CULTURA
TERÇA-FEIRA,
14 OUT 2003
Crítica
Música
Fado marítimo
Carlos
do Carmo
LISBOA Coliseu dos Recreios
13 Outubro
Sala cheia
Era para ter sido apenas
um. Foram dois. Podiam ter sido mais. Os espetáculos de celebração de 40 anos
de carreira de Carlos do Carmo, que sábado e domingo tiveram lugar no Coliseu
dos Recreios, em Lisboa. O público de Carlos do Carmo é Lisboa inteira. Mas não
só. Vieram pessoas de todos os pontos do país, mas também de Paris ou de Nova
Iorque, de propósito para acompanhar o fadista nesta data especial. E o homenageado
correspondeu dando, como de costume, tudo de si, numa entrega sem limites em
que o homem, a cidade e o fado se entrelaçam.
Domingo,
consumada a efeméride “oficial” do dia anterior, foi, como o próprio fadista
acentuou, “diferente”: “É esse o desafio”. Porque as pessoas eram outras e é
para elas que Carlos do Carmo canta, iríamos jurar que para cada uma em
particular, se tal fosse possível.
Ignorando
a idade e o cansaço, a voz continua, hoje como há 40 anos, límpida. Fazendo escorrer
a emoção sem a sufocar. Cantou-se o fado, por entre os silêncios de que o fadista
tanto gosta, e a euforia. “Cantou-se” e não “cantou” porque o público fez
questão de cantar “Os putos” e “Canoas do Tejo”, chamando a si as melodias.
Com
Ricardo Dias, o bandoneonista Walter Hidalgo (a misturar as águas do Tejo e do
rio de la Plata, Lisboa e Buenos Aires, o fado e o tango, em “Dois portos”), ou
com Júlio Pereira (num encontro a meio da sala, sob a luz de um holofote, na evocação
da vida anónima de “O vendedor de castanhas”), Carlos do Carmo disse a dois a
amizade e o respeito pelas várias músicas do mundo.
Mais
difícil, a exigir ginástica e concentração absolutas, foi o dueto com o
contrabaixista Carlos Bica, em “Teu nome Lisboa” (“mais tarde ou mais cedo,
vou-os pervertendo a todos, e trazendo-os para o fado”). Bica, porém, não se
deixou “perverter”, sem se afastar em demasia de um fraseado tipicamente jazzístico.
Mais do que acompanhar, espicaçou e propôs vias de diálogo em território
neutro.
O
momento de interregno em que foram exibidos, em projeção vídeo, depoimentos de
músicos e amigos (Vasco Graça Moura, Manuel Alegre, Moniz Pereira, Fernando Tordo,
Luís Represas, Ana Moura e a sua mulher Judite do Carmo) aos quais o fadista ia
respondendo, como se estivesse a falar com elas em pessoa, acentuou a
solenidade, mas também a cumplicidade do acontecimento.
Mas
foi quando a orquestra Sinfonieta de Lisboa, sob a direção de Vasco Pearce de Azevedo,
tocou os arranjos escritos por Bernardo Sassetti, alguns também pelo maestro,
para “Fado Ultramar”, “Fado maestro” ou “Um Homem na cidade”, que o fado se
transfigurou em mar universal. Entrou-se num oceano de estrelas, mil marés nas
ondas dos violinos e dos metais. Em contraponto, Sassetti, debruçado sobre o piano,
entregou ao fado as notas do impressionismo. Carlos do Carmo retribuiu, chamando-lhe
um “dos maiores talentos da música portuguesa”.
Por
fim, mas não o fim – “Tens que continuar!”, gritou alguém, emocionado, da Geral
–, a enganar o cansaço que duas horas ininterruptas de espetáculo inevitavelmente
provocam, Carlos do Carmo avançou de novo, desta vez sozinho, para o meio do
seu público, para cantar, sem amplificação, as lágrimas a bailarem-lhe no rosto,
“Viela”. As palavras e a voz a pairarem, mais nítidas do que nunca, sobre aquele
silêncio marítimo onde tudo aflui e se resolve. Como na Lisboa de Álvaro de
Campos, dos versos: “E a grande cidade agora cheia de sol/ E a hora real e nua
como um cais já sem navios/ E o giro lento do guindaste que, como um compasso
que gira/Traça um semicírculo de não sei que emoção/ No silêncio comovido da
minh’alma...”. O fado.
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