JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 15 NOVEMBRO 2003
O jazz criado hoje por
músicos portugueses é jazz de cá e de lá, jazz universal, a saltar para fora
das margens. Buscam-se caminhos, pontos de partida e de chegada. Descobrem-se
novas vozes.
Espaços
entre o jazz que se faz em Portugal
Nas excelentes notas explicativas que acompanham “The Space
Between”, assinadas por Bill Shoemaker, define-se este “espaço entre” como o
lugar que separa (e, consequentemente, liga…) o conhecido e o desconhecido,
onde “os sentidos ainda não se tornaram sensibilidade”, os “estímulos ainda
buscam um contexto” e “os ‘blues’ são uma cor, mais do que um estado emocional culturalmente
defi nido”. Espaço que num rompante se abre, como diz o título de abertura, entre
o “nothing” e a “new thing”. Para Rodrigo Amado (saxofones alto e barítono), Ken
Filiano (contrabaixo) e Carlos Zíngaro (violino) este espaço – o da
improvisação – estabelece ainda a ponte entre os discursos intrinsecamente jazzísticos
dos dois primeiros e as intervenções, mais conotadas com práticas da música contemporânea,
do violinista. Abstracta, recusando embora soluções aleatórias, a música sugere
ritmos e cadências com raízes explicitamente mergulhadas na tradição, por mais “out”
que queira deixar entender, como em “Off breaker”. Já “Horn, strings &
sound” não esconde o propósito de investigação da forma sonora pura, essa
quimera que consiste em procurar a impossível perfeição situada além da emoção.
De
certa forma complementar de “The Space Between”, a música de outro trio – João Paulo
Esteves da Silva (pianos, acordeão, percussão e voz), Paulo Curado (saxofones
alto e soprano, garrafa e voz) e Bruno Pedroso (bateria, percussão e voz) –
procura igualmente “lugares” ou um lugar de rutura com o jazz americano,
“perigosamente próximos dos mundos da fala”. Onde “The Space Between” é
geografia e materialização de ilusões, “As Sete Ilhas de Lisboa” demanda uma matriz
étnica, embora de igual modo confi nada à delimitação simbólica de uma Lisboa
“de sabedorias perdidas de árabes e judeus”, como se pode ler no interessante
texto de apresentação de João Paulo Esteves da Silva (J.P.E.S.). Entre o piano impressionista
(J.P.E.S. tem o cuidado de referir a utilização de dois instrumento, um novo e
um antigo) de “Este castelo de areia”, a mimética folk de “Bi fri nalmente”, as
explorações “free” de “Fumarada”, as onomatopeias rítmicas de “Barco à vista” e
as vocalizações “gestalt” de “Vamos lá pôr esta coisa a funcionar”, o jazz infiltra-se
e recua como a maré do Tejo. Existirá, afinal de contas, um jazz
intrinsecamente português? Fará parte da sua natureza afirmar de modo particular
o universal?
Mas
nem só da “nova coisa”, e das interrogações que esta suscita, vive o jazz que se
faz por cá. O jazz clássico está vivo. Que o diga o jovem trompetista e fliscornista
Hugo Alves, “aluno” atento de Lee Morgan, Clifford Brown e Woody Shaw, em
“Estranha Natureza”. Timbre quente, aconchegante, fraseado Redondo e
escorreito, o swing indispensável imperam nos dez originais escritos pelo próprio
e executados na Capela das Artes, Alcantanha, Silves, na companhia de Bruno
Santos (guitarra), Jorge Moniz (bateria) e Nuno Correia (contrabaixo). Jazz a pavimentar,
bem, o presente.
José
Peixoto, guitarrista dos Madredeus, prossegue o seu caminho em direção a uma música
onde a espiritualidade e os modos de improvisação da música árabe são a pedra de
toque. Em “Aceno” Peixoto convidou o guitarrista da ECM, Ralph Towner (mantendo
com ele amigável duelo de guitarras, em “Espaços”), Manuela Azevedo (vocalista
dos Clã), Filipa Pais, José Salgueiro, Mário Delgado, Mário Franco, Mário
Barreiros e Quine. Rabih Abou-Khalil é ponto de orientação. Filipa Pais poderá
ter aberto uma nova porta do seu mundo em “Perto do poente (a visita da lua)”,
vocalização astral com luz de moura ao luar como há muito vinha prometendo e
aqui em absolute cumpre. Jazz ambiental, jazz do Sul, jazz de intimismos, jazz de
fi ligranas, ou talvez tudo tendo a palavra “jazz” apenas a tracejado, o que,
mesmo assim, não lhe tira o encanto.
Duas
vozes femininas demandam o “Eldorado” do jazz sem rótulos. Paula Oliveira foge-lhe
mesmo por completo, em “Quase Então”, com João Paulo a dar-lhe cobertura no piano.
A voz de Paula Oliveira pode fazer quase tudo, quase fazendo esquecer a de
Maria João, em “Então”. Música tradicional portuguesa jazzada, pois então. Paula
“scata” (às vezes de forma tão sólida como redundante, num “Sonho na canção de
embalar”, em toada popular). Paula interioriza a melodia e os tons de alma.
Paula quer dizer tudo de uma vez, chegando ao ponto de se transmutar em voz e
canto de anciã numa incursão profunda no folclore, numa “Dona Iangra” que
obriga a parar para melhor se escutar. Paula tem muitas músicas ao seu dispor e
só lhe falta, caso assim o deseje, escolher uma delas para caminhar pelo seu
próprio pé. Porque voz tem de sobra. A fechar, o “standard” “Stella by
starlight” repõe o jazz no seu lugar e Paula Oliveira no lugar do jazz.
Já
Helena Caspurro (atual assistente no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade
de Aveiro e participante em projetos como “Bach2Cage”) vive a sua estreia
discográfica, “Mulher avestruz”, com o jazz a correr-lhe por dentro de maneira
distinta. Com ocasional sotaque e sensibilidade brasileiros. Mais “blues”, em
“L-O-V-E you!”. E um piano a dirigir-lhe os dedos para as paisagens de vistas
longas e largas do título-tema, onde Caspurro se revela compositora, arquiteta de
dizeres, sinais e ruídos que a colocam na mesma academia de cantos inóspitos de
Shelley Hirsch, Lauren Newton, Joan La Barbara ou Cathy Berberian.
RODRIGO AMADO,
CARLOS ZÍNGARO, KEN FILIANO
The Space Between
Clean Feed, distri.
Trem Azul
8 | 10
JOÃO PAULO, PAULO
CURADO, BRUNO PEDROSO
As Sete Ilhas de Lisboa
Clean Feed, distri.
Trem Azul
8 | 10
HUGO ALVES
Estranha Natureza
Ed. autor/Actus
7 | 10
JOSÉ PEIXOTO
Aceno
Ed. e distri. Zona
Música
7 | 10
PAULA OLIVEIRA
& JOÃO PAULO
Quase Então
Clean Feed, distri.
Trem Azul
7 | 10
HELENA CASPURRO
Mulher Avestruz
Ed. autor
7 | 10
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