Maria João. Se o Bernardo viesse para a Universal, a Trem Azul era capaz de ficar um bocado melindrada. O oposto teria o mesmo efeito na Universal. Acabámos por pensar que a melhor maneira de ninguém ficar ofendido seria fazer um disco de autor. E até tivemos sorte, porque a Fnac quis exclusividade. Mas nem se trata de um disco caro...
O ambiente de estúdio foi determinante nas gravações?
            B. S. — Gravámos no estúdio do Mário Barreiros, em Canelas, no Porto, um estúdio cinco estrelas, mesmo a nível mundial.
            M. L. — Tudo em madeira, grande, com respiração...
            B. S. — O Mário já tinha gravado lá, o “Undercovers”, cujo som considero extraordinário, e o Mário Barreiros é um técnico sublime, além de um grande músico. Tem uma inteligência e uma rapidez de fazer as coisas estonteantes.
Têm expetativas elevadas em relação à aceitação deste álbum?
            M. L. — Gostaria que as pessoas ouvissem e gostassem, que acontecesse cumplicidade, comunhão. Adoro tocar ao vivo, não há nada melhor, sentir, quando entro no palco, que as pessoas já ouviram o disco e querem mesmo estar ali no concerto.
“Mário Laginha e Bernardo Sassetti” é um disco de jazz “mainstream”? O termo incomoda-os?
            B. S. — Não acho que seja... M. L. — O “mainstream” nãotem a ver com ser bastante tonal ou não, mas com o tipo de linguagem. E, nesse aspecto, não é. Mas é uma música comunicativa, que não se fecha sobre si mesma.
Como é que se evolui como músico de jazz em Portugal?
            B. S. — É muito importante os músicos saírem de cá. Ir apanhar ar lá fora. Vivi muitos anos em Londres, também estive algum tempo em Nova Iorque, e é realmente extraordinário. Realizam-se sessões descontraídas, à tarde, para as pessoas tocarem, só pelo gozo. Aqui é mais complicado... Chega-se a um ponto em que deixa de haver entusiasmo em relação ao meio. Os músicos novos que querem mesmo fazer esta música têm que sair daqui. Isto é muito pequeno. Uma província. Lisboa é uma cidade grande, mas, se formos a ver, tem características que me fazem pensar em fachada. Há muita fachada e pouco conteúdo. Isto empobrece o espírito. Existe a mania de dizer “nós temos”, “nós fizemos” o maior edifício, a maior sede de não sei quê, o maior oceanário, “porque nós os portugueses também podemos e conseguimos!”... É extremamente redutor.
            M. L. — São os mesmos que depois se vergam ao que vem de fora!
Ambos gostam de viajar. Que viagens, musicais e geográficas, mais os marcaram?
            B. S. — A música que me fez vibrar mais até hoje foi a do Brasil. Em Niterói, tanto os sons de batucada no meio da rua, durante uma manifestação popular, como, às duas da manhã, um grupo de velhinhos a tocarem forró, vestidos como se tivessem acabado de sair da cama. Quatro horas a tocar, das 2h às 6h. Sem parar! Há outra música que me fascina em particular: o flamenco. Tenho estado a tocar e a aprender com o grupo Cruce de Caminos, como o Perico Sambeat e o Gerardo Nunez. Atualmente tenho andado a ouvir música fúnebre para cordas, de Lutoslawski, pelo Kronos Quartet.
            M. L. — Também o Brasil. Depois, África, pela qual sinto um fascínio enorme. Às vezes procuro imitar ritmos que não são feitos em piano, mas em guitarra, numa kora ou num balafon. Isso dá-me ideias — por exemplo, há um tema no “Cor”, “Rafael ou a cor de Moçambique”, cujo balanço foi conseguido a partir da imitação de uns balafons, até transformer o ritmo numa coisa pianística.
Existe um jazz português, da mesma maneira que existe um jazz inglês, um jazz francês ou um jazz italiano?
            B. S. — Sim! Uma sonoridade específica. No Mário, por exemplo. Oiça-se várias das “Danças”. Também em temas do João Paulo, do Carlos Bica e do Carlos Barretto.
            M. L. — Mas não são elementos óbvios. O José Duarte dava como exemplo – do qual discordo completamente – o Chano Dominguez, ao pegar num “standard” qualquer e transformá-lo numa rumba. Eu isso acho que não. Agora misturar flamenco com outras coisas, como fazem os Cruce de Caminos, acho bem. Pegar em temas populares portugueses e adaptá-los... Se isso é jazz português, prefiro estar a milhas!


Obcecados pelo belo

MÁRIO LAGINHA E BERNARDO SASSETTI
Mário Laginha e Bernardo Sassetti
Ed. de autor, distri. Fnac
8 | 10

A música nasce em crescendo, escorre como água, em acordes que aos poucos se vão organizando, como a lição de piano da criança deslumbrada que descobre a origem dos sons, em “A menina e o piano”, ponto de partida do primeiro álbum de dois pianistas que procuram na música do outro o complement e uma resposta para as suas interrogações musicais. Escutam-se evidências. Nesta nova versão do tema compost originalmente para “Chorinho Feliz”, à semelhança dos outros compostos por Laginha (“Fuga para dois pianos” e “Despedida”, ambos do álbum “Hoje”, de 1994, e o inédito “Fisicamente”), o ritmo impõe-se como fio condutor, o “touch” é marcado, o “swing” quase “ragtime” na “Fuga”, gismontiano na “Despedida”, e “Fisicamente” um poderoso diálogo de “riffs”, sugestões de chorinho e harmonias em cascata. Já “A segunda gaveta a contar de cima”, escrita em primeiro lugar para a Orquestra de Jazz de Matosinhos, jarrettiana na essência, será o mais natural ponto de confluência entre os dois pianistas portugueses. Jogo quase telepático, de notas vivas e vívidas, “clusters” e expressividade a roçar a euforia. A métrica pode soar insistente, quase repetitiva, mas é também daí que as surpresas e as soluções brotam, a justifi car a explicação dada pelos seus intérpretes: “Temos ambos um fascínio por um lado obsessivo, em usar uma repetição lógica e explorá-la até à exaustão.” À pergunta “Onde é que isto nos vai levar”, respondem com a disciplina antidogmática dos espíritos nómadas: “Entramos numa tonalidade e às tantas começa a fundir-se numa linguagem mais impressionista e menos tonal.” Em Sassetti, pelo contrário, a intrincada rede de luzes, por vezes ofuscantes, do novo arranjo para “Señor Cáscara” (do álbum “Mundos”) é a excepção às filigranas impressionistas de “O sonho dos outros” (de “Nocturnos”), janela entreaberta para a matemática secreta de Satie, “Diabolique” (surpreendente pela violência dos contrastes) e um “Renascer” com a mesma tranquilidade de Brian Eno. A escrita de Billy Strayhorn em “take the A train” introduz o universo ellingtoniano na teia harmónica da dupla e acaba por ser nos três “Imprevistos” que os dois completam a fusão das respetivas linguagens pianísticas, pela improvisação. É também aqui que, ao esbaterem-se as diferenças, a música deixa diluir alguma da sua força “narrativa” para se revelar como geometria de um jardim zen, aspeto em que o “Imprevisto nº2”, minimal como um mantra de Terry Riley, se mostra exemplar.

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