26/11/2019

Rickie Lee Jones, just a perfect day


Y 7|NOVEMBRO|2003
roteiro|discos


rickie lee jones
 just a perfect day

RICKIE LEE JONES
Evening of my Best Day
V 2, distri. Edel
8|10

Há vozes às quais acenamos de longe. Vozes que cumprimentamos com um aperto de mão. Vozes que nos abraçam e nos beijam apaixonadamente. Vozes pelas quais nos apaixonamos. Umas fazem-nos sonhar. Outras fazem-nos sofrer. A querer-nos mal. A querer-nos bem.
            As piores vozes são as vozes que nos deixam indiferentes. A voz de Rickie Lee Jones, mais que não fosse, dá vontade de espirrar. Mas não em “The Evening of my Best Day”. Não, porque a respiração está mais solta e tudo parece fluir como o movimento da lua entre os eucaliptos, a envolver a silhueta de uma mulher que dança.
            A tarde do melhor dia dela tem tudo para ser uma ocasião inesquecível para nós. “Just a perfect day”, como diria Lou Reed… A autora de “Pop Pop”, o disco de jazz mais pop do mundo, e do fantasmagórico e experimental “Ghosty Head” (um dos nossos preferidos), regressou com um novo álbum só de originais, pondo fim a um interregno de seis anos. Está melhor da constipação. Ou são as canções que se pegam, nos contagiam, nos infetam com uma doença parecida com os sintomas da luxúria.
            “The Evening of my Best day” começa por deslumbrar pela riqueza e diversidade dos arranjos. Como palco de cada registo interior encontram-se paisagens pop, jazz, country, rhythm & blues, “americana”, gospel…Ecos de Joni Mitchell (“A second chance”) e certidões de apadrinhamento a Suzanne Vega. E, em “Bitchennostrophy”, o Brasil, cantado em francês, “Jane Birkin meets Astrud Gilbert” naquele areal que os Stereolab e os High Llamas tentam desesperadamente tornar num local quente.
            Órgãos “lounge”, vibrafones marinhos , flautas de pássaros, violinos de outras épocas vestidas de fraque, trombones de bigode, guitarras a escorrer sucos do espírito. E a tais grandes canções, em alguns casos enormes, como “Sailor song”, trágica como um naufrágio. Ou a “A tree on Allenford”, com a beleza intricada de um enigma oculto no nevoeiro da infância (a capa do disco mostra uma criança), desenhados nas margens por um acordeão e um clarinete baixo. Passam acusações a George W. Bush, em “Tell somebody (repeal the patriot act)” e melodias leves como “It takes you there”, de fazer inveja aos The Sea and Cake, e o “blues” carnívoro mas depois doce e torta de angústia de “Mink coat at the bus stop”, com uma das mais legíveis e fortes assinaturas vocais de todo o disco.
            “Evening of my Best day” faz-nos querer mais, levando-nos, a cada audição, a penetrar profundamente neste dia com a duração da eternidade mas que finalmente se apaga no crepúsculo até nada ficar senão a noite. Tal qual o tempo da infância. E da paixão. Iluminado por fora, escuro como um poço por dentro.
            Rickie Lee Jones não pretendeu mais nada senão partilhar connosco este seu mundo. Sem no-lo atirar à cara, antes com o calor e o toque sensual de uma carícia. E, ao contrário de outras “singer songwriters”, sem confundir simplicidade e sinceridade com penúria de meios e pose de pobrezinha sofredora. Mulher e esteta, oferece-nos sentimentos como se fossem iguarias. Entre a extensa lista de músicos convidados encontram-se Syd Straw, Rob Wasserman, Alejandro Acuna, Bill Frisell, Nels Cline, Grant Lee Philips e Ben Harper com os Innocent Criminals. Todos contribuem de maneira tão discreta como eficaz, acrescentando recortes de outras músicas a um fluxo inesgotável de ideias e emoções que conseguem soar ao mesmo tempo complexas e naturais. Saúde-se a saúde deste dia.

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