CULTURA
NOV 2003
Crítica
Música
Voz
direita, fado curvo
MARIZA
LISBOA
Grande Auditório do Centro Cultural de Belém
10
de Novembro, 21h
Sala
cheia
Mariza triunfou em toda a
linha na segunda de duas noites no grande auditório do Centro Cultural de Belém
(CCB), em Lisboa, para uma sala à cunha que aplaudiu cada trejeito vocal e
corporal da artista (que nos próximos dias 14 e 15 atuará no Teatro Rivoli, no
Porto). O fado nem por isso.
O fado não se dança. Mariza dança, irrequieta, e tenta
moldar o fado à sua imagem e semelhança. Infelizmente para ela, o Fado, com
maiúscula, tem rosto de esfinge e o corpo hierático do destino. Na a máscara do
espetáculo.
No concerto de segunda-feira ficaram patentes as virtudes e
defeitos que caracterizam o canto desta jovem para quem o sucesso e a fama
chegaram com rapidez.
Mariza tem voz e tem presença. A primeira usa-a ao
desbarato. É uma voz que se ouve à distância, mas à qual falta, por enquanto,
controlo e contenção. Apesar dos contrastes, Mariza dificilmente resiste a projetar
a voz para regiões que a música, em certos casos, dispensaria, padecendo da
chamada “síndrome Dulce Pontes”. Foi o caso, flagrante, de “Primavera”, ou, já
no “encore”, de “Ó gente da minha terra”. Tanta goela aberta, rompendo a
direito até ao grito, teve como consequência um ligeiro desfasamento de tom na
zona dos agudos, demasiado altos relativamente ao acompanhamento das guitarras.
Quando isto acontece, a voz de Mariza esbarra nos ouvidos como uma ventania que
tudo arrasa, incluindo a música, incluindo o fado.
Presença, Mariza tem. O aspeto exótico impressiona, a par de
uma coreografia e de palavras ensaiadas ao pormenor. Mas é uma figura
espampanante, de “music-hall”, com acentos e requebros que a própria não
consegue – ou não quer – dominar, cujo sentido diverge amiúde do do fado.
Desloque-se, no entanto, a perspetiva, e esqueça-se aquilo que, obviamente, a
cantora ainda não tem e que em Amália, por exemplo, com quem inevitavelmente já
foi comparada, se chamava majestosidade/simplicidade – o próprio paradoxo de
quem unia, em cruz, o profano eo sagrado.
Então sim, deparamos com uma “entertainer” segura de si
própria, a dançarina extrovertida de “Oiça lá, ó senhor vinho”, a apreciadora
de música tradicional portuguesa, a cantora àvida de experiências e de
comunicação com um público que, faça ela o que fizer, já a adora. No CCB
comprovou-se esta faceta, esta ousadia da autora de “Fado Curvo”, com a voz a
aguçar-se em sibilâncias reptilíneas ou em diálogo com as percussões de Dalu e
o piano de Tiago Machado, este último a envolver-se de forma intimista coma voz
e com os versos de António Botto, em “Anéis do meu cabelo”. Antes já o piano
traçara as principais linhas de força dos arranjos de “O deserto”, com
intervenção jazzística de Laurent Filipe, na trompete. Luís Guerreiro, na
guitarra portuguesa, António Neto, na guitarra acústica, e Fernando de Sousa,
no baixo acústico, brilharam num tema instrumental, ainda que, no
acompanhamento da voz, pudessem ter aqui ou ali obtido vantagem caso tivessem
optado por seguir o lema “guitarra toca baixinho”.
Feita a soma, num concerto que pode considerar-se curto (uma
dúzia de temas, fora os “encores”), chegou para pôr o público em euforia e a
aplaudir freneticamente de pé. Num derradeiro gesto de chamamento do fado,
Mariza desceu do palco para, sem microfone, se entregar a uma desgarrada a
meias com as vozes castiças de Maria Amélia Proença e Marco Rodrigues. Ainda
aqui, poré, o foi difícil não sentir o gesto elegante da esteta sobrepondo-se à
perturbação e ao silêncio da noite que era suposto evocar-se. Mas talvez, no
fim de contas, tudo não passasse afinal desse tal fado curvo que distorce a
visão e estanca o sangue que escorre do coração.
EM RESUMO
Mariza e o fado nem sempre coincidem. Há uma voz poderosa e
a uma tendência para o excesso. Nada obstou, porém, ao triunfo da primeira, em
duas noites a abarrotar de público no CCB.
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