Y 7|NOVEMBRO|2003
roteiro|discos
rickie lee jones
just a perfect day
RICKIE LEE JONES
Evening of my Best Day
V 2, distri. Edel
8|10
Há
vozes às quais acenamos de longe. Vozes que cumprimentamos com um aperto de
mão. Vozes que nos abraçam e nos beijam apaixonadamente. Vozes pelas quais nos
apaixonamos. Umas fazem-nos sonhar. Outras fazem-nos sofrer. A querer-nos mal. A
querer-nos bem.
As piores vozes são as vozes que nos
deixam indiferentes. A voz de Rickie Lee Jones, mais que não fosse, dá vontade
de espirrar. Mas não em “The Evening of my Best Day”. Não, porque a respiração
está mais solta e tudo parece fluir como o movimento da lua entre os
eucaliptos, a envolver a silhueta de uma mulher que dança.
A tarde do melhor dia dela tem tudo
para ser uma ocasião inesquecível para nós. “Just a perfect day”, como diria
Lou Reed… A autora de “Pop Pop”, o disco de jazz mais pop do mundo, e do fantasmagórico
e experimental “Ghosty Head” (um dos nossos preferidos), regressou com um novo
álbum só de originais, pondo fim a um interregno de seis anos. Está melhor da
constipação. Ou são as canções que se pegam, nos contagiam, nos infetam com uma
doença parecida com os sintomas da luxúria.
“The Evening of my Best day” começa
por deslumbrar pela riqueza e diversidade dos arranjos. Como palco de cada
registo interior encontram-se paisagens pop, jazz, country, rhythm & blues,
“americana”, gospel…Ecos de Joni Mitchell (“A second chance”) e certidões de
apadrinhamento a Suzanne Vega. E, em “Bitchennostrophy”, o Brasil, cantado em
francês, “Jane Birkin meets Astrud Gilbert” naquele areal que os Stereolab e os
High Llamas tentam desesperadamente tornar num local quente.
Órgãos “lounge”, vibrafones marinhos
, flautas de pássaros, violinos de outras épocas vestidas de fraque, trombones
de bigode, guitarras a escorrer sucos do espírito. E a tais grandes canções, em
alguns casos enormes, como “Sailor song”, trágica como um naufrágio. Ou a “A
tree on Allenford”, com a beleza intricada de um enigma oculto no nevoeiro da
infância (a capa do disco mostra uma criança), desenhados nas margens por um
acordeão e um clarinete baixo. Passam acusações a George W. Bush, em “Tell somebody
(repeal the patriot act)” e melodias leves como “It takes you there”, de fazer
inveja aos The Sea and Cake, e o “blues” carnívoro mas depois doce e torta de
angústia de “Mink coat at the bus stop”, com uma das mais legíveis e fortes
assinaturas vocais de todo o disco.
“Evening of my Best day” faz-nos
querer mais, levando-nos, a cada audição, a penetrar profundamente neste dia
com a duração da eternidade mas que finalmente se apaga no crepúsculo até nada
ficar senão a noite. Tal qual o tempo da infância. E da paixão. Iluminado por
fora, escuro como um poço por dentro.
Rickie Lee Jones não pretendeu mais
nada senão partilhar connosco este seu mundo. Sem no-lo atirar à cara, antes
com o calor e o toque sensual de uma carícia. E, ao contrário de outras “singer
songwriters”, sem confundir simplicidade e sinceridade com penúria de meios e
pose de pobrezinha sofredora. Mulher e esteta, oferece-nos sentimentos como se
fossem iguarias. Entre a extensa lista de músicos convidados encontram-se Syd
Straw, Rob Wasserman, Alejandro Acuna, Bill Frisell, Nels Cline, Grant Lee Philips
e Ben Harper com os Innocent Criminals. Todos contribuem de maneira tão discreta
como eficaz, acrescentando recortes de outras músicas a um fluxo inesgotável de
ideias e emoções que conseguem soar ao mesmo tempo complexas e naturais.
Saúde-se a saúde deste dia.
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